Este texto tem quase 30 anos e tem por base um trabalho académico da altura. Foi publicado num livrinho chamado A Caixa Negra e é sobre a Televisão. Depois de o recuperar e reler, apesar do tempo passado, penso que ainda terá alguma utilidade até porque a memória permite pensar o presente. Reflete sobre o trabalho dos jornalistas e sobre as relações de poder. Nesse aspecto continua a fazer sentido. Abaixo do título, aparecia Discurso de um Jornalista sobre o Discurso da Televisão. É isso mesmo. O jornalista era eu.
(Continuação de A Caixa Negra 1)
PROPAGANDA, ARMAS E COMUNICAÇÃO
"O instrumental bélico é revelador da tecnologia moderna; ao mesmo tempo que utiliza os inventos disponíveis ligados ao domínio da percepção sensorial, nomeadamente os media visuais e auditivos, associa-se à sua lógica a ponto de acabar por produzir a sua própria tecnologia. Não admira, por isso, que a fotografia, o cinema, o megafone, a telefonia, o telégrafo, a televisão tenham sido logo associados desde os primeiros tempos ao campo militar. A história, senão a origem dos media, depende em grande parte da história das próprias armas." - Adriano Duarte Rodrigues
O PODER DOS MEDIA
No âmbito das Teorias da Comunicação Social há numerosos trabalhos cujos resultados se afastam das teses maximalistas, como aquelas que temos vindo a referir, apontando no sentido da relativização do poder dos mass media. Ainda nos anos 40 e durante a década de 50 o paradigma dos efeitos conheceu inúmeras abordagens. Ficaram célebres, por exemplo, as experiências de Katz e Lazarsfeld que levaram à identificação dos líderes de opinião:
"A função dos líderes de opinião é servir de intermediários entre os meios de comunicação e as pessoas do seu grupo social. Admite-se, de um modo geral, que as informações são obtidas directamente dos jornais, rádio e outros veículos. Contrariamos essa convicção. A maioria das pessoas adquiriu as suas ideias e informações através de contactos pessoais com os seus líderes de opinião, cuja exposição aos media se verificou ser, entretanto, superior à média."(1)
Uma vez estabelecido o princípio da comunicação em duas etapas, para a história ficariam igualmente experiências conclusivas quanto, por exemplo, ao fenómeno da atenção selectiva, ou seja, o receptor expõe-se preferencialmente às mensagens cujos conteúdos vão no sentido de reforçar as suas crenças e pontos de vista, tendendo a rejeitar as opiniões contrárias. Exemplos como este poder-se-iam multiplicar, todos eles convergentes no sentido de relativizar o poder dos media enfatizando, simultaneamente, as interacções de ordem sociológica e psicológica na formação da opinião pública.
De qualquer modo, importa sublinhar que a maioria destes estudos foi feita há quarenta, cinquenta anos na América e um pouco mais recentemente na Europa (Nota do autor: na verdade, seria necessário juntar agora outros trinta anos). Desde então muita coisa mudou. Hoje, a par do reconhecimento da validade dos estudos mencionados, bem como de outros respeitantes ao processo comunicativo através das abordagens mais diversificadas, é consensual o reconhecimento do papel dos mass media na construção da realidade, com destaque para a Televisão. Inúmeros factos o confirmam.
