Com este texto fica concluída a publicação do meu livro de há 30 anos ao qual chamei A Caixa Negra. Lendo-o hoje parece-me obviamente datado. No entanto, as preocupações nele manifestadas não estão dissipadas. Quando o escrevi prestei uma atenção particular à televisão americana pela simples razão de ter sido o seu modelo a impor-se, sendo copiado à escala global. E isso foi especialmente relevante no campo da informação. Mas, já nessa altura, se verificava um fenómeno que, mais tarde, viria a generalizar-se, ou seja, o resvalar do jornalismo para o campo do entretenimento, de modo a garantir não só audiências, mas também a satisfação dos patrocinadores. Já nem falo da guerra legitimada pela mentira como sucederia na Guerra do Golfo com o famigerado caso das armas de destruição maciça. Gostaria de acrescentar o seguinte. A televisão tanto pode ser um mundo fascinante quanto um lamentável contentor de lixo, no qual pululam celebridades sem espessura e especialistas na conversa da treta. Mas, sempre que foi estimulante deu corpo a ícones cuja memória perdura apesar da conspiração contra a memória de que, tantas vezes, ela própria, se faz eco. Fiz questão de evocar aqui alguns desse ícones do jornalismo televisivo americano. Muitas vezes disseram uma coisa e fizeram o seu contrário, é verdade. Houve, no entanto, um denominador comum: todos eles, dando-se conta de um desastre anunciado, fizeram muitas perguntas. E, no fim, disseram o que tinham a dizer.
UM PRESENTE SEM MEMÓRIA
Ao contrário da notícia tradicional, de ordem histórica, a notícia televisiva envelhece depressa, muitas vezes não deixando rasto. Existe no instante. O homem, neste mundo das imagens, é envolvido por um turbilhão de informações, cuja velocidade de circulação impossibilita o conhecimento mais pormenorizado sobre acontecimentos já de si, tantas vezes, apresentados fora do contexto histórico. O presente como que se esgota em si mesmo, prisioneiro da repetição mecânica de estereótipos de realidades complexas. E quem conhece os meandros do campo informativo é obrigado a reconhecer a precariedade cultural de muitos dos seus agentes, dado o modo como confundem o impacto efémero da espectacularidade induzida com a outra dimensão do jornalismo, mais analítica e, por isso mesmo, estimuladora da cidadania.
Faz-se, muitas vezes, uma informação do simulacro sustentada, aliás, pelo argumento segundo o qual informar se resume a transmitir factos, como se essa transmissão não obedecesse, necessariamente, a uma retórica. A perspectiva da informação dos factos sem memória leva até a sugerir, embora poucos tenham a franqueza de o afirmar, a substituição do conceito de jornalista pelo conceito de comunicador, Como diz Alain Woodrow:
"A ideia da comunicação pura, sem intermediário, sem comentários escusados, que encontra a sua expressão ideal em imagens sem palavras, denuncia um objectivo inconfessado. Por detrás da filosofia da informação exclusivamente factual, lisa, sem qualquer espécie de 'parasita' (o jornalista, entenda-se), esconde-se uma vontade conservadora de não incomodar o status quo. Perante um jornalismo 'activo' que procura situar o acontecimento, revelar o seu significado através de um comentário, propaga-se agora um jornalismo 'passivo', asséptico, composto de factos brutos, oferecidos sem hierarquia nem código."(1)
Esta informação de encher o olho é especialmente propícia à evasão. Permite ao espectador "sonhar" perante factos dramáticos devidamente embrulhados, empacotados e dados a conhecer por um apresentador-vedeta em torno do qual se organiza o espectáculo informativo. Por vezes, o jornal televisivo mais parece uma tétrico-novela com as suas imagens dos crimes, violências e mistérios alheios, aos quais servem de contraponto as boas causas e as sacrossantas virtudes domésticas. Sensorial e impositiva, a notícia resolve-se num produto cujo consumo regular dispensa a interrogação construindo um quotidiano desprovido da espessura da memória, sem a qual não é possível reconhecer no passado os traços de uma identidade cultural integradora de qualquer projecto ou de qualquer futuro. (Nota do autor 2021: este texto foi escrito no rescaldo do cavaquismo, numa altura em que ainda não havia televisão segmentada em Portugal com o seu casting de comentadores maioritariamente sistémicos. Agora, os jornais televisivos também já não são bem assim, pese embora a resiliência de alguns procedimentos).
