Conheci Jorge de Sena logo após a Revolução de 25 de Abril de 1974. Ele tinha acabado de regressar dos Estados Unidos, Santa Bárbara, onde leccionava Literatura Portuguesa. Exilado há muitos anos, por motivos políticos, Sena adquirira há muito o estatuto de grande poeta e ensaísta e tornara-se uma referência do imaginário da Resistência. Desalinhado, sem filiação partidária, cioso da sua independência, punha uma agudeza invulgar ao serviço de uma crítica implacável, não apenas do regime de Salazar mas, também, por vezes, das pequenas misérias dos seus próprios compagons de route. A seguir à Revolução não se absteve de criticar o que lhe pareceu criticável, criando até inimigos e gerando incompreensões onde antes apenas houvera amigos e espaços de consenso.
Fui um dos primeiros, porventura até o primeiro jornalista português, a entrevistar Jorge de Sena nesse seu regresso a Portugal. Evidentemente, como todos os da minha geração, eu admirava-o pelo seu talento e coerência. Era um escritor enorme, por vezes de violência quase panfletária, como sucede no poema intitulado A Portugal:
“Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
Nem é ditosa porque não o merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
Nem pátria minha, porque eu não mereço
a pouca sorte de ter nascido nela.”
Mágoa de um estado de coisas que o levava a prosseguir:
“Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela,
saudosamente nela, mas amigos são
por serem meus amigos, e mais nada.”
Esta raiva, ou amargura, compreendi-o então, não era resultante de uma qualquer forma de ressentimento, mas antes de uma ética incompatível com a irrisória face de lama, cobiça, vileza e mesquinhez do fascismo, com a ignorância beata, cínica, da sua fátua classe dirigente.
Como adiante se verá, este intróito ajudar-nos-á a ler o filme de Abi Feijó Os Salteadores (1993) baseado num dos contos de Sena reunidos em Os Grão-Capitães. Vejamos um pouco da história. Salazar foi sempre um cúmplice mais ou menos discreto do vizinho Generalíssimo Franco e não poucos foram os portugueses incomodados pela polícia política por, de algum modo, manifestarem simpatia pelos republicanos espanhóis. Foi o caso, por exemplo, de Miguel Torga, duas vezes nomeado para o Nobel da Literatura, preso a pedido de Franco após ter publicado um volume no qual dava conta dos horrores da Guerra Civil de Espanha. Após a vitória do caudilho, nos anos 40, muitos republicanos, sobretudo galegos, procuraram refúgio em Portugal. Com o apoio de oposicionistas portugueses foram sobrevivendo na clandestinidade, penosamente, nas montanhas do noroeste. "Salteadores" era o nome pelo qual a polícia de Salazar os designava, numa tentativa, por um lado, de levar as populações a denunciá-los e, por outro, de poder apresentar eventuais capturas como mera repressão de banditismo.
A operação, no seu conjunto, parece não ter tido muito êxito, mas os rumores postos a circular sobre "os salteadores" produziram efeitos ao nível das mentalidades, ora reforçando os preconceito daqueles cujo anticomunismo tudo justificava, ora exacerbando a raiva surda, larvar, dos opositores do regime, ficando pelo meio, confuso, porque elementarmente decente, mas sem informação, o homem do povo. Disto nos fala o conto de Sena e disso se propôs falar Abi Feijó. Quando o story-board de Os Salteadores foi apresentado no festival de Annecy em 1989, este tipo de cinema de animação era praticamente desconhecido em Portugal. De resto, o Instituto Português de Cinema (IPC) nem sequer contemplava a possibilidade de financiar projectos semelhantes, bem como de cinema documental, acrescente-se, limitando-se a subsidiar longas-metragens de ficção. No entanto, é bom notar, havia já, há alguns anos, numa pequena cidade dos arredores do Porto, Espinho, um interessante festival de animação, o Cinanima.
Premiado em Annecy, o projecto de Os Salteadores acabou por ser viabilizado dois anos mais tarde, custando o filme 22 mil contos, qualquer coisa como uns 18 milhões de pesetas. São conhecidas as dificuldades de adaptação de obras literárias ao cinema, dificuldades acrescidas, neste caso, por se tratar de um género sem tradição em Portugal, ainda que o realizador tivesse já experiência internacional. Diplomado em Artes Gráficas e Design, autor de algumas curtas-metragens, Abi Feijó frequentara o Estúdio Francês de Animação do Office National du Film du Canadá e trabalhara com o professor Gaston Roch, um dos grandes especialistas na matéria.