Nos anos 60, episódios como o célebre debate televisivo ente os candidatos à Casa Branca, Richard Nixon e John F. Kennedy, as transmissões em directo dos funerais do então já eleito presidente Kennedy e as reportagens sobre a guerra do Vietname levaram políticos e militares a compreender a necessidade de saber utilizar a Televisão, à semelhança, aliás, do que acontecera nas décadas anteriores com a Rádio. (Nota do autor: hoje, seria indispensável, por exemplo, acrescentar à equação o impacto das redes sociais)
O VERÃO DE 62
Nesse Verão o Departamento de Estado intercedeu junto de Senado dos Estados Unidos no sentido de recomendar uma emenda à Lei das Comunicações de 1934. O Secretário-de-Estado das Relações Exteriores, George W. Ball, sugeriu que fosse dado ao presidente o poder de "autorizar um governo estrangeiro a operar um transmissor de rádio na sede ou nas imediações da sua missão em Washington, quando este governo houvesse concedido privilégios recíprocos aos Estados Unidos para operar um sistema de rádio dentro do seu próprio país."(2)
Herbert I. Schiller, na sua obra sempre muito citada O Império Norte-Americano das Comunicações, nota que o interesse da emenda não era, obviamente, facultar aos governos estrangeiros o acesso a estações de rádio em Washington. Tratava- -se, isso sim, de facilitar as comunicações com os representantes americanos no exterior. Nas suas declarações à comissão do Senado, Ball não poderia ter sido mais claro:
"O nosso problema é o desenvolvimento das comunicações aperfeiçoadas com muitos dos postos mais recentes através do mundo, particularmente na África, Ásia e América Latina. A capacidade de comunicarmos prontamente com estas regiões é um elemento essencial do nosso procedimento nas relações internacionais. Muitas e muitas vezes, vimos a nossa capacidade de enfrentar eficazmente crises nas regiões menos desenvolvidas ser impedida por falta de instalações de comunicação modernas. Por exemplo, um telegrama enviado por telégrafo comercial ao Congo, a Vientiane, a capital do Laos, ou Argel, pode levar até vinte horas. Hoje, em todas essas áreas, um adiantamento de horas pode ter importante significado para os nossos interesses."(3)
Este episódio é apenas um. Na verdade, desde sempre as comunicações estiveram ligadas a estratégias de poder.
O CHEFE DOS CORREIOS
Se recuarmos até quinhentos anos antes da nossa era vamos encontrar como um dos pilares do poderoso império dos Persas um muito bem organizado sistema de correios, no qual o cavalo desempenhava um papel primordial. Dario III, antes de ser imperador, fora chefe desse serviço.
Alguns séculos mais tarde, as estradas romanas rasgadas em todo um vastíssimo território possibilitaram não apenas a passagem das legiões e a eficiência administrativa mas, também, o contacto rápido entre regiões distantes através do mais formidável sistema de troca de mensagens da antiguidade, o correio romano. Tal como o correio persa assentava em casas de muda. Aí se encontravam cavalos, animais de carga, tratadores, veterinários, cavaleiros, burocratas, enfim, todo um conjunto de serviços constituindo uma sólida infra-estrutura concebida no sentido de optimizar as potencialidades do sistema.
Aliás, este "cursus publicus”, bem como todos os outros correios da Antiguidade, foram organizações ao serviço do Estado. No tempo de Augusto, o "cursus publicus" funcionou mesmo como uma autêntica rede de espionagem. Enfim, romanos e persas tinham bem a consciência da importância da velocidade de circulação das informações. Tal como o Secretário-de-Estado George W. Ball.
MARCONI
Especialmente interessante nesta matéria é a história protagonizada por um estudante medíocre de Livorno, Guglielmo Marconi de seu nome, um rapazinho de saúde débil, cuja falta de assiduidade às aulas era compensada por uma imensa curiosidade a respeito dos fenómenos da natureza.
No ano de 1884, com apenas dez anos, Marconi improvisou a construção de um telefone. Aos dezassete construiu um curioso aparelho que fazia disparar uma campaínha quando um relâmpago cortava o céu: estava para chegar a transmissão de sinais eléctricos, o que aconteceu em Agosto de 1894. Marconi era estudante de Física na Universidade de Bolonha quando conseguiu transmitir sinais a trinta metros. No ano seguinte, melhorou a distância por diversas vezes e chegou mesmo a fazer o sinal saltar uma montanha. Em Pontecchio, onde tais prodígios se verificavam, as gentes suspeitavam no jovem Marconi a presença do maligno e acusaram-no de bruxaria. Costella diz que a sorte dele foi ter nascido no século XIX: "Se tivesse nascido na Idade Média, em vez de Telegrafia Sem Fio, talvez nos restasse apenas a notícia de um inventor churrascado".(4)
Quando Marconi procurou interessar as autoridades italianas nas suas experiências deparou com as evasivas próprias de uma incompreensão generalizada. Partiu, pois, para Londres onde requereu a patente do seu invento. Em seguida, fundou a "Wireless Signal Telegraph Company", posteriormente denominada "Marconi Wireless Telegraph Company".
Em 1899, pela primeira vez, dois países, a França e a Inglaterra foram ligados por T.S.F.. Os correios ficaram, naturalmente agradecidos. Mas o que importa salientar é o facto de mal ter chegado a Inglaterra Marconi logo ter sido solicitado a fazer uma demonstração do seu invento perante especialistas da Royal Navy. E a verdade é que, pouco depois, os navios da maior potencia imperial da época ficavam habilitados a comunicar entre si até distâncias de 100 quilómetros. Os Estados Unidos logo copiaram o exemplo britânico.