Quererá isto dizer que a Televisão está condenada ao constrangimento tendencialmente totalitário das consciências e que as notícias, fechadas no seu próprio simulacro, se destinarão sempre e unicamente a legitimar os discursos dominantes?
Não, necessariamente. Tomemos o caso das notícias. Saber o que está a acontecer é apesar de tudo,
UMA GARANTIA DE LIBERDADE.
Umberto Eco dá o seguinte exemplo:
"Saber, como o escravo egípcio acabava por vir a saber, mesmo dez anos depois, que uma coisa aconteceu, não me ajuda a modificá-la; saber pelo contrário o que está acontecer faz-me sentir co-responsável do acontecimento. Um servo da gleba medieval não podia fazer nada para aprovar ou desaprovar a primeira cruzada, da qual vinha a ter conhecimento anos depois; o cidadão da metrópole contemporânea, imediatamente em dia sobre a crise cubana, pode tomar partido por um ou por outro e contribuir para determinar o curso dos eventos com a sua manifestação pública, a petição ao jornal e, em certos casos, o voto ou a revolução."(2)
Possivelmente, se fosse hoje, Eco não teria colocado o problema exactamente da mesma maneira, até porque, desde 1964 até agora muita coisa mudou no domínio da comunicação. De qualquer modo, quanto mais não fosse por razões que possibilitem uma intervenção cívica e cultural no sentido de melhorar as relações entre a Televisão e a Democracia e, portanto, melhorar a própria Democracia, seria sempre indispensável procurar entender o fenómeno em toda a sua complexidade, evitando a retórica moralista.
Evidentemente, a Televisão é um formidável instrumento de poder. Permite forjar os costumes sociais com uma eficácia e uma rapidez novas na história. Tende a ser a principal matriz dos comportamentos. E a confirmar-se a hipótese de McLuhan, não só veicula como incorpora a mensagem, confundindo-se com ela, ou seja, a estabilização dos valores, costumes e comportamentos sociais faz-se não em função dos conteúdos da mensagem, mas simplesmente pelo facto de eles serem transmitidas pela Televisão. Sendo assim, não parece excessivo afirmar que a educação para a democracia passa necessariamente pelo caminho da Televisão porque ela é "um ponto de intersecção de toda a vida política, económica e social da actualidade" como diz Konder Comparato.(3)
Posto o problema nestes termos, justifica-se uma intervenção institucional reguladora, por exemplo, quanto aos estatutos das televisões públicas e às diversas matérias susceptíveis de integrar a disciplina do Direito da Comunicação. No nosso caso, se importa sublinhar a importância dos jornalistas acompanharem e participarem nesses processos, interessa-nos sobretudo avançar noutras direcções, porventura menos conhecidas, mas igualmente determinantes na equação do binómio melhor Televisão — melhor Democracia. Genericamente, chamar-se-ia a essa área de prospecção a área do saber fazer. Lá iremos.
UMA HISTÓRIA EXEMPLAR
Uma história exemplar sobre o mundo das notícias na Televisão é relatada no livro de Peter J. Boyer intitulado Quem matou a CBS?, sub-titulado A derrocada da maior rede de Televisão americana.(4) Ao longo de mais de quatrocentas páginas, Boyer faz a descrição pormenorizada sobre a evolução do Departamento de Informação (CBS News) da mais poderosa network dos Estados Unidos, demonstrando como até que ponto a guerra das audiências acabou por banalizar um sector construído pedra a pedra por um notável grupo de jornalistas, no qual se destacaram figuras como Edward R. Murrow e Walter Cronkite.
See it now, de Murrow, foi um dos informativos de maior impacto de todos os tempos. À volta do jornalista constituiu-se uma equipa — os garotos de Murrow, como eram conhecidos — quase todos com graduação académica universitária e larga tarimba como repórteres, posteriormente figuras públicas respeitadas pela sua competência e seriedade profissionais. Cronkite foi dos que mais se destacou. O seu jornal CBS Evening News era a pérola da estação, permanecendo por mais de uma década no primeiro lugar das tabelas de audiência telejornais. Era um jornalismo feito de rigor, sempre na linha da frente, recorrendo aos repórteres mais experientes, alguns deles singularmente capazes de aprofundarem as questões no escasso tempo de que dispunham.
