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   viagem pelas imagens e palavras do      quotidiano

NDR

  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 5 de dez. de 2022
  • 10 min de leitura

Atualizado: 5 de dez. de 2022


Um grupo de rapazes alemães, fotografado por Julien Bryant, observa Der Stuermer, Die Woche e outros posters de propaganda num muro em Berlim em 1937. Fonte: Modern Tate

Esta é a história de como um fake documentary não só conseguiu chamar a atenção para uma questão sobre a qual, no final dos anos 30, grande parte dos americanos não queria nem ouvir falar, o problema nazi, mas também se impôs como a principal matriz daquilo que viria a ser o documentário jornalístico. O filme, hoje um filme patriótico, chama-se Inside Nazi Germany (1938), é uma produção do mais famoso e influente jornal cinematográfico de todos os tempos, The March of Time, e foi indicado pela Library of the Congress para preservação no National Film Registry em 1993. Criado pela Time Inc de Henry Luce sob a supervisão de Louis de Rochemont, um produtor de Hollywood, e por Roy Larsen, The March of Time propôs-se revolucionar o jornalismo. Começou por ter um formato de magazine, evoluindo no sentido de tratar um único tema semanalmente. Exibido em mais de cinco mil salas dos Estados Unidos e em 709 no Reino Unido, em breve seria visto por mais de 40 milhões de pessoas em todo o mundo. John Grierson, o fundador do movimento documentarista britânico, diria: “Vai para além da notícia, analisa os factores de influência e confere uma perspectiva aos acontecimentos.”


Sendo, provavelmente, o exemplo mais radical dos procedimentos adoptados pela equipa de The March of Time no sentido de revolucionar o jornalismo cinematográfico, Inside Nazi Germany foi também o mais controverso nos 16 anos de existência, entre 1935 e 1951, durante os quais fez 290 programas. Controverso, desde logo, em função dos critérios jornalísticos. Controverso, também, em função da disparidade de leituras consequente do contexto e das opções políticas de cada um. Controverso, ainda, por dramatizar a narrativa ao estilo de Hollywood. Controverso, enfim, a ponto da Warner, que tinha adquirido os direitos de The March of Time para mais de 200 salas, ter denunciado o contrato e interditado a sua exibição. Neste ponto, porém, deve ser tido em conta que Berlim era um dos grandes clientes dos filmes da Warner, sendo de sublinhar a pressão permanente exercida pela embaixada alemã nos Estados Unidos no sentido de dissuadir Hollywood de fazer filmes prejudiciais à imagem do Reich. Da controvérsia aproveitou-se a concorrência. Adquiriu os direitos de Inside Nazi Germany acabando por beneficiar daquele que viria a ser um dos maiores, se não o maior êxito de bilheteira de The March of Time.


Louis de Rochemont, o cérebro de The March of Time e do pictorial journalism Fonte: Louis de Rochemont (NH) Filmaker

Historicidade e contexto


The March of Time é, naturalmente, um produto da época. De um modo geral, assumiu posições antifascistas, embora não tivesse a pretensão de desempenhar um papel militante. Como frequentemente sucedia nos seus programas, Inside Nazi Germany tomava partido, neste caso, denunciando a campanha de “purificação racial” do nacional-socialismo. Visto hoje, pode parecer difícil entender a dimensão atingida pela polémica até porque o filme, sendo realmente interessante, não justificaria só por si tamanha atenção. Na verdade, não é bem assim. Há boas razões para este episódio de The March of Time continuar a ser assiduamente revisitado.


Ao contrário dos chamados documentários informativos levados a cabo pelos cineastas de Hollywood sob orientação de Frank Capra, claramente identificados com a propaganda, as actualidades de Rochemont e Larsen reivindicavam ser do campo do jornalismo (Ler neste blogue Why We Fight: violência simbólica e documentários de propaganda na II Guerra Mundial). Por isso, se alerta para questões reiteradamente colocadas, aliás, desde o primeiro momento em que a controvérsia se instalou. Primeiro, o jornalismo exige inovação, mas o jornalismo sem memória não é jornalismo. Segundo, o jornalismo sem rigorosa ética profissional também não é jornalismo. Terceiro, ser jornalista não é ser mensageiro ou meramente um storyteller. Finalmente, jornalismo e propaganda, mesmo com a melhor das intenções, não são a mesma coisa.


Dito isto, em 1937 era praticamente impossível a uma companhia estrangeira de newsreels filmar no interior da Alemanha de Hitler. Mesmo em relação aos seus aliados, os alemães adoptavam uma atitude cautelosa preferindo serem eles próprios a fornecer os materiais destinados a exibição pública. Um dos poucos fotógrafos e operador de câmara a conseguir uma autorização especial, depois de negociações com a Gestapo, foi Julien Bryan. Os alemães consideravam a cobertura noticiosa de terceiros sobre o seu país pouco ou nada objectiva, mas Bryan, operador free-lance que gozava de certa reputação não alinhada, acabou por convencê-los da possibilidade de dar à América uma versão justa e equilibrada do quotidiano do III Reich.


Obtida a autorização, entrou em contacto com The March of Time, assumindo o compromisso de lhe vender o material que viesse a filmar, embora procurando salvaguardar, em simultâneo, as garantias dadas sob palavra aos alemães. Recebeu dois mil dólares adiantados, partiu, filmou durante sete semanas na Alemanha e regressou com perto de 30 mil metros de película, garantindo ter assegurado as imagens do século. Apesar da qualidade técnica, Rochemont considerou boa parte das imagens irrelevante posto que, censuradas ou não pelos homens de Gobbels, mostravam sobretudo uma sociedade próspera, ocupada com desfiles, acampamentos de juventude e pessoas felizes. Bryan terá filmado ainda alguma propaganda anti-semita, todavia insuficiente para o efeito pretendido. Então, que fazer?


Julien Bryan filma cavalos mortos nas ruas de Varsóvia durante o cerco do exército nazi. A foto, de 1939, é posterior ao trabalho realizado na Alemanha. Bryan, embora estivesse de acordo com o ponto de vista de Inside Nazi Germany, ficou furioso pela forma como as suas imagens tinham sido usadas, em flagrante violação com o acordado. Com reputação de jornalista independente, passou a ter dificuldade em aceder a lugares onde habitualmente trabalhava durante a guerra. Fonte: Holocaust Museum

Primeiro, a audiência, depois a história, enfim, os factos


O produtor de The March of Time tinha adquirido fama de saber contornar obstáculos de forma expedita. Voltou a fazê-lo. Pagou a Bryan o acordado, conservou os rolos de película e tratou de fazer um filme à sua maneira. Primeiro, deslocou-se a uma pequena comunidade germano-americana anti-nazi em Horboken, New Jersey, que vivia de acordo com os padrões alemães tradicionais – até a organização do espaço e a traça das casas correspondia a esses padrões – e convenceu os seus membros a participarem em reconstruções a pensar em Inside Nazi Germany. Foram forjadas cenas de campos de concentração, de vigilância policial e de censores a examinarem correspondência nos centros postais. Reuniu depois imagens de filmes e newsreels alemães, designadamente com discursos de Hitler, paradas militares e cerimoniais partidários. Finalmente, Jack Glenn, o realizador principal, convenceu o líder pró-nazi americano Fritz Khun a deixar-se filmar no seu gabinete, imagens posteriormente apresentadas em paralelo com cenas onde Khun se dirige aos seus correligionários durante um comício fascista. Na montagem a parte filmada por Julien Bryan acaba certamente por contribuir para a credibilidade ao filme.


Estreado na noite de 20 de Janeiro de 1938, no Embassy Theatre em Nova Iorque, Inside Nazi Germany obteve um sucesso sem precedentes para aquilo que então passara a ser designado, no âmbito de The March of Time, por documentário de notícias ou, como dizia Rochemont, pictorial journalism. Manteve-se em cartaz durante meses. Com uma estrutura narrativa construída de modo a alcançar picos dramáticos para garantir a continuidade da acção, articulando imagens reais com reconstruções, o programa, afrontando em nome da inovação a ideologia da objectividade jornalística que ganhara força a partir dos anos 20, foi imediatamente objecto de acesa controvérsia.