Marconi viveu o suficiente para assistir à explosão da rádio, bem como às experiências pioneiras de Televisão. Pôde igualmente constatar a precariedade dos estudos sobre a comunicação social durante as primeiras duas décadas deste século. (Nota do autor: século XX) E assistiu à concentração monopolista da imprensa americana nas mãos de alguns magnates. Hearst, por exemplo, chegou a ser proprietário de trinta jornais, duas agências noticiosas, uma das quais a International News, seis revistas e até actualidades cinematográficas, isto numa altura em que o cinema apenas começara a afirmar-se. Proprietário de um sempre recordado castelo gótico na costa californiana, Hearst iria, alguns anos mais tarde, inspirar Orson Welles na composição da figura central do mais famoso de todos os seus filmes, Citizen Kane, titulado em português
O MUNDO A SEUS PÉS
O realizador negou sempre essa inspiração e, valha a verdade, dificilmente poderia ter feito de outro modo: considerando-se desrespeitado, Hearst impedira qualquer crítica, anúncio ou simples menção ao filme nos seus jornais, fazendo saber á produtora de Welles que melhor seria interromper-lhe a carreira.
Orson Welles era um homem de múltiplos talentos. Alguns anos antes de fazer Citizen Kane espantara a América com um programa de Rádio, deixando-a em estado de choque. Foi no dia 30 de Outubro de 1938, às oito horas da noite. Ia para o ar uma adaptação da Guerra dos Mundos do escritor H.G. Welles: os marcianos estavam a invadir a Terra. Maurice Bessy recorda esse episódio, aliás, igualmente evocado por Woody Allen nos seus Dias da Rádio:
"A multidão invade as igrejas. Soltam-se os gatunos. As populações agitam-se. A polícia das grandes cidades recebe milhares de chamadas telefónicas. Suicídios, partos prematuros, fugas para as montanhas multiplicam-se. É uma verdadeira histeria colectiva, tanto mais notável por o seu autor continuar tranquilamente o seu programa quando a polícia irrompeu pelos estúdios: belo exemplo de fleuma do aprendiz de feiticeiro perante a inconsciência das multidões."(5) (Nota do autor: sabe-se há muito que não foi exatamente assim).
A Rádio podia criar o pânico. E podia vender tudo. Na década de 30 o mundo estava a seus pés. Tem carácter de massa a partir de 1927, dado o "boom" na construção de receptores. Na América, são os fabricantes de material radio-eléctrico os principais promotores das estações. Já em 1922, David Sarnoff, antigo colaborador de Marconi e, mais tarde, patrão da RCA, considerava o financiamento das estações da competência dos fabricantes, dos distribuidores e dos comerciantes dos aparelhos de rádio. No início dos anos 30, a publicidade ascendia a sessenta milhões de dólares, uma quantia suficientemente importante para levar à falência diversos jornais, já de si debilitados pela grande depressão de 1929.
A GUERRA DOS MUNDOS
Da importância da Rádio cedo se deram conta os nazis na Alemanha. Quando chegaram ao poder em 1933 o seu potencial de propaganda radiofónica não tinha sequer sido ainda testado. Mas, nesse mesmo ano, ao inaugurar a exposição sobre a Rádio, em Berlim, Göebbels já admitia que no século XX a Rádio teria um papel semelhante ao desempenhado pela imprensa no século XIX.
"A verdadeira Rádio é autêntica propaganda" — diria Göebbels, um pouco mais tarde, para logo acrescentar: "A propaganda supõe lutar em todos os campos da batalha do espírito, gerando, multiplicando, destruindo, exterminando, construindo e desfazendo. A nossa propaganda é determinada por aquilo a que nós chamamos a raça, o sangue e a nação alemãs."(6)
O sistema de controle desenvolvido por Göebbels teve pontos de contacto com o sistema comunista. Logo em 1930 a rádio soviética fora colocada sob estrito controle estatal e utilizada como instrumento de agitação e propaganda. Ainda assim, Julian Hale sustenta que os propósitos proclamados por nazis e comunistas, fossem eles soviéticos ou chineses, se distinguiam como a água do fogo:
"Hitler e Göebbels só estavam interessados em manter o poder a todo o custo e por qualquer preço; os soviéticos e os chineses acreditam num conjunto de verdades fundamentais e em que a história está inexoravelmente do seu lado."(7)
Hale escrevia, naturalmente, antes da derrocada do bloco da Europa de Leste.