A história original tinha todos os elementos dramáticos capazes de proporcionar uma narrativa interessante. Mas, reconstituir no plano das imagens uma atmosfera próxima da criada por Jorge Sena que, em meia dúzia de páginas e a partir de um microcosmos habitado por três personagens, fizera um retrato das mentalidades de determinado período do fascismo português, não era tarefa fácil. Então, como proceder?
Numa narrativa cinematográfica o realizador necessita de fazer opções quanto ao modo de contar a sua história através dos elementos significantes disponíveis, imagens e sons. Abi Feijó, reconhecidamente um entusiasta do moderno grafismo da escola polaca, criou um desenho original, a preto e branco, dando por vezes a sensação de se tratar de bosquejos exploratórios rabiscados em bloco de notas, como que ensaiando a forma conveniente de caracterizar as suas personagens. Este método funciona, na prática, como um convite ao receptor no sentido de, ele próprio, participar da reconstrução do retrato de uma época e da sua atmosfera, justamente porque, ao evitar o estereótipo, introduz um elemento de ambiguidade indutor de uma vontade acrescida de completar o sentido do mundo representado: um mundo a preto e branco, dir-se-á, e portanto susceptível de acentuar uma leitura de contrastes e, todavia, um mundo tornado complexo pela hábil utilização da luz, ora revelando, ora escondendo, numa espécie de jogo exploratório, como que a convidar quem vê a encontrar um significado para o que pode ser lido em mais do que uma maneira.
Começa assim o conto de Sena “Numa lividez que na névoa rolando pelos pedregais e difractando uma lua para além dela, a paisagem sumia-se lentamente, à velocidade cautelosa do carro, cujos faróis iluminavam, amareladas e constantes, as curvas tortuosas da estrada de serra…"
É um texto de forte conteúdo metafórico, no qual se inscreve, desde logo, o percurso das personagens. Repare-se que os 48 anos da ditadura em Portugal ficaram assinalados como sendo uma longa noite com episódicas tentativas de libertação, outros tantos clarões fugazes. Ao transpor literalmente para a película a abertura do conto de Sena, Abi Feijó aceita, desde logo, jogar o jogo das metáforas. Isto porque também o texto original passa por aí segmentando a narrativa em diversos horizontes temporais, cuja ligação é estabelecida através do diálogo, constituindo essa ponte o lugar de acontecimentos de múltiplas leituras. Veja-se: três homens viajam dentro de um automóvel. É noite. Em conversa confrontam o presente com episódios de um passado que remetem para o mesmo lugar de acção. Um deles, o engenheiro, recorda ter feito aquele percurso há muitos anos quando os “salteadores" infestavam as montanhas. Dois lobos saíram à estrada, diz ele, e ficaram encandeados com os faróis.
"Puxei da pistola que trazia sempre no carro, abri a a porta... e disparei dois tiros.." Ora, esta passagem autoriza colocar os "salteadores" em lugar de lobos. Tal como os lobos, os “salteadores" escondiam-se na serra; tornavam-se supostamente perigosos e, como tal, podiam ser abatidos. Este tipo de metáforas percorre todo o texto fílmico, permitindo, através do diálogo, a caracterização das personagens. O que é dito funciona como janela de entrada para o imaginário de cada um. Por outras palavras, Abi Feijó articula a função integradora dos diálogos com um conjunto de elipses cujo efeito de surpresa não só convida o espectador a manter-se atento e participante da viagem, mas também evita hiatos narrativos.
O modo como utiliza os espelhos retrovisores do automóvel é especialmente eficaz ao propor, por um lado, a confrontação dos protagonistas com a imagem devolvida de si próprios - um jogo de duplos, portanto - funcionando, por outro lado, como elemento indutor de incursões no passado.
É o flash-back, aliás, que permite dar sentido à história posto que releva dois temas particularmente caros ao universo de Jorge de Sena, em contraponto: a pulhice e o rosto honrado dos homens. No conto, após ter tomado conhecimento do fuzilamento dos republicanos espanhóis - uma referência gráfica a Goya - o engenheiro adormece: Com a "...cabeça pendida para o peito, ressonava num ciclo brando..." No filme, Abi Feijó opta por um final diferente. O condutor queima os documentos comprometedores que lhe chegam às mãos. O preto e branco reverte a cor, a cor é um sinal de esperança num mundo de sombras, o fogo, um sinal de rebeldia. O ecrã vem a negro, ficam ressonâncias dos cantos da resistência.
Sena teria gostado deste filme. Nunca confundiu militância política com obediência partidária e deplorou sempre a cobardia, a mesquinhez e o conformismo. Mesmo depois da Revolução de Abril não encontrou lugar na sua pátria. Morreu, maltratado pelos seus, na América. Rebelde, ter-lhe-ia agradado o gesto daquele homem sério, o condutor.
Jorge Campos
Universidade de Santiago de Compostela, 1994