Fritz Julius Kuhn, líder dos pró-nazis americanos cujas actividades, à época, se faziam sem constrangimentos. Fonte: Alchetron

Para tanto contribuíram igualmente os textos, adjectivados, com opção pela função expressiva da linguagem em detrimento da função referencial - tomando como referência as categorias de Jakobson - daí resultando, portanto, a presença sistemática de juízos de valor. Dão-se a seguir dois exemplos. O primeiro, aliás, um excelente exercício de retórica, descreve a situação na Alemanha nazi sem espaço para o princípio do contraditório:


“Still going on, as pitilessly, as brutally, as it did five years ago is Goebbels’s persecution of the Jews. (...) And on the Christian churches, Goebbels’s propaganda machine is today bearing down savagely, for these - almost gone - are still offering resistance to the new order. The Nazi state tolerates no rival authority. (...) To the good Nazi , not even God stands above Hitler…”


O segundo exemplo, premonitório, como que a justificar os procedimentos discursivos acima mencionados, remete para o final do filme:


“Nazi Germany faces her destiny with one of the great war machines in history. And the inevitable destiny of the great war machines of the past has been to destroy the peace of the world, its people, and the governments of their time.”


São numerosas as reconstruções em Inside Nazi Germany - 1938 levadas a cabo com a colaboração dos habitantes de Horboken: entre outras, cenas de tortura, de perseguição aos judeus, de recolha de fundos para a causa do nacional-socialismo, de um casal que ouve discursos de Hitler na rádio, bem como as cenas relacionadas com a vida das famílias alemães. Além de Raymond Fielding, o grande especialista em newsreels, encontram-se fotos em Marching Toward War - The March of Time as Documentary and Propaganda Fonte: McFarland Books

Com cerca de 17 minutos, o filme começa com uma colecção de postais de Berlim seguida de imagens de Julien Bryan, mostrando uma cidade amena e acolhedora. As aparências, porém, enganam. Reconstruções articuladas com imagens factuais alemães e, aqui e além, pontuadas por imagens de Bryan, vão revelando a face oculta da Alemanha nazi: o papel da mulher – destinada a uma vida doméstica e à procriação de arianos puros – a educação das crianças e dos jovens para a guerra, o destino dos dissidentes condenados à prisão e deportados para os campos de concentração, a perseguição aos judeus, a tortura para os opositores, a propaganda de massas, a censura institucionalizada, a construção de um exército de poderio incomparável.


Os planos são curtos – raramente The March of Time tinha planos de duração superior a cinco segundos, quase sempre menos, por vezes, simples flashes – o que correspondia a um intuito de evitar a monotonia do olhar através de um ritmo de montagem muito vivo. Raymond Fielding refere que nos anos 30 cada programa tinha, em média, 19 minutos e 39 segundos nos quais cabiam, habitualmente, 288 planos com uma duração máxima de quatro segundos. A seguir à guerra, a duração do plano passou a ser em média de cinco segundos. O corte, porém, podia, só por si, não obedecer a uma operação semântica. Em muitos casos, funcionava como mera colagem, o que originava a presença, na terminologia de Christian Metz, da predominância de sintagmas não narrativos. Onde os sintagmas narrativos aparecem com maior frequência é nas reconstruções, mas, mesmo aí, têm apenas uma função descritiva, jamais enveredando por figuras de estilo ou derivas poéticas.


Cena reconstruída em Inside Nazi Germany Fonte: Scalar

Rochemont: “To us, the word documentary was a dirty word ”


Para a época, o estilo de The March of Time foi uma novidade. Rochemont odiava a simples ideia de documentário: “To us, the word ‘documentary’ was a dirty word.” Para ele, o que criara era pictorial journalism. Segundo um dos seus colaboradores, Lothar Wolf, o que distinguia The March of Time de tudo o mais era o facto de o argumento dominar a imagem e não o contrário:


“(Louis) foi o primeiro a atribuir valor idêntico às palavras e à imagem. No documentário há um princípio segundo o qual é a imagem que deve contar a história. Nunca subscrevi essa ideia. Penso tratar-se de uma simplificação abusiva, tal como sucede com o cinéma vérité ”.


O livro de estilo de The March of Time – ou, pelo menos, o estilo imposto por Rochemont – determinava outras convenções. Era obrigatório o uso do tripé, filmar de um ângulo correspondente ao ângulo de visão dos espectadores nas salas - o que deu origem a uma fenómeno até então raro no cinema clássico americano, uma vez que os tectos, em cenas de interiores, estavam sempre a aparecer - e raramente eram feitos planos em movimento. Se, por necessidade descritiva se fazia uma panorâmica, o plano seguinte só aparecia após a câmara estar completamente imobilizada. Evitavam-se os cortes em movimento. A regra era o plano fixo, variando o tamanho. O close-up era utilizado de forma comedida. Também não há vestígios nem de talking heads nem de perguntas feitas pelo repórter. Há diálogos e testemunhos, mas sempre em circunstâncias adequadas às cenas, como que decorrendo naturalmente da acção. Se havia algo a comunicar verbalmente pelos protagonistas isso era feito através de diálogos previamente redigidos. Os diálogos, na maioria dos casos, resultavam bastante artificiais.


Westbrook Van Voorhis, o narrador de The March of Time. Fonte: Google Images

Um outro procedimento habitual era o uso de legendas, à maneira dos títulos da imprensa, bem como de gráficos e mapas explicativos. A música, subordinada à narrativa, preenchia o filme do princípio ao fim. Era composta para cada um dos episódios, obedecendo a propósitos de dramatização, o mesmo sucedendo com a forma como o famoso narrador Westbrook Van Voorhis dizia os textos. Fazia uso da palavra com modulações de voz capazes de suscitar uma gama variada de emoções, e deixava o texto em suspenso através de pausas que criavam expectativa e interrogações. Em suma, suprimia através do enunciado verbal os hiatos narrativos da imagem.


Consequências


Apesar de a rejeição de princípio do filme documentário, de cinema, por parte de The March of Time, a verdade é que a fórmula encontrada por Louis de Rochemont e Roy Larsen, dando prioridade aos critérios do pictoral journalism, produziu efeitos tanto no campo do jornalismo quanto fora dele. Comecemos por aqui.


Quando a versão cinematográfica de The March of Time teve início não havia tradição nos Estados Unidos do filme documentário destinado a ser exibido nas salas. Quando muito poderão ser apontados como casos bem sucedidos dois ou três filmes de Flaherty e os filmes de Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack. Por isso, é legítimo atribuir-lhe o mérito de ter suscitado no grande público o interesse por um formato que não sendo nem documentário, nem newsreels, nem produção dramática, mas uma síntese de tudo isso, acabaria por dar alento, ainda que mitigado, a um novo interesse pelo documentário e não só nos Estados Unidos.


Por outro lado, entre os documentaristas também não faltavam admiradores de The March of Time, o qual, aliás, viria a contar entre os seus colaboradores com algumas das figuras de proa do movimento documentarista britânico, como, por exemplo, Edgar Anstey, Harry Watt e Len Lye, além do próprio John Grierson. A sua influência fez-se igualmente sentir nos documentários americanos de propaganda realizados pelos mestres de Hollywood. Frank Capra afirmara só ter compreendido o que era um documentário depois de ter visto os filmes de Leni Riefenstahl, mas a verdade é que o seu modelo de filme informativo está muito mais próximo de Inside Nazi Germany do que de qualquer das obras da realizadora alemã. Mesmo os documentários e newsreels da esquerda radical americana, apesar de se oporem em termos políticos e ideológicos a The March of Time, cuja orientação era essencialmente liberal, não enjeitaram o seu estilo (Ver neste blogue: Filmes da esquerda radical americana contra o fascismo: Native Land e Black Legion).


Inside Nazi Germany nas salas de cinema

Grierson, num dos seus ensaios, a propósito de The March of Time chegou a dizer: “Tudo é feito de um modo penetrante, em profundidade, e, como tal, dramático.” Ora, do ponto de vista do jornalismo, se o dramático não deve ser rejeitado, também não pode ser encarado sem vigilância. Rochemont, não não só se permitia usar e abusar de reconstruções, mas também não se importava de criar factos ao serviço da história a contar. Fez isso em Inside Nazi Germany, fez isso em diversas outras ocasiões. Por outro lado, uma coisa são reconstruções de base factual, em todo o caso, sempre de duvidosa credibilidade quando delas se abusa, tratando-se de jornalismo, outra coisa, é utilizar sem contraditório informações veiculadas por partes interessadas para, do ponto de vista simbólico, hegemonizar o espaço público, dando como adquirido aquilo que afinal resulta de estratégias de propaganda.


Isto vale tanto para Inside Nazi Germany quanto para a generalidade da informação em situações limite como é, por exemplo, o estado de guerra. O êxito deste filme resulta, aliás, de ser a resposta certa para quem tinha necessidade de ver e ouvir o que lá está. A lógica destas coisas é sempre a mesma. Para que medidas extremas possam ser implementadas é necessário alimentar uma opinião dominante favorável ao respaldo dessas mesmas medidas. Neste caso, dir-se-ia que pelas boas razões. Esse, porém, já não é o território do jornalismo. É outra coisa. Legitimado pelos media, pode ser credível. Mas também pode ser falso. Propaganda. Pode ser até fake news. Um amigo meu dizia há dias ter muito medo de pessoas sem memória. Eu também.