Quanto aos Estados Unidos, só tardiamente a Casa Branca sentiu necessidade de dispor de serviços centrais de propaganda orientados de acordo com uma estratégia global. A Voz da América nasceu de uma situação de emergência, após o ataque japonês a Pearl Harbour, em 1942. O mundo estava em guerra e a América fora dela. Quando entrou teve de se armar para
A GUERRA DAS ONDAS
Nessa altura, era impensável delinear qualquer iniciativa de propaganda ou contrapropaganda, informação ou contra-informação, espionagem ou contra-espionagem sem o recurso ao envio de mensagens através das ondas hertzianas.
Durante a guerra, ficaram célebres os serviços de espionagem soviéticos — a famosa Orquestra Vermelha — os quais conseguiram organizar um notável conjunto de "pianistas", nome dado aos agentes operando em território ocupado pelo inimigo a partir do teclado de aparelhos de rádio clandestinos. As informações veiculadas, em código, foram muitas vezes determinantes na evolução dos acontecimentos. Redes de "pianistas" acabaram, de resto, por ser montadas por todos os países beligerantes.
Na Europa, assolada pelas tropas alemãs, a Rádio tinha, portanto, prioridade. Era o meio de comunicação por excelência. A tal ponto que a II Guerra Mundial ficaria conhecida como a Guerra da Rádio.
Nesta conjuntura, segundo Hale, em termos técnicos, de propaganda e de objectivos, a propaganda radiofónica norte-americana teve mais coisas em comum com o modelo comunista do que com as alternativas nazis ou da BBC:
"A Voz da América, Rádio Liberdade, a Rádio Europa Livre, a rede das Forças Norte-Americanas, e a Rádio do sector Norte-Americano (RIAS) operam com fundos oficiais veiculados através de diversos canais. A sua política é fixada por um conjunto de directivas (...) apoiado num forte compromisso ideológico: a verdade a transmitir é uma verdade conscientemente norte-americana-democrática-anticomunista."(8)
A participação da BBC na guerra das ondas foi diferente. Os ingleses evitaram abusar da retórica ideológica marcante dos discursos soviético e americano e, por maioria de razão, afastaram-se diametralmente do discurso eriçado de lanças, sangue e espadas dos nazis. A objectividade da BBC pode ou não ter sido um mito cuidadosamente cultivado. O que não é um mito é a sua reputação de dizer a verdade. Durante e depois da guerra. Sir Hugh Greene, o organizador dos programas da BBC para a Alemanha, pôs em prática o seguinte modelo básico:
"...dizer a verdade dentro dos limites da informação disponível, e dizê-la de uma forma consistente e franca. Isto supunha a decisão de não desvalorizar um fracasso. (...) Deste modo, o nosso público na Alemanha, bem como as tropas alemãs, tendo-nos ouvido falar com franqueza das nossas derrotas, acreditar-nos-ia quando falássemos das nossas vitórias; esperava-se, assim, que a capacidade de resistência deles ante uma situação desesperada haveria de diminuir eficazmente."(9)
É problemático concluir se as transmissões da BBC desmoralizaram as tropas alemãs, mas não restam dúvidas quanto ao facto dessas transmissões lhe terem granjeado uma reputação de credibilidade. Aliás, a BBC foi a única estação a evitar a utilização de locutores de nacionalidade alemã, de modo a impossibilitar a identificação do programa como a voz dos traidores...
No começo da II Guerra Mundial vinte e seis países tinham serviços internacionais de Rádio. A Alemanha emitia em trinta e seis línguas, a União Soviética em vinte e duas, a BBC batia toda a concorrência emitindo em trinta e nove línguas diferentes. Durante o conflito este esforço acentuou-se a ponto de, no início de 1945, os alemães reivindicarem emissões em cinquenta e duas línguas.
Adriano Duarte Rodrigues afirma que no período compreendido entre 1939-45 a Rádio desempenhou, pelo menos, três funções militares imprescindíveis: "a de arma de desmoralização do adversário, a de apoio moral às populações e às tropas, a de elo de ligação com os combatentes entrincheirados em território inimigo ou com os resistentes isolados."(10)
Paul Virilio diria que "abater o adversário é menos capturá-lo do que cativá-lo, é infligir-lhe, antes da morte, o espectro da morte."(11)
A Rádio também cumpriu essa função.
ORIGEM DOS MEDIA, HISTÓRIA DAS ARMAS
Não há técnica militar sem dispositivos de sideração neutralizadora do adversário. Voltando a citar Duarte Rodrigues, "sideração é o processo de estupefacção provocado pelos dispositivos sensoriais do ruído uniforme e cadenciado tanto da marcha compacta do exército como do estrondo das armas e do clarão que torna diáfana a transparência das coisas e dos corpos."(12)
Os media podem operar nesse sentido. Diáfanas são as imagens de Televisão. Durante a Guerra do Golfo foram veiculadas em catadupa. Muita vezes, apareceram repórteres fazendo o relato de acontecimentos em directo. Porém, agora e à distância, sabe-se como a lógica da guerra mediática determinada pela instância militar se sobrepôs à lógica informativa baseada nos critérios jornalísticos. Obteve-se um efeito muito semelhante ao efeito de sideração visando, neste caso, não apenas desmoralizar o inimigo, mas também ganhar a opinião pública através da mitificação da realidade, reduzindo a guerra à dimensão dos jogos de computador.
O tempo passado diante do pequeno ecrã como que se retraía entre um passado que fugia sem cessar, não podendo ser retido, e um futuro que se aproximava sem, todavia, permitir ao espectador apropriar-se dele, visto ter sido construído com o único intuito de o surpreender.
Perturbador é o facto de ter sido impossível contrariar o turbilhão de imagens e de informações contraditórias originadas no cenário de guerra a partir de uma intervenção jornalística consequente, ou seja, afinal as armas dos jornalistas dos meios audiovisuais revelaram-se inadequadas para ultrapassar o intuito de fazer deles meros mensageiros, peças de uma engrenagem avassaladora orientada no sentido da propaganda, mitigada, embora, (e nem sempre) pela presença em estúdio de especialistas em diversas áreas. Faz sentido, por isso, dizer com Duarte Rodrigues:
"O instrumental bélico é revelador da tecnologia moderna; ao mesmo tempo que utiliza os inventos disponíveis ligados ao domínio da percepção sensorial, nomeadamente os media visuais e auditivos, associa-se à sua lógica a ponto de acabar por produzir a sua própria tecnologia. Não admira, por isso, que a fotografia, o cinema, o megafone, a telefonia, o telégrafo, a televisão tenham sido logo associados desde os primeiros tempos ao campo militar. A história, senão a origem dos media, depende em grande parte da história das próprias armas."(13)
A TEORIA "HIPODÉRMICA" REVISITADA
Os factos enunciados a propósito da explosão dos media e, em particular da Rádio, aliados à conjuntura internacional, foram responsáveis pelo aparecimento de numerosos estudos de um modo ou de outro relacionados com a comunicação. Nos anos 20 e 30 já havia estantes repletas de livros chamando a atenção para os elementos retóricos e psicológicos utilizados pelos propagandistas. São dessa época obras hoje consideradas clássicas como Public Opinion, de Lippmann, The Rape of the Masses, de Chakhotin, Psychology of Propaganda, de Doobs e Propaganda Technique in the World War, de Lasswell. Os media eram, então, olhados como meros suportes de mensagens, as quais, uma vez atingidos os destinatários, produziam efeitos persuasivos, condicionando o seu comportamento.
Não cabe aqui uma análise pormenorizada deste ponto de vista. Importa, no entanto, reter o aspecto da crença no poder dos media apoiada numa "teoria" da sociedade de massa e num modelo de comunicação operativo a partir de uma teoria psicológica da acção, o behaviourismo. Resumindo:
"Se as mensagens da propaganda conseguem alcançar os indivíduos que constituem a massa, a persuasão é facilmente 'inoculada'. Isto é, se o alvo é atingido, a propaganda obtém o êxito que antecipadamente se estabeleceu."(14)
Era a teoria "hipodérmica" ou "bullet theory" como lhe chamou Schramm, uma teoria da propaganda e sobre a propaganda.
O modo de pensar os media está, portanto, ligado às circunstâncias históricas. Nesse contexto se inscreve a teoria "hipodérmica”, bem como à evolução tecnológica, ela própria determinante de novas paisagens civilizacionais. Pois bem, as questões relacionadas com a propaganda, agora redimensionada e sensorializada pelos meios electrónicos, voltaram à primeira linha das preocupações dos especialistas. Por exemplo, no que respeita aos jornais televisivos.
TELEJORNAL?
O telejornal é constituído por um conjunto de temas debitados a alta velocidade e organizados de determinada maneira, prosseguindo objectivos previamente determinados, tal como na propaganda. O Telejornal não exige reflexão por parte do espectador, o qual pouco retém daquilo que viu e ouviu. Simplesmente, o Telejornal vai para o ar todos os dias veiculando sempre os mesmos pontos de vista, eventualmente com novas roupagens de modo a sugerir a ideia do novo, e projectando os estereótipos que hão-de permitir ao espectador proceder ao reforço das suas crenças e à construção dos seus mitos. É, novamente, o que se passa com a propaganda.
Segundo Aor da Cunha, o telejornal não cumpre a função de noticiar ou divulgar factos respeitantes à sociedade, reflectindo-a. Pelo contrário, a função do Telejornal é a de "moldar, esticar ou comprimir imagens com textos que reproduzam a vida política, social, cultural e económica à sua maneira, conforme critérios ideológicos e particulares do momento não só dos jornalistas, mas também segundo os proprietários de emissores e dos seus patrocinadores da indústria e do comércio. Quando a Televisão mostra o excepcional, diferente, estranho, curioso, insólito rompe a estabilidade psíquica do telespectador e ameaça sua 'consciência feliz'."(15)
A ser assim, o jornalista aparece como intérprete de uma actividade meramente metafórica, ou seja, não é mais o agente em busca de notícias, o repórter, mas o intermediário entre propagandista e o propagandeado, uma pequena peça de engrenagem dos factos agendados e noticiados de acordo com estratégias no seio das quais os chamados critérios jornalísticos funcionam como álibis de uma propaganda global.
O repórter move-se, pois, no terreno de uma ambiguidade resultante da convergência de múltiplos factores, entre os quais a (in)definição do que sejam as notícias no serviço da agenda.
A imagem que a população acaba por constituir do seu próprio país e do país dos outros é fortemente influenciada pelas notícias as quais, segundo Aor da Cunha, cumprem "uma finalidade não incomodante, não provocadora de tensão", ao mesmo tempo que conseguem "fazer a industrialização da cabeça."(16)
(Continua)
Notas remissivas
1. KATZ, E., LAZARSFELD, P.
Personal Influence: The Part Played by People in the Flow of Mass Comunications, Free Press, New York, 1955. Mauro Wolf, em "Teorias da Comunicação", editorial Presença, Lisboa, 1987, chama a atenção para o facto da comunicação em duas etapas, tal como foi formulada, ter sido posta em causa após a Televisão se ter transformado no medium dominante: "É provável, por isso, que a maior parte das mensagens das comunicações de massa seja recebida de uma forma directa, não necessitando, para ser difundida, do nível de comunicação interpessoal: esta apresenta-se como 'conversa' acerca do conteúdo dos mass media (opinion-sharing) mais do que como instrumento da passagem da influência da comunicação de massa para os destinatários (opinion-giving)".
2. SCHILLER, Herbert I.
O Império Norte-Americano das Comunicações, Editora Vozes, Petrópolis, 1976
3. Ibidem
4. COSTELLA, António
Comunicação - Do Grito ao Satélite, Editora Mantiqueira, São Paulo, 1984
5. BESSY, Maurice
Orson Welles, Editorial Presença, Lisboa, 1965
6. HALE, Julian
Radio Power - Propaganda and International Broadcasting, Eleks Books Limited, London, 1975
7. Ibidem
8. Ibidem
9. Ibidem
10. RODRIGUES, Adriano Duarte
Estratégias da Comunicação - Questão Comunicacional e Formas de Sociabilidade, Editorial Presença, Lisboa, 1990
11. Ibidem
Duarte Rodrigues cita Virilio, Guerre et Cinéma 1. Logistique de la Disparition, Paris, Galilée, 1984. Para Virilio, "a primeira vítima de uma guerra é o conceito de realidade". Acrescenta Rodrigues: "As armas bélicas estão intimamente associadas as armadilhas dos media que simulam a realidade e prendem os beligerantes nas suas teias sensoriais. Guerra e media convertem-se numa gigantesca máquina de gestação de efeitos especiais, de desrealização, o que não impede que funcionam segundo uma lógica hiper-real."
13. Ibidem
14. SCHRAMM. Wilbur
The Process of Effects of Mass Comunication, University of Illinois Press, Chicago, 1972
15. AOR DA CUNHA, Albertino
Tele-Jornalismo, Editora Atlas S.A., São Paulo, 1990
16. Ibidem
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