abri de mim a mão
da certeza: rolaram seixos trazidos
pelas marés do tempo.
talvez a humanidade dos homens
caiba na praia limpa de um gesto
de desprendimento.
Roma, 26 de dezembro de 2022
abri de mim a mão
da certeza: rolaram seixos trazidos
pelas marés do tempo.
talvez a humanidade dos homens
caiba na praia limpa de um gesto
de desprendimento.
Roma, 26 de dezembro de 2022
Atualizado: 22 de out. de 2023
Ben Webster, saxofonista tenor, era já uma lenda viva do Jazz quando, em 1964, farto do racismo nos Estados Unidos, bem como das zangas com os pares, decidiu viver na Europa. Primeiro, na Escandinávia, depois, em Amesterdão, onde conheceu o cineasta holandês Johan van der Keuken. Do encontro resultou uma pequena obra-prima documental de 30 minutos.
O músico, um grandalhão de modos suaves, falar pausado, dando tempo ao tempo, é alguém atento a coisas que não passariam pela cabeça de mais ninguém como a perícia de um amigo capaz de comer uma galinha, deixando apenas o osso ou tirar as espinhas de um peixe fazendo uso meticuloso de um garfo e de uma faca. São feitos que ele explica com a mesma minúcia, seriedade e leveza com que pega no seu tenor, o acaricia com os olhos e o leva aos lábios para emitir aquele extraordinário som aveludado capaz de nos reconciliar com o mundo. Fala do mesmo modo da senhora Hartlooper, em cuja modesta casa alugou um quarto em Amesterdão e que, segundo ele, é uma segunda mãe.
A senhora Hartlooper acompanha-o a um talk show televisivo, lugar de simulacros onde a celebração ritual da espuma dos dias esconde as feridas, bem como a uma visita ao jardim zoológico, onde, não por acaso, há animais em cativeiro cujas imagens hão-de alternar na montagem com close-ups dele próprio. Apesar da liberdade formal, no filme de Johan van der Keuken também nada está por acaso. Não há nele lugar para informação ao estilo da monografia, na órbita do previsível. Não há nem uma palavra sobre a aprendizagem dos blues com o pianista Pete Johnson ou sobre as lições de saxofone tenor com Budd Johnson. Tão pouco se fala das discussões homéricas com DuKe Ellington quando foi solista da sua orquestra, embora haja reconhecimento da excelência do seu trabalho, ou das memoráveis e, por vezes, tensas, sessões com Oscar Peterson. Há, sim, no início do filme, referência aos numerosos álbuns gravados, bem como à interminável lista de músicos geniais com quem partilhou palco e estúdios, de Lester Young a Billie Holliday, de Art Tatum a Red Callender, de Coleman Hawkins a Ray Brown e Gerry Mullingan. Tudo sem uma palavra, apenas imagem e som, num registo experimental.
Sobre os Estados Unidos, de onde veio “Big Bem” ou “The Frog” ou “The Brute”, as alcunhas de Ben Webster, há uma única palavra, na qual, pessoas como eu, familiarizadas com a geração beat, poderão entender como declinação de um verso de Howl de Allen Gingsberg, publicado em 1956. A palavra é “America”, repetida duas vezes, “America, America”. O poema começa com este verso, ausente do filme: “I saw the best minds of my generation destroyed by madness”. Mas aquele “America, America”, para iniciados, convoca logo, subliminarmente, o “go fuck yourself” recorrente ao longo de Howl. Não, Ben Webster não estava orgulhoso do seu país.
Tinha 58 anos quando filmou com Johan van der Keuken. Por hábito, andava por todo o lado com uma pequena câmara de 8 mm. Tal como Joris Ivens em Chuva (1929), gostava de filmar a partir da janela do seu quarto. Foi daí que surpreendeu o cineasta holandês e a mulher a entrarem no seu automóvel. Essas imagens, bem com outras de Amesterdão, foram incluídas no documentário. A colaboração, porém, não ficou por aí. Partiu dele a ideia de filmar a oficina dos saxofones da sequência inicial. A paixão pelo instrumento era de tal ordem - na verdade, uma extensão do seu corpo - que continuava a tocar um tenor adquirido em 1938.
Vemo-lo a ensaiar e percebemos o domínio da música, a precisão, o fraseado perfeito, o controle rigoroso, mas bem humorado, sobre os demais elementos do grupo. Num dos ensaios aparece outro grande instrumentista, Don Byas, mestre do swing e do be bop. Mas o que sobressai, sempre, é o sopro do gigante a dar corpo a uma arte inigualável, ainda há pouco compenetrado à volta de uma jogada de bilhar às três tabelas num lugar esconso de Amesterdão, fazendo agora prova de quanta humanidade e transcendência podem existir noite dentro num solo de saxofone tenor.
Johan van der Keuken era um mestre da câmara de filmar e um exímio montador de filmes. Como todo o grande documentarista, era, também, um cineasta experimental. Certamente, por isso, encontrou soluções que refletem a improvisação jazzística através de jump cuts, da transgressão das regras do som, de planos improváveis, da criação de metáforas visuais, em suma, fez da narrativa algo de imprevisível, aparentemente em roda livre como se de um elo de surpresas se tratasse, mas, e este mas é mesmo para valer, com tudo muito, muito controlado.
Belo filme este Big Ben: Ben Webster in Europe.
P.S. Há uma cópia com razoável qualidade no YouTube. Também disponível na plataforma Mubi.
JC
"O mundo, mais do que a coisa em si, é a imagem que fazemos dele. A imagem é uma máscara. A máscara, construção. Nessa medida, ensinar é também desconstruir. E aprender."