  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 27 de set. de 2022
  • 17 min de leitura

Atualizado: 1 de out. de 2022


Fonte: Forbes

“A great many people think they are thinking when they are really rearranging their prejudices.”
Edward R. Murrow

Três semanas após a emissão de See It Now na qual Edward Murrow denunciou, analisou e desconstruiu o método das inquirições de McCarthy no âmbito do Comité das Actividades Anti-Americanas, o senador veio exercer o seu direito de resposta. Ao contrário do que por vezes se pensa, McCarthy não era um principiante na utilização dos media. Pelo contrário, devido à pressão que exercia e ao medo que infundia, tinha ampla exposição, sentindo-se relativamente à vontade nas diversas situações com que se via confrontado. Desta vez, porém, era já um homem acossado. Por outro lado, See It Now, nessa temporada de 1953-54, consolidara o formato testado por Murrow e Fred Friendly, sendo visto como a principal referência da informação televisiva.


Adiante ver-se-á, em detalhe, como funcionava o seu dispositivo retórico a partir da análise de duas emissões determinantes para a elucidação do que na América se considera ser o documentário jornalístico. Mas, por ora, antecipamos o direito de resposta ao demolidor A Report on Senator Joseph R. McCarthy, que antecedeu Annie Lee Moss Before the McCarthy Comitee (Ver See It Now I e II neste blogue).


Ponto final antecipado


O senador apareceu na televisão em casa dos americanos sentado a uma pesada secretária tendo, do seu lado direito, um globo terrestre de razoável dimensão. Como se perceberia depois, a ideia era dar conta, complementando gráficos, da disseminação da ameaça comunista no mundo. Havia, também, sobre a mesa, documentos para serem exibidos diante das câmara por forma a corroborar as denúncias de McCarthy.


McCarthy a exibir documentos numa sessão (5 de Maio de 1954) das famosas inquirições de elementos das Forças Armadas, pós - See It Now. O conflito com o Exército selaria a morte política do senador. Fonte: Crosscut/AP

Enquadrado em plano geral, ao centro, o senador seria depois filmado em plano médio e, em momentos de maior tensão, em grande plano. Visivelmente encenada, a sua prestação obedeceu a uma estratégia de dramatização pensada para ser desenvolvida em crescendo. De início, tentando aparentar calma, falou pausadamente, mas, logo a abrir, cometeu um erro retórico ao desprezar o seu adversário, cuja popularidade estava no zénite. Não se se daria sequer ao trabalho de responder a alguém como Murrow, disse o senador, mas fazia-o por sentido de dever dado o perigo que ameaçava a democracia. Murrow, acrescentou, era um comunista infiltrado desde há anos na CBS. E o comunismo, sendo uma ameaça global, infiltrava-se em todos os interstícios da sociedade, abalava os sectores mais sensíveis como a Educação e o aparelho de Estado, o Cinema e os meios de comunicação. Passou depois a uma deriva sobre Lenine e a Revolução de Outubro - sete bolcheviques tomaram conta de um país do tamanho da Rússia - e fez a demonstração da urgência em fazer face ao perigo vermelho através do uso de gráficos, nos quais mostrava a expansão da influência da União Soviética e da República Popular da China no mundo.


No início dos anos de 1950, o mccarthyismo pôs a circular um número incalculável de panfletos com o intuito de alimentar o Medo Vermelho. Visavam todos os estratos sociais em todas as esferas da vida pública.

Subindo de tom à medida que avançava na exposição, McCarthy foi perdendo a compostura inicial. O que era suposto ser uma convicta declaração de lealdade patriótica foi dando origem a um discurso incoerente acompanhado de uma gesticulação a despropósito. Nesses dias, é bom lembrar, a televisão era ainda a preto e branco e de baixa definição. Sendo a imagem pobre e o som de pouca qualidade, determinados procedimentos resultavam invariavelmente em ruído, arruinando a mensagem. Investindo contra Murrow do modo como o fez, misturando a opinião e o insulto, McCarthy, cuja credibilidade estava ferida pela arbitrariedade dos seus procedimentos, produziu, junto de uma parte substancial do público, o chamado efeito de rejeição do mensageiro. Com efeito, a partir de determinada altura e, sobretudo, nos dez minutos finais da sua resposta, os resultados revelaram-se penosos. Perdido numa profusão de panfletos exibidos como prova de evidência, de olhar vagueante, deixou ficar a imagem de um homem sem rumo no meio de uma resma de papeis sem sentido.


The Hollywood Reporter. Recortes de notícias das purgas que acabaram com as carreiras de numerosas pessoas do Cinema. A sanha de McCarthy foi particularmente virulenta contra elas, contando com a colaboração de executivos dos estúdios que ajudaram a elaborar as listas negras. O caso mais célebre, porque mais mediatizado, foi o dos Dez de Hollywood: Alvah Bessie, Herbert J. Biberman, Lester Cole, Edward Dmytryk, Ring Lardner Jr., John Howard Lawson, Albert Maltz, Samuel Ornitz, Adrian Scott e Dalton Trumbo. Fonte: Hollywood Reporter

See It Now: o documentário jornalístico de novo em equação


Ao longo da sua carreira Edward R. Murrow ganhou numerosos prémios A réplica de Murrow, na semana seguinte, foi arrasadora. Seguro da natureza do medium, com absoluto controle da câmara, desmontou ponto por ponto os argumentos de McCarthy demonstrando que o senador fizera acusações infundadas, utilizara informações retiradas do contexto, mentira, inclusivamente, forjara provas a partir da deturpação de documentos. À acusação, por exemplo, de ter o apoio dos jornais de extrema-esquerda como o Daily Worker, Murrow alinhou à sua frente duas pilhas de jornais, uma substancialmente maior do que a outra. Apontando para a maior enquanto começava a pegar nos jornais disse serem aqueles os jornais de “extrema-esquerda” que tinham comentado positivamente See It Now. O primeiro a ser exibido foi o New York Times, seguiu-se o Washington Post e, depois outros cujo compromisso sistémico era, e é, sobejamente conhecido. Na sequência de A Report on Senator Joseph R. McCarthy a proporção de opiniões publicadas favoráveis a Murrow tinha sido de três para um. Os jornais empilhados reflectiam isso mesmo. O habitual Good Night and Good Luck a terminar a emissão pôs um ponto final ao combate.


Edward R. Murrow no Estúdio 41 da CBS em Nova Iorque responde a McCarthy: ele é parte da mensagem posto que, em última instância, toda a a organização e produção de sentido está centrada na sua figura. Fonte: American Rhetoric

Enquanto repórter, comentador, analista, apresentador e em mais uma série de outras categorias consoante as entidades que os atribuíam, Murrow foi premiado inúmeras vezes. A última distinção, porém, não foi um prémio, foi a nomeação pela Academia de Televisão para o Emmy de Outstanding Writing Achievement in the Documentary Field de 1961. A Academia estaria a pensar num dos últimos trabalhos de Murrow para a CBS, o documentário Harvest of Shame (1960) do qual se falará no próximo e último artigo desta série. Por agora, observemos com maior detalhe a narrativa documental em dois dos programas de maior impacto de See It Now. Para tanto importa relembrar que qualquer dispositivo retórico releva sempre da rede de relações entre o lugar textual, a audiência e o contexto histórico no qual se inscreve o real. E, por outro lado, a análise do texto, do qual é indissociável a figura do apresentador exige o domínio, mesmo se rudimentar, de algumas ferramentas teóricas. São elas - poderiam ter sido outras com A Grande Sintagmática de Christian Metz - as funções da linguagem de Roman Jakobson, a tipologia de Bill Nichols para identificação dos modos do documentário e o trabalho de Carl Plantinga sobre as diferentes vozes dos documentários, a seguir muito sumariamente identificadas de modo a facilitar a leitura.


O Modelo de Comunicação de Roman Jakobson. Fonte: Mundo da Educação

Segundo o modelo clássico de Roman Jakobson, a comunicação verbal exige a presença de seis elementos: um emissor (narrador, autor ou orador); um receptor (ouvinte ou telespectador); um código (entendido como um conjunto de signos associado a regras de articulação linguística); a mensagem (aquilo que se transmite, no nosso caso See It Now); o contexto (o referente ou a situação); o canal de comunicação. Importa, também, referir o ruído, que pode estar presente em qualquer das etapas do processo de comunicação.