Quando Cronkite se retirou em 1980 e foi substituído por Dan Rather as coisas começam a dar para o torto. Rather era um excelente jornalista, mas teria sempre de se sujeitar a ser comparado com o seu antecessor. Houve uma quebra da audiência e a CBS foi mesmo ultrapassada pelas rivais ABC e NBC.
Apareceu, então, Van Gordon Sauter , um jornalista com experiência na imprensa e na rádio. À frente da CBS News, Sauter tratou de arranjar nova fórmula para as notícias. E não se saiu mal, pois, ao cabo de dois anos de angústia, Rather pôde readquirir a confiança e o jornal televisivo voltou a saltar para o primeiro lugar, ultrapassando a concorrência. Em que consistiu a fórmula de Sauter? Fez aquilo que ficou conhecido como uma informação de momentos, apelando à emotividade do espectador, e reforçou a componente do grafismo electrónico e dos efeitos especiais, conferindo, em suma, uma maior espectacularidade às notícias.
Segundo os profissionais mais antigos, aliás, gradualmente afastados e sucessivamente substituídos por "caçadores de momentos", o CBS Evening News resvalou para terrenos de crescente ambiguidade. O mesmo aconteceu noutros informativos, designadamente o matinal. Neste espaço, a velha guarda perdeu definitivamente a esperança de salvaguardar a imagem de marca da estação quando, em 1984, Sauter tirou outro coelho da cartola. Pela primeira vez na história da CBS, colocou uma pessoa sem habilitação nem preparação a apresentar o Morning News: Phyllis George, ex-miss América.
Miss George aguentou o posto oito meses, tempo suficiente para se fazer notar muito mais pelas gafes do que pela sua estupenda imagem. A contundência da crítica obrigou a CBS a encontrar uma saída diplomática. Phyllis George, alegando motivos da vida pessoal e sentimental, disse adeus à estação. A estação, evidentemente, viu-a partir com pena. Mas o mal estava feito e o descrédito acumulado ao longo dos últimos anos seria amargamente comentado por Walter Cronkite, por altura do funeral de Charles Collinwood, um dos ícones da CBS News, ao afirmar que o continuum do grande Murrow "chegara de facto ao ponto terminal". (Nota do Autor: Phyllis George viria a adquirir notoriedade na cobertura de eventos desportivos. Também teve sucesso com a empresa “Chicken by George” e, mais tarde, com o negócio de cosméticos e produtos de beleza. Em 1991 chegou a ser considerada empresária do ano).
Tratando-se de um gigante da comunicação com um passado invejável no campo informativo, a degradação das notícias no sentido da superficialidade foi especialmente significativa. Obrigada a fazer face à concorrência, a CBS baixou o nível. E os anos 90 chegaram carregados de ameaças, não apenas para ela própria, mas para a Televisão no seu conjunto. Se algumas empresas lucraram, outras sobreviveram com dificuldade, outras ainda entraram em colapso. Tudo isso faz parte do jogo do mercado. Mas, seja nos Estados Unidos, seja na Europa, onde continuam a mercar presença as televisões públicas, a perda de credibilidade da informação contribui para o adensar das nuvens negras. Os estudos de opinião dão conta disso.(5)
A CAIXA DE PANDORA
É cada vez maior o número de jornalistas e cidadãos, sobretudo após o sobressalto das consciências provocado pela guerra do Golfo, a veicularem essa ideia. Em França, por exemplo, uma sondagem efectuada junto de jornalistas concluiu que 75% pensavam que a cobertura da guerra fora mero jornalismo-espectáculo, enquanto 53% se manifestaram convencidos da perda de credibilidade dos media face à cobertura dos acontecimentos. Aliás, 83% dos inquiridos reconheceram terem sido manipulados por diversas instâncias. E se os jornalistas foram manipulados o que não terá acontecido com o público?
Redactor da secção de Rádio-Televisão do Le Monde, Alain Woodrow insurge-se, por outro lado, contra a diluição das fronteiras entre o jornalista e o locutor em "emissões bastardas onde o divertimento se sobrepõe à informação e o espectáculo ao debate de ideias."(6) Diz ele:
"Em nome do marketing, a linguagem precisa, especializada, da informação cede o lugar ao algaraviado da 'comunicação', conceito próprio do saque medieval, mas agora dominado pela publicidade. O resultado é uma amálgama entre a informação e o entretenimento proporcionado por um jornalista-animador."(7)
Woodrow compara a Televisão à caixa de Pandora:
"Caixa de malícias e de manipulações, lupa que deforma à custa das suas lentes de aumento e bola de cristal hipnótica capaz, quando colocada nas mãos de charlatães, de adormecer a Opinião Pública e de anestesiar as suas reacções morais."(8)
Do outro lado do Atlântico a crítica não é menos feroz. Richard Hardwood, editorialista do Washington Post, não poupou algumas das vedetas destacadas para o Golfo, entre as quais Dan Rather, Tom Brokaw e Sam Donaldson. Os conhecimentos jornalísticos e académicos destas pessoas sobre o Médio Oriente, disse Hardwood, são modestos ou nulos,
"mas trata-se de stars, de clowns à volta dos quais as networks montam as operações especiais que atraem um público numeroso e, por conseguinte, a publicidade e as suas receitas. Em vez de investir no acompanhamento da evolução de uma região, as televisões nunca falam da maioria dos países estrangeiros antes de estalar uma crise. Nessa alturas, lançam as suas vedetas de pára-quedas. Ora acontece que, em termos de guerra, o telespectador não tem vontade de ver anchormen no ecrã, mas sim reportagens feitas por repórteres competentes." (9)
NEGATIVE SPOTS
Quando Jean Cazeneuve (10) identificou um novo homem político a partir do início da década de 60, na sequência da campanha eleitoral de John F. Kennedy orientada para a Televisão, dificilmente se acreditaria que a política e os políticos chegariam onde chegaram. Um exemplo que fez história foi a campanha presidencial que opôs George Bush a Michael Dukakis, em 1988, marcada pela saturação dos chamados negative spots, ou seja, peças publicitárias destinadas a desacreditar o adversário.
O episódio de Willie Horton foi edificante. À semelhança de outros também o estado de Dukakis, Massachussets, permite a saída das penitenciárias de condenados a penas de prisão em determinados períodos. Um assassino negro de nome Willie Horton beneficiou de uma dessas autorizações e violou uma mulher branca do estado de Maryland. O staff de Bush apressou-se a utilizar o facto a seu favor inundando a televisão com todo tipo de acusações. No Illinois, por exemplo, o Partido Republicano difundiu a seguinte mensagem: "Todos os assassinos, violadores e traficantes de droga votam em Dukakis. No Illinois, podemos votar contra ele."(11)
Os limites do odioso foram de novo ultrapassados quando, num spot de trinta segundos, o marido da mulher violada por Willie Horton veio dizer: "Durante doze horas fui espancado, ferido e aterrorizado. A minha mulher foi brutalmente violada. Tememos que as pessoas não saibam verdadeiramente quem é Michael Dukakis."(12) Dukakis levou tempo a reagir mas quando o fez foi para divulgar a fotografia de uma "mãe grávida" assassinada por um violador hispânico "libertado por Bush".
Os principais jornais americanos criticaram duramente a campanha televisiva. O correspondente do Los Angeles Times, John Balzar, interrogava-se: debate de ideias, democracia? E respondia: "Os consultores de imagem dos políticos não fazem o seu trabalho porque pensam que têm alguma responsabilidade de educar o público. Eles são pagos para ganhar e é somente nisso que estão empenhados."(13)
A corrida às frases-chave (sound-bite) transformou-se em algo alucinante. Há dez anos uma dessas frases tinha, em média, 45 segundos; em 1984, 10 segundos; e em 1988, oito segundos. Exemplos ?
Bush: "Leiam nos meus lábios: não haverá novos impostos."
Dukakis: "A melhor das Américas não está no que ficou para trás; a melhor das Américas está ainda para chegar."
E estava tudo dito.
A situação seria lapidarmente resumida no CBS Evening News de Dan Rather de 24 de Outubro de 1988. Rather fez a seguinte pergunta ao candidato Dukakis:
"Se lhe foi necessário tanto tempo para responder à publicidade de George Bush, se teve tanta dificuldade em reunir uma boa equipa de marketing, porque haveríamos nós de lhe dar o crédito da nossa confiança para organizar o governo e dirigir o País ?"(14)
No dia das eleições apenas votou metade do eleitorado. De entre os votantes só 35% se manifestaram satisfeitos com as possibilidades de escolha. E James Baker, director da campanha de Bush, foi nomeado secretário de estado.
TELEPRESENÇA
A Televisão produziu uma mutação no relacionamento das pessoas com o tempo. Antes, como se disse, havia o passado, o presente e o futuro. Agora há a telepresença do mundo. A comunicação electrónica aboliu a distância. Todavia, só a distância entre o acontecimento e o acto de informar permite trabalhar a informação. Que importa o rigor quando se tem na mão o instante do espectáculo ? Dir-se-á: é preciso reagir no momento e não há tempo para reflectir. Mas, a ser assim, e se aquilo que se viu já passou, haverá tempo para a democracia no tempo real?
São questões pertinentes. Afinal, se não é legítimo condicionar a liberdade dos media nem por isso deixa de ser razoável que os cidadãos se interroguem sobre eles, adoptando uma atitude vigilante. Alguém duvida que a televisão há--de marcar indelevelmente os tempos vindouros ?
Um autor francês, Jacques Thibau (15), diplomata de carreira e, na segunda metade da década de 60, promotor de um novo tipo de informação na então O.R.T.F., dizia só haver um critério para ajuizar da Televisão: ou é boa ou má. Boa, se feita de uma forma honesta, criativa e competente. Má, se subordinada a intuitos de manipulação. Jacques Thibau foi rapidamente afastado, em Janeiro de 1968, porque a sua política informativa inquietava o poder gaullista. Mas não foi possível afastar a sua ideia sobre a boa e a má Televisão. Independentemente da invasão do lixo, inevitável devido à segmentação do mercado e às diversas modalidades de transmissão possibilitada pelas novas tecnologias, e até por isso mesmo, continua de pé o objectivo de fazer boa Televisão.
Se até agora tem sido feito referência a preocupações que estão na primeira linha da actualidade, é bom não esquecer as espantosas possibilidades abertas pela Televisão no domínio da divulgação dos conhecimentos e do despertar das consciências, como, sumariamente, se verá adiante. Entretanto, é útil esclarecer um ponto sobre o qual os juízos são especialmente severos, sobretudo por parte de quem se dedica à escrita, designadamente na imprensa. Diz respeito à imagem, encarada, como portadora de todos os males. A suspeição em relação ao mundo das imagens não é nova. Já Pascal chamava à imagem
"A LOUCA DA RAZÃO",
de modo a sublinhar o seu lado emocional. Segundo Eco,
"a linguagem da imagem foi sempre o instrumento de sociedades paternalistas que subtraíam aos seus próprios dirigidos o privilégio de um corpo a corpo brilhante com o significado que fora comunicado, livre da presença sugestiva de um 'ícone' concreto, cómodo e persuasivo”. (16)
É verdade. Simplesmente o problema já não se coloca assim e muito menos como pretendem aqueles que sustentam que a imagem electrónica é em si mesma redutora, simplista e falsificadora. Se encarado nessa perspectiva o problema simplesmente não teria solução. Mais, as coisas só poderiam encaminhar-se para uma espécie de atrofiamento da inteligência, situação que, até agora, a História não confirmou. Por isso, a questão não reside tanto numa suposta irredutibilidade conceptual da imagem mas, sobretudo, na disponibilidade para aprender a lidar com ela.
Um dia, entrevistado para a série de programas televisivos "A Caixa que mudou o mundo", Dick Salant, uma das figuras carismáticas da CBS, disse a propósito das "piruetas" dos candidatos em campanha eleitoral:
"Lá virá um dia em que os repórteres do telejornal hão-de dizer simplesmente qualquer coisa como 'o candidato hoje esteve em seis lugares diferentes e não disse nada'. Porque é isso o que efectivamente se passa. Mas a Televisão ainda não chegou a esse ponto." (17)
Na verdade, de certa maneira, as coisas até pioraram substancialmente nos últimos anos. Os talk-shows de Geraldo Riviera, na CBS, proporcionaram espectáculos arrepiantes com temas como o satanismo, orgias sangrentas e violações rituais de crianças. Recentemente, Dick Salant, durante muito tempo ligado às notícias e, mais tarde, presidente da estação, comentou: "A merda dá dinheiro". E sobre a Informação: "Hoje pratica-se o jornalismo fast-food. Já nada do que se passa no pequeno ecrã me surpreende. No meu tempo, tínhamos um código, uma deontologia: agora sacrifica