Por outro lado, se, como antes se viu, o documentário jornalístico americano atribui a centralidade da significação à palavra, mais do que à imagem, é útil para o entendimento dos dois programas a seguir analisados conferir resumidamente as funções da linguagem, ainda de acordo com o modelo de Jakobson. São elas: função referencial ou denotativa (informações objectivas, textos jornalísticos); função emotiva ou expressiva (centrada no emissor, emoções e opiniões); função conativa ou apelativa (visando a persuasão); função fática (do grego pathos, permite estabelecer o contacto entre os sujeitos); função metalinguística (centrada na própria linguagem); função poética (no nosso caso, a marca autoral que permite distinguir o filme documentário do documentário jornalístico).


Quanto aos modos do documentário, Nichols identifica seis. Obedecendo a critérios relacionados com a cronologia da História do Cinema Documental, são eles: poético, expositivo, observacional, participativo, reflexivo e performativo. No quadro abaixo é possível recolher informação complementar bastante para o entendimento da análise.

Fonte: WordPress.com

Sobre Plantinga, cuja reflexão em torno dos filmes de ficção e não-ficção tem contribuído sobremaneira para o debate do documentário, importa-nos, neste momento, atentar apenas sobre os tipos de vozes por ele identificados. São eles: a voz aberta, mais facilmente reconhecida nos documentários de observação, epistemologicamente hesitante; a voz formal, assertiva e expositiva como sucede na reportagem; a voz poética, mais do domínio do cinema de arte e ensaio, mas, eventualmente, também presente noutros tipos de filmes.


Apesar de elementares, os conceitos propostos são o bastante para o entendimento do que segue, ou seja, a análise de dois rounds decisivos do combate entre Ed Murrow e Joe McCarthy - os nomes, assim ditos, até a avaliar pelo final antecipado no início do texto, parecem-me mais apropriados à função com origem no estúdio 41 da CBS em NYC.


Se assim o entendermos, podemos imaginar a situação a partir de Good Night and Good Luck 2005) de George Clooney, que faz uma excelente reconstrução do espaço, com Murrow a lançar o programa, a introduzir aquilo a que se convencionou chamar documentário jornalístico e a fechar com uma conclusão.


1. The Case of Milo Radulovich


Uma voz off dirige-se à audiência através de um imperativo “Stand by for See It Now with Edward R. Murrow, which originates in Studio 41 in New York City”. Associada à imagem do estúdio a voz transporta o espectador para o interior do dispositivo da televisão, convidando-o a fazer parte do seu universo. É um acto de inclusão transformado em privilégio por força do ritual das convenções. No estúdio há dois monitores, outras tantas portas de saída para o mundo exterior. Num deles, lê-se Stand by Detroit, cidade onde pela primeira vez um jornal abordara o tema Milo Radulovich, no outro Stand By Dexter, a pequena cidade onde vive o protagonista.


A reconstrução de Murrow vs McCarthy em Good Night and Good Luck (2005) de George Clooney.

Enquadrado de perfil um pouco acima da linha de ombros está um homem sentado que fixa os monitores. É Edward R. Murrow. Ele irá mover o tronco e o rosto num movimento de 30 graus de modo a fitar o espectador através da objectiva de uma câmara. O ângulo de vista - ao contrário do que sucede hoje, habitualmente ao nível dos olhos do apresentador - obriga-o a olhar um tudo nada para cima. Encontra-se, portanto, na posição de alguém disponível para submeter os seus argumentos à superior apreciação de outrém a quem, em última instância, competirá decidir. É uma deferência para com o público com o intuito de reforçar a sua participação.


De seguida, Murrow introduz o tema de forma a deixar tudo em aberto, posto que se exigem esclarecimentos. Lê um texto redigido na voz passiva com alguns qualificativos que reforçam essa sensação. Assim, apesar das informações veiculadas, o caso é “obscuro” e, como tal, importa examiná-lo. Murrow volta-se de novo para os monitores enquanto anuncia a presença do repórter Joe Wershba em Dexter, Michigan. A câmara acompanha o seu movimento em panorâmica e dá-se a fusão da imagem do estúdio com a imagem do exterior. O espectador é assim conduzido ao centro da acção: Dexter. No ecrã vê-se uma estátua erguida em memória dos heróis da guerra. Numa placa de metal pode ler-se: “Erected by the citizens of Dexter to heroes who fought and the martyrs who died that the Republic might live”. É óbvio o intuito de sugerir a associação dos heróis anónimos da guerra com Milo Radulovich.


O texto em off da peça é informativo, mas a estrutura narrativa, sendo sustentada por um discurso híbrido combinando técnicas de reportagem, como o uso de entrevistas, com convenções do filme documentário, levanta um problema teórico recorrente no âmbito da dicotomia verdade/ ponto de vista: como articular a indexação do mundo histórico com a retórica que explicita esse mesmo mundo? Ou: quais os limites da objectividade jornalística?


Milo Radulovich celebra com a mulher Nancy Happ a notícia da sua reintegração na Força Aérea na sequência da denúncia levada a cabo justamente nesta emissão de See It Now. Fonte: Historic Images

De acordo com a tipologia de Nichols, cujo trabalho teórico ajuda a entender o cinema documental, este seria um documentário expositivo: coloca um problema, produz argumentos e propõe uma solução. A peça filmada tem uma narrativa circular em três actos. No primeiro, há uma breve introdução a Dexter, dá-se a conhecer o protagonista principal através de uma entrevista conduzida por Joe Wershba e ficam-se a conhecer melhor os contornos da situação através do seu advogado. Não é exercido o contraditório por recusa da Força Aérea em prestar declarações. Apenas se mostram imagens do edifício militar onde teve lugar a inquirição. A segunda parte reúne testemunhos abonatórios da parte de cidadãos de Dexter, bem como da família de Radulovich. O pai lê uma carta enviada ao Presidente, a mãe faz um depoimento emocionado favorável ao filho, a quem chama um lutador, e a irmã contesta a legitimidade de quem pretende julgar outros por simples suspeita ou delito de opinião. Por último, na terceira parte Radulovich regressa para reiterar a sua inocência, insurgindo-se contra a possibilidade de alguém poder ser considerado “culpado por associação”. O desenlace reforça a associação do visado, sugerida no início do filme, com os heróis desconhecidos da guerra.


A peça filmada tem um ponto de vista inequívoco como raramente se vira em See It Now . Contudo, é só quando Murrow produz as alegações finais, olhos nos olhos com o espectador, que a mensagem se completa. A construção do seu texto, de acordo com a grelha de Jakobson, é mais do domínio da função expressiva - e de forma contundente - do que da função referencial. Ao citar passagens de um relatório oficial o discurso passa ao plano informativo. A escolha e o lugar das citações obedecem, porém, a uma ordem argumentativa que autoriza conclusões com recurso à função expressiva. Da combinação de ambas as funções, indissociáveis da capacidade performativa de Murrow, resulta um efeito de amplificação de sentido, uma ressonância que perdura.


McCarthy, Roy Cohn e Don Surine preparam uma audição a militares em 26 de abril de 1954. Cohn e Surine eram dois dos indispensáveis do senador. Mais tarde, Cohn seria indispensável, também, para o jovem Donald Trump. Surine foi o homem enviado por McCarthy a Indianapolis para intimidar o jornalista Joe Wershba, em serviço para See It Now, dizendo-lhe que ou paravam as investigações ou Murrow seria colocado na lista negra. Fonte: Milwaukee Journal Sentinel

Na sua aparente linearidade, a mensagem comporta, afinal, um número apreciável de subtilezas retóricas. Em primeiro lugar, a voz passiva de Murrow na introdução, criando um ambiente textual epistemologicamente hesitante, convoca os cidadãos para o exame da situação. No lugar de Radulovich poderia estar qualquer um dos habitantes da pequena comunidade de Dexter, a qual “raramente aparece nas notícias” e só ganhou o estatuto de palco nacional devido à presença do militar passado à reserva. Numa das sequências da peça exibida, tal como na tragédia grega, há um coro reiterando o sentir colectivo no comentário que faz ao drama de Radulovich. Esse coro reforça o efeito de identificação com o protagonista. O problema passa a ser de todos, incluindo a audiência de Murrow, convidada a analisar a situação. A justiça, sendo posta em causa na medida em que cede à iniquidade perpetrada por McCarthy, coloca uma interrogação sobre o estado de direito, deixando todos mais vulneráveis. Tanto assim que ameaça um dos pilares da sociedade, a família, cujos laços naturais são feridos pela suposição de que sendo um dos seus membros suspeito de ilícito, todos os demais igualmente o serão. Não apenas se ignoravam, em concreto, as razões da destituição de Radulovich, cuja lealdade, aliás, segundo o veredicto condenatório não era questionável, mas também nada se tinha provado contra o pai e a irmã. O remate de Murrow equivale ao xeque-mate de um jogo de xadrez:


“We are unable to judge the charges against the lieutenant’s father or sister, because neither we, nor you, nor they, nor the lieutenant, nor the lawyers know precisely what was contained in that manila envelope. Was it hearsay, rumor, gossip, slander, or was it hard, ascertainable fact that could be backed by credible witnesses? We do not know”.


Conclusão:


“Whatever happens in this whole area of the relationship between the individual and the state, we will do it to ourselves – it cannot be blamed upon Malenkov, or Mao Tse-Tung, or even our allies. And it seems to us – that is, to Fred Friendly and myself – that that is a subject that should be argued about endlessly”.


O mccarthyismo deu origem a numerosos filmes anti-comunistas. Mas também levou a que alguns daqueles que tinham constado das listas negras fizessem, regra geral com magros orçamentos, algumas obras importantes. Uma das mais interessantes é Salt of the Earth (1954) de Herbert Biberman, um dos Dez de Hollywood. Produzido por Paul Jarrico, com argumento de Michael Wilson e Will Greer no papel principal - todos eles alvo da perseguição de McCarthy - o filme, como se previa, teve inicialmente uma distribuição muito limitada. Contudo, tratando-se de uma obra poderosa sobre uma greve de mineiros no Novo México, conseguiu entrar em circuitos alternativos e ganhar o estatuto de filme de culto.

Atendendo ao exposto, e considerando o programa analisado como paradigma do documentário jornalístico de televisão, algumas questões se colocam em termos do reconhecimento da sua natureza e especificidade. Correspondendo a uma sistematização e identificação dos diferentes tipos de documentários, a tipologia de Nichols facilita o reconhecimento de estratégias discursivas e de linhas de narrativa. Contudo, se essa tipologia pode ser um auxiliar de análise das peças filmadas de See It Now, seguramente já não é aplicável ao programa no seu conjunto.


Com efeito, a lógica de broadcasting exige um discurso e uma narrativa expectáveis. Como tal, pressupõe sempre algum grau de formatação. Se o filme documentário dificilmente cabe na ideia de género, o mesmo não sucede em relação ao documentário jornalístico de televisão. Tomado no seu conjunto, See It Now é inovador, mas corresponde basicamente à ideia de formato. Certamente os seus documentários filmados constituem um elemento de produção de evidência, transportam consigo argumentos e gozam até de relativa liberdade criativa. Mas é o anfitrião Edward R. Murrow quem, em última instância, confere coerência, eficácia retórica e, também, a previsibilidade necessária. Mesmo se eventualmente desalinhadas, as suas intervenções fazem parte de um processo de fidelização da audiência, ao qual a presença da star é indispensável.


Importa sublinhar, no entanto, que quer do ponto de vista histórico quer do ponto de vista teórico, o documentário jornalístico pode ser equacionado de diferentes maneiras. William Bluem, por exemplo, autor da primeira obra de fundo sobre a matéria cuja primeira edição remonta ao início dos anos 60, vendo na “expressão documentário” (sobre a “expressão documentário” ver neste blogue o artigo sobre Pare Lorentz) um quadro de referências não confinado ao universo cinematográfico, nem por isso deixa de acolher alguns conceitos de John Grierson, o fundador do movimento documentarista britânico. Se por um lado sustenta o primado da objectividade, a qual, segundo ele, deve exercer controle sobre a arte, por outro lado admite a possibilidade de uma poética associada ao “mundo da imaginação”, desde que firmemente ancorada nas “realidades da vida”.


Richard Nixon, presidente dos Estados Unidos sempre lembrado devido ao escândalo de Watergate, em consequência do qual foi obrigado a resignar, foi também um destacado witch hunter do senador McCarthy. O seu nome completo era Richard Millhouse Nixon. Emile De Antonio, o mais radical dos cineastas americanos, pegou-lhe no nome do meio e escolheu-o para título de um documentário exclusivamente feito com imagens de arquivo onde se releva o lado mccarthyista e menos conhecido de Nixon. A Millhouse, De Antonio acrescentou A White Comedy. De modo que ficou Millhouse, A White Comedy, na tradição dos filmes dos Irmãos Marx.

Haveria, deste modo, como que um balançar entre dois pólos: de um lado, os critérios jornalísticos, do outro a intervenção estética. Bluem admite, assim, a possibilidade de arte e reportagem coexistirem na interpretação e construção do real, se bem que, uma e outra, devam obedecer a “métodos específicos de apresentação”. A única maneira de lidar com estes aspectos contraditórios, como sugere outro autor de referência, Carl Plantinga, é configurar a objectividade no quadro da ponderação relativa comum a todos os procedimentos jornalísticos.


De um modo geral, os contemporâneos de See It Now, bem como aqueles que tomaram como legado os seus ensinamentos, são taxativos ao afirmarem que Murrow lançou as bases do documentário jornalístico de televisão tal como hoje o conhecemos. De Walter Kronkite a Dan Rather, de Charles Kuralt a Mike Wallace – ícones da CBS – todos perfilham essa ideia. Contudo, considerando as narrativas de programas como CBS Reports ou os actuais 60 Minutes, fica patente não corresponderem inteiramente à proposta de See It Now. O formato prevalece sem concessões sobre a “imaginação criadora” e o ponto de vista, salvo raras ocasiões é explicitado em função de critérios balizados por uma leitura mais restritiva da objectividade jornalística daquela que apresidiu aos programas de Edward R. Murrow sobre McCarthy .


A revista da Legião Americana e o Red Scare Fonte: Open Culture

2. Annie Lee Moss Before the McCarthy Comitee


Em See It Now, apesar das convenções e da presença de uma voz de autoridade, as peças filmadas podiam não ser previsíveis. Thomas Rosteck vai mais longe e sugere que o programa era essencialmente visual, relevando dois tipos de imagens. Um correspondente ao material filmado e editado, outro dizendo respeito à figura do apresentador como parte integrante da mensagem. Acresce, como sugere Umberto Eco, que televisão não é cinema, antes requer a convergência de diferentes sub-sistemas de linguagem com predomínio da enunciação verbal. Daí o quase exclusivo no documentário jornalístico do chamado modo expositivo de Nichols caracterizado pela presença de uma narrativa linear, cronológica, na maioria dos casos mais determinada pelo texto do que pela imagem, gozando esta de reduzido grau de autonomia no plano da significação posto ser-lhe atribuída uma função essencialmente ilustrativa. A voz formal de Plantinga, dado o seu elevado grau de autoridade epistemológica, vai no mesmo sentido, de certa forma explicando o filme ao destinatário segundo uma ordem determinada. Em ambos os casos, porém, com maior ênfase em Plantinga, admite-se a possibilidade de procedimentos subordinados a parâmetros estéticos, obedientes a padrões de exigência formal.


É o que sucede no documentário filmado em Annie Lee Moss Before the McCarthy Comitee, no qual é possível identificar uma deslocação, embora tímida, quer no sentido da voz aberta de Plantinga quer do modo de observação de Nichols.


Apesar da imagem que Murrow deu de Annie Lee Moss em See It Now é hoje consensual que ela era uma mulher empenhada nas causas sociais e na vida sindical. Funcionária do Pentágono, tinha em J. Edgar Hoover do FBI um encarniçado inimigo. Suspeita de pertencer ao Partido Comunista, o que nunca foi provado, acabou por ser despedida em 1951 ao abrigo da legislação aprovada pelo presidente Truman. Fonte: Google Arts & Culture

Este episódio tem três partes: a primeira é uma introdução de Murrow onde anuncia um acordo com McCarthy no sentido deste exercer o direito de resposta relativo ao programa anterior, após o que se segue a citação de documentos oficiais respeitantes ao processo que levara Annie Lee Moss a ser considerada suspeita de pertencer ao Partido Comunista Americano; a segunda consta de um documentário integralmente filmado durante a sessão de inquirição; a terceira parte corresponde à conclusão, também ela diferente da fórmula habitualmente observada em See It Now. Ao invés de avaliar a situação em função dos argumentos apresentados para depois tirar conclusões, Murrow opta por introduzir uma passagem de um discurso do presidente Eisenhower a propósito do direito que assiste aos acusados de serem confrontados com os seus acusadores, o que obviamente não acontecera no caso de Annie Lee Moss.


Na introdução há pontos em comum com o programa sobre Radulovich. Estamos perante uma pessoa comum, “a little woman”, diz Murrow, semelhante a tantas outras que por razões mal entendidas por elas próprias poderiam encontrar-se numa situação semelhante. É uma sinédoque, figura de estilo aplicável à organização do discurso quando apresenta a parte pelo todo. Reportando à sessão da comissão de inquérito, no final da introdução, Murrow dirige-se aos espectadores: “And this is what our cameraman, Charles Mack, saw through is camera”.


As primeiras imagens confirmam que Annie Lee Moss é uma “little woman” aparentemente um pouco desorientada com a situação. Essa impressão é reforçada por uma câmara que dispensou o tripé e dá a impressão de operar livremente mostrando a sala e os seus ocupantes. O ritual da inquirição principia com o interrogatório de McCarthy ao qual a visada se limita a responder afirmativa ou negativamente consoante o teor das perguntas. A edição, não sendo residual, limita-se ao estritamente necessário para fazer avançar a narrativa. Charles Mack filma o diálogo de forma peculiar optando, por vezes, por centrar a atenção em quem escuta e nas suas reações, ao invés de se concentrar em quem está no uso da palavra. Desde o início instala-se uma sensação de absurdo devido à ingenuidade das respostas de Moss e à evidente frustração que se vai instalando nos inquiridores.


Annie Lee Moss não terá sido levada muito a sério pelo Comité das Actividades Anti-Americanas. Um processo mal construído, e cheio de incoerências, bem com a acção do seu advogado George Hayes, permitiram-lhe sair incólume da situação. A presença da televisão fez o resto. Fonte: Rock the Western World

A determinada altura, alegando compromissos urgentes, McCarthy retira-se, deixando o interrogatório a cargo do acusador Roy Cohn. Charles Mack filma a cadeira que ficou desocupada. Logo depois um suposto elo de ligação de Moss com o Partido Comunista é apresentado pela acusação como sendo um homem branco, mas ela argumenta que realmente conhece uma pessoa como o mesmo nome, só que se trata de um negro. Aumenta o burburinho na sala e a câmara mostra um desorientado Cohn. Os democratas da comissão, entre os quais se vê Robert Kennedy, deixam transparecer um misto de ironia e de incredulidade. No sentido de perceber se a mulher tem uma ideia clara da acusação, o senador democrata Symington pede-lhe que leia o texto oficial na parte incriminatória. Annie Lee Moss, acusada de descodificar mensagens secretas para as passar para o exterior, afinal, mal sabe ler. Symington pergunta: “Have you ever talked to anybody about espionage?” A mulher parece confusa e inclina-se para o seu advogado sentado junto dela. Fora de campo, este fala em voz baixa, mas é perfeitamente audível a palavra “spies”, como se lhe estivesse a explicar o significado de “espionage”. Entre os democratas é evidente a cordialidade para com a arguida. Perguntam-lhe se ficou sem emprego e a resposta é afirmativa, se tem poupanças e a resposta é negativa, o que tenciona fazer e Annie Lee Moss diz que vai recorrer à segurança social.


Enquanto o diálogo prossegue a câmara deixa de observar os interlocutores e faz uma panorâmica para se imobilizar na cadeira vazia de McCarthy. As intervenções do senador Synington são agora implacáveis para com o modo como Roy Cohn organizou a investigação. A sala aplaude. Cohn resguarda-se no relatório do FBI que identifica Annie Lee Moss, mas é evidente ter passado de inquiridor a inquirido. Para cúmulo, Annie Lee Moss diz conhecer mais três pessoas com um nome igual ao seu, razão pela qual teve problemas em repartições públicas. Muitos não contêm o riso. Cohn procura mostrar-se impassível, mas a câmara revela um nervosismo incontrolável. Symington diz a Annie Lee Moss para o procurar “quando tudo estiver acabado” e manifesta a intenção de a ajudar a arranjar trabalho. Aplausos.


Capa da TIME Magazine de 8 de Março de 1954

De todos os programas de See It Now sobre McCarthy este é aquele em que Murrow menos fala. No documentário a sua voz surge apenas duas vezes para curtas intervenções em off. Em ambas limita-se a meia dúzia de palavras com o intuito de identificar os intervenientes. Quanto ao resto, a sua introdução é relativamente curta, o mesmo sucedendo com conclusão, o que faz de Annie Lee Moss Before the McCarthy Comitee o episódio cuja construção melhor se identifica com argumentos puramente visuais. O processo narrativo tanto privilegia o plano sequência quanto se aproxima da estrutura narrativa do cinema clássico americano. Há um princípio, um meio e um fim: introdução, problema solução. Há protagonistas cuja presença ganha espessura dramática à medida que a história é contada através de pontos de viragem bem escolhidos como quando McCarthy abandona a sala ou a sessão ameaça transformar-se num teatro do absurdo com a câmara a deslocar-se entre a cadeira vazia do senador e um Cohn visivelmente descontrolado. Fica assim aberto o caminho para a solução do problema. Ao espectador é transmitida a sensação de tudo se ter passado exactamente assim.


Annie Lee Moss Before the McCarthy Comitee foi o mais visto de todos os See It Now sobre os métodos do senador. Atingiu uma audiência recorde, desencadeando uma avalanche de telefonemas e de cartas. Fred Friendly considerou-o um dos melhores de sempre na história da Televisão e a Administração da CBS felicitou os responsáveis por See It Now, mas não sem deixar de estabelecer uma comparação pouco abonatória para com o considerado controverso Report on Senator McCarthy da semana anterior .


Nos jornais, Annie Lee Moss Before the McCarthy Comitee recolheu nove críticas favoráveis em cada dez. De um modo geral, os críticos valorizaram a objectividade do programa, a qual, de certa forma, terá sido precursora dos princípios avançados no início dos anos 60 por Robert Drew a propósito do seu screen journalism. Lá iremos.


No início de Dezembro de 1954 o Senado aprovou um moção condenando Joseph McCarthy por conduta imprópria. A votação foi de 67 votos a favor e 22 contra. Com a reputação arruinada, McCarthy morreu três anos mais tarde devido a problemas de fígado causados por alcoolismo. Fonte: UVA/Miller Center

Continua


  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 24 de set. de 2022
  • 10 min de leitura

Edward R. Murrow. Fonte: America Rethoric

“To be persuasive, we must be believable; to be believable, we must be credible; to be credible, we must be truthful.”
Edward R. Murrow

A experiência de See It Now foi marcante não só do ponto de vista político, mas também no respeitante à definição e enquadramento dos géneros jornalísticos na Televisão. Numa época marcada pela histeria do Red Scare, com listas negras a surgirem em todo o lado, a CBS foi palco de uma luta em função da qual teve de proceder a múltiplos exercícios de mediação por forma a tentar equilibrar os interesses da empresa com a pressão do poder político e dos patrocinadores, bem como com as expectativas do público. Foi um combate titânico. O knock down de McCarthy teve, obviamente, causas diversas, muitas não circunscritas ao espaço da arena mediática. Mas foi aí, no combate retórico, que Murrow desferiu o golpe fatal.


Nos anos de 1953/54, Murrow já tinha uma imagem de marca. Impecável nos seus fatos de bom corte, sempre com um cigarro na mão, olhando diretamente a câmara como se estivesse a dirigir-se pessoalmente a cada um, perito em comunicação, era um jornalista de credibilidade acima de qualquer suspeita. Atingira o completo domínio do medium, destacando-se como a personalidade mais importante da Televisão americana. Seria também a mais influente. Os seus quatro programas mais controversos dedicados à caça às bruxas foram essenciais para se perceberem os limites e constrangimentos colocados ao documentário de informação. Não sendo oriundo do Cinema, Murrow conhecia o trabalho de propaganda de alguns cineastas de Hollywood durante a guerra e tinha na montadora de See It Now, Mini Lerner Bonsignori, alguém cuja experiência em dialogar com as imagens lhe seria fundamental. Não encarava, porém, o documentário como um veículo de expressão autoral. Entendia-o, exclusivamente, ao serviço de um jornalismo que procurava tratar os assuntos em profundidade.


O fenómeno do McCarthyismo tinha razões complexas. Compreendê-lo, expô-lo e denunciá-lo exigia esse esforço de investigação, um esforço cujos resultados passavam por encontrar no campo mediático um intérprete à altura. Coube a Murrow desempenhar esse papel. Ele teve a determinação e a coragem necessárias.


I Married a Communist (1949) de Robert Stevenson é um daqueles filmes produzidos em Hollywood para alimentar a histeria em torno do Red Scare (Perigo Vermelho). Brad Collins (Robert Ryan) é um executivo de sucesso casado com Nam (Laraine Day) de quem esconde ter “um passado comunista”. O problema é que aparece uma sedutora fotógrafa da moda de nome Christine (Janis Carter) cuja missão é recrutar agentes para Moscovo. O filme, como, de resto, a maioria dos outros feitos na mesma linha, foi um fracasso. A tal ponto que o produtor, para minimizar os prejuízos, o remontou. Passou a chamar-se Woman on Pier 13.

Os quatro rounds que levaram McCarthy ao tapete


1. O primeiro episódio de See It Now envolvendo o senador McCarthy foi The Case of Milo Radulovich, emitido em 20 de Outubro de 1953. Milo Radulovich, um tenente da Força Aérea de ascendência sérvia, fora exonerado das forças armadas, passando à reserva, por recair sobre ele a suspeita de manter relações com simpatizantes do comunismo. Murrow, que há algum tempo vinha escrutinando o método das inquirições de McCarthy, leu a notícia no Detroit News e entendeu ser o momento de investigar o que parecia ser um caso paradigmático de arbitrariedade persecutória.


Com efeito, a única acusação que pendia sobre Milo Radulovich era a de manter uma relação familiar com o pai e a irmã. O primeiro, um trabalhador imigrante e combatente no exército americano na I Guerra Mundial, era suspeito de além de ler o Daily Worker, de assinar um jornal sérvio comunista. Na verdade, assinava dois, um comunista e outro anticomunista, visto ser esse o modo de ter notícias do seu país de origem. A segunda, a irmã, era suspeita de ter participado em manifestações e reuniões organizadas por comunistas.


A exoneração de Radulovich era tanto mais incompreensível quanto a própria Força Aérea, após a realização de um inquérito, concluíra não haver razões para desconfiar da lealdade do seu oficial, embora, em função da legislação em vigor, qualquer funcionário do estado pudesse ser dispensado caso fossem invocadas razões de “segurança nacional”. Tratava-se, portanto, de um caso de “culpa por associação” prevista na legislação publicada por Truman em 1947 (Executive Order 9835) e reforçada por Eisenhower em 1953 (Executive Order 10450), a qual permitia o despedimento de pessoal do Estado em nome, justamente, da “segurança nacional”.


Milo Radulovich e a família Fonte: Edward Murrow: broadcast journalist

2. O segundo programa visando McCarthy, emitido a 23 de Novembro do mesmo ano, foi An Argument in Indianapolis. Reportava a tentativa da American Civil Liberties Union abrir uma delegação local contrariada pela oposição de organizações ultraconservadoras como a American Legion e a Minute Women, de Indiana. A história era semelhante à de Harrrison, anteriormente citada, estando em causa a recusa de cedência de um espaço público, neste caso um hotel, para uma reunião de ativistas dos direitos cívicos.


Desta vez, Murrow fez o que Gilbert Seldes viria a considerar uma das principais contribuições de See It Now para o documentário jornalístico de Televisão, ou seja, a montagem alternada de testemunhos esgrimindo argumentos de sentido contrário, de modo a fazer avançar a ação num clima de crescente tensão dramática. Nas primeiras páginas dos jornais do dia seguinte, porém, o que apareceu não foram os méritos jornalísticos de An Argument in Indianapolis, mas sim a peça de abertura de última hora relacionada ainda com Milo Radulovich. É fácil perceber porquê.


Don Surine, um homem de McCarthy, abordara o repórter de See It Now destacado para Indianapolis, Joe Wershba – o mesmo que estivera em Detroit a entrevistar Radulovich – para lhe comunicar haver provas da colaboração de Murrow com Moscovo. Tratava-se de uma ameaça: ou Murrow suspendia as matérias sobre McCarthy ou passava a constar da lista negra. Murrow e Friendly responderam dando indicações a Wershba para prosseguir a investigação. Na véspera da emissão, aconteceu o inesperado. O Secretário da Força Aérea, Harold E. Talbott, entrou em contacto com See It Now a pretexto de pretender fazer uma declaração sobre Milo Radulovich.


Joe Wershba, outro jornalista que fez escola na CBS Fonte: NYT

No dia seguinte, Murrow abriu o programa com uma referência às revelações de há cinco semanas e deu a palavra a Harold Talbott. Em nome da justiça e razoabilidade, parafraseando os argumentos do jornalista, o responsável da Força Aérea anunciou a reintegração do tenente Radulovich. Murrow alcançava uma importante vitória. McCarthy sofria uma derrota humilhante.


3. O terceiro round da contenda foi A Report on Senator Joseph R. McCarthy a 9 de Março de 1954. A primeira parte era uma espécie de McCarthy por ele próprio através da recuperação de episódios das suas inquirições, entre as quais a de Reed Harris motivada por um livro publicado há 22 anos. A montagem permitia desvendar o método seguido nos interrogatórios e, em determinados momentos, sugeria traços de paranóia da personalidade do inquiridor. Mas, a peça mantinha-se dentro dos limites impostos pelos critérios da objectividade jornalística, limitando-se a mostrar, sem qualquer tipo de comentário, imagens factuais. Na segunda parte, Murrow manteve a observância dos mesmos critérios limitando-se a cotejar as notícias de diversos jornais com o intuito de demonstrar a inverdade das afirmações de McCarthy. Na terceira parte, porém, no momento em que habitualmente tecia algumas considerações sobre as matérias em apreço, produziu um libelo acusatório contundente, chegando a afirmar que os procedimentos do senador do Wisconsin envergonhavam a América e davam argumentos aos seus inimigos porque o país não podia exportar a imagem de paladino da liberdade enquanto internamente prosseguia uma política de terror. Uma avalanche de dezenas de milhar de cartas, telegramas e chamadas telefónicas, favorável a Murrow numa proporção de quinze para um, caiu no quartel-general da CBS.


Em Point of Order (1968), uma produção independente, o cineasta Emile de Antonio, provavelmente o mais radical dos autores americanos de cinema político do século XX, utilizou um processo semelhante ao de Murrow na denúncia que fez dos processos de McCarthy. Mas, ao contrário do jornalista, exerceu o seu ponto de vista sem qualquer tipo de mediação jornalística. A partir de imagens de arquivo deu corpo a uma obra na qual se reconhecem procedimentos da narrativa clássica, conferindo espessura dramática às personagens cuja complexidade cresce à medida em que avança o conflito que faz progredir o filme.

Olhando retrospectivamente percebe-se que só o contexto da época pode explicar quer o ataque de Murrow quer as reacções suscitadas por A Report on Senator Joseph R. McCarthy. As inquirições centravam-se nessa altura numa área sensível do Estado, as Forças Armadas. McCarthy visava cada vez mais alto, lançando dúvidas sobre a fidelidade de individualidades poderosas como o general Ralph Zwicker, um herói da guerra, a quem acusou de “não ter perfil para usar um uniforme” visto ter autorizado uma promoção automática de um oficial sob suspeita. Entretanto, os democratas começavam a explorar as divergências crescentes no Partido Republicano acusando-o de se encontrar dividido entre a fidelidade ao presidente Eisenhower e a fidelidade a McCarthy. Este, por sua vez, intimidava os operadores de televisão exigindo sucessivos direitos de resposta.


You read books, eh? Elementos dos comités anti-subversivos McCarthyistas aterrorizam uma professora e fazem uma busca na sala de aula à procura de livros russos. Fonte: Herblock Cartoons, 1949 in American Experience/ PBS

Quando Murrow desferiu o seu ataque fê-lo, portanto, num contexto em que a própria indústria se sentia vulnerável. Vulnerável ao ponto de, tal como acontecera com The Case of Milo Radulovich, o departamento de publicidade da CBS ter recusado colocar o anúncio do programa sobre Indianapolis nos jornais, obrigando Murrow e Friendly a pagarem-no do seu bolso. Perplexo e aturdido com o impacto de See It Now McCarthy exigiu de imediato o direito de resposta, mas disse precisar de algum tempo para o exercer. Alguns críticos, inclusivamente Gilbert Seldes, foram duros, acusando Murrow de ter ultrapassado os limites do equilíbrio e razoabilidade.


A semana seguinte foi agitada. Numa entrevista à rádio McCarthy identificou Murrow com a extrema-esquerda comunista, prometendo mostrar provas do seu envolvimento com Moscovo. Nesse mesmo dia, Murrow respondeu no seu próprio programa de rádio, explicando os contornos da situação à qual McCarthy aludira, uma intervenção sobre política cultural ocorrida 21 anos antes no âmbito das relações institucionais com a União Soviética. Se ser de extrema-esquerda era estar à esquerda do senador ou de Luís XIV, então esse seria certamente o seu caso, rematou Murrow. A alusão ao monarca francês passou a ser glosada de diferentes maneiras cobrindo McCarthy de ridículo.


McCarthy e Roy Cohn, o seu braço direito. Fonte: The Guardian

Pela mesma altura, rebentou um escândalo relacionado com as Forças Armadas, cuja revelação teve origem na Casa Branca. McCarthy e o seu braço direito Roy Cohn eram acusados de pressionar altas patentes no sentido do favorecimento do recruta G. David Schine, descendente do magnata de uma cadeia de hotéis, no sentido de libertá-lo da obrigatoriedade de determinadas tarefas, bem como de arranjar-lhe colocação em Washington ou Nova Iorque. Para quem defendia tão radicalmente os valores patrióticos, a revelação, vinda de onde veio, teve um efeito devastador.


4. A 16 de Março de 1954, See It Now apresentou Annie Lee Moss Before the McCarthy Comitee, uma novidade do ponto de vista formal visto o documentário apresentado ter optado em parte por um registo de cinema de observação avant la lettre. Na verdade, o cinema observacional só surgiria algum tempo depois tendo origem, por sinal, na intenção proclamada por Robert Drew de fazer um novo tipo de jornalismo televisivo no qual a imagem tomaria o lugar da palavra.


Annie Lee Moss, uma negra de meia idade, pequena estatura e ar simplório, fora denunciada por Mary Stalcup Markward, agente do FBI infiltrada no Partido Comunista Americano, por ter acesso a uma área reservada das instalações militares onde trabalhava e de ter passado informações secretas aos seus presumíveis correligionários. McCarthy esperava, com mais este caso, cumprir a promessa de demonstrar que os comunistas estavam activos em todos os níveis da segurança nacional. Uma vez mais, a situação revelar-se-ia desastrosa para a acusação. A agente do FBI acabou por reconhecer nunca ter visto Annie Lee Moss e a inquirição serviu apenas para mostrar, na perspectiva de See It Now, a mais improvável das agentes de espionagem.


Annie Lee Moss no interrogatório do Comité das Actividades Anti-Americanas, tendo ao lado o seu advogado. Fonte: daily.stor.org

Finalmente, o direito de resposta exercido por McCarthy e o contraditório de Murrow foram, sobretudo duas peças de retórica onde a superioridade do segundo no modo de lidar com a televisão acabaria por se impor. Foi, porém, uma vitória amarga. Se o programa contribuiu para a liquidação política do senador do Wisconsin, contribuiu igualmente para o eclipse gradual do maior ícone do jornalismo americano. E se, como veremos adiante, algo de significativo acrescentou para o entendimento formal do documentário jornalístico, foi a evidência dos limites e constrangimentos da investigação decorrentes do peso institucional dos múltiplos actores que se movem em torno da televisão.


See It Now: o plano institucional e o plano retórico


Dos episódios do confronto Murrow vs McCarthy emergem dois eixos de reflexão. Um, como já se percebeu, de carácter institucional. O outro de natureza semântica.


Em primeiro lugar, no plano institucional, há uma complexa rede de relações cujos vértices se encontram: na área do poder (aqui encarado em sentido lato e envolvendo diversos actores da sociedade, singulares ou colectivos, nos quais as notícias têm, muitas vezes, a sua origem); na empresa (orientada em função de determinados princípios editoriais, aos quais não é estranha uma estratégia comercial); e no público (sem o qual uma empresa de media não faria sentido).


Do ponto de vista teórico, estes vértices correspondem, grosso modo, aos triângulos da comunicação de Pierre Schaffer, que se notabilizou na administração da televisão pública francesa, e delimitam o campo da intervenção jornalística enquanto processo de mediação alicerçado em critérios de ordem ética e técnica.


McCarthy exibe na capa de um jornal mais um troféu do seu braço de investigação HUAC - House of Un-American Activities Committee. Fonte: Historian Alan Royale

Neste contexto, o documentarista jornalista deveria encontrar o ponto de equilíbrio em função do qual: o público pudesse aceder a uma informação objectiva, imparcial e equilibrada; a empresa visse reflectida a sua política editorial; o poder, mesmo se escrutinado, aceitasse as regras de uma intervenção balizada por critérios transparentes. O processo de mediação, como é evidente, será tanto mais complexo quanto maior for a tensão entre os vértices constituintes do triângulo das relações institucionais.


Consoante o entendimento deste modo de fazer, assim, também, os diversos episódios de See It Now foram diferentemente avaliados. Gilbert Seldes, por exemplo, insurgiu-se contra a “parcialidade” de Murrow em A Report on Senator Joseph R. McCarthy, mas elogiou o rigor e equilíbrio de Annie Lee Moss Before the McCarthy Comitee.


Em segundo lugar, o discurso e a narrativa no documentário jornalístico de televisão combinam elementos retóricos que passam pelo filme documentário, pelos jornais cinematográficos e pela narração da rádio informativa. Combinam, portanto, diversas sintaxes daí resultando uma natureza semântica complexa. Em This Reporter, Mini Lerner Bonsignori fala do modo como a equipa de See It Now se foi identificando com as imagens. Segundo ela, de início Murrow passava muito tempo na cabine de edição concentrando-se nos textos e prestando pouca atenção ao ecrã. A montadora do programa justificava essa atitude como sendo a de alguém que, sendo proveniente da rádio, parecia dar prioridade à arte da narração. Daí ter levado algum tempo até o programa encontrar um modelo, o qual, aliás, viria a ter de ser clarificado nalgumas ocasiões.


Capa da Time de 30 de setembro de 1957.

Foi o que aconteceu com Annie Lee Moss. Dada a dificuldade de articulação do eixo institucional e do eixo de natureza retórica e semântica – eles próprios inerentemente contraditórios – Murrow teve de intervir na abertura. Devido à controvérsia jornalística suscitada pelo programa anterior, às questões levantadas em torno da sua objectividade e imparcialidade, mas também por razões de política da empresa, Murrow viu-se obrigado a reiterar:


“Permit me to read what has been said in substance on this program before. This program is a weekly document for television, both live and on film, and is not designed to present hard, fast-breaking news. I and my co-editor, Fred Friendly, have been delegated the responsibility for its content. Never has our sponsor, the Aluminum Company of America attempted to pass upon subject matter or to influence the selection of material. Seet It Now operates under the broadcasting policies set by CBS”.

Algo de semelhante tinha sido dito no programa inaugural onde, aliás, se considerava See It Now um serviço público prestado pela CBS. Ao referir-se a “um documento semanal para televisão”, Murrow parece ter deixado entender o direito a exercer um ponto de vista da sua responsabilidade e do seu co-editor – ilibando, desse modo, o patrocinador do incómodo dos conteúdos – sem deixar de reafirmar o alinhamento com a política editorial da CBS.


Esta peça de oratória corresponde a um típico exercício de mediação no âmbito dos triângulos da comunicação, sendo também reveladora das contradições latentes do documentário jornalístico no sistema de broadcasting. Com efeito, sendo a estratégia da narrativa alicerçada em três pilares potencialmente conflituantes, pode gerar-se como que um movimento oscilante entre o papel do autor (um indivíduo que é simultaneamente elemento de uma organização), a representação textual (sobre algo, pessoas e acontecimentos, com existência no mundo histórico) e o destinatário (portador de determinadas pré-disposições e expectativas em relação às quais, tratando-se de audiência, se impõe determinar elementos comuns de identificação).


Panfleto de 1947 produzido pela Catholic Catechetical Guild Educational Society. Fonte: American Experience/ PBS

Dito de outra maneira, a retórica releva da rede de relações entre o lugar textual, a audiência e o contexto histórico no qual se inscreve o real. Do texto, porém, considerando a globalidade do programa, é indissociável a figura e a palavra do apresentador. É através dele que as diferentes partes encaixam por forma a conferir coerência ao discurso, cabendo-lhe, igualmente a explicitação do ponto de vista.


É o que aprofundaremos a seguir através dos exemplos paradigmáticos de The Case of Milo Radulovich e Annie Lee Moss Before the McCarthy Comitee.


Continua


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Imagens do Real Imaginado (IRI) do Instituto Politécnico do Porto foi o ponto de partida para o primeiro Mestrado em Fotografia e Cinema Documental criado em Portugal. Teve início em 2006. A temática foi O Mundo. Inspirado no exemplo da Odisseia nas Imagens do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura estabeleceu numerosas parcerias, designadamente com os departamentos culturais das embaixadas francesa e alemã, festivais e diversas universidades estrangeiras. Fiz o IRI durante 10 anos contando sempre com a colaboração de excelentes colegas. Neste segmento da Programação cabe outro tipo de iniciativas, referências aos meus filmes, conferências e outras participações. Sem preocupações cronológicas. A Odisseia na Imagens, pela sua dimensão, tem uma caixa autónoma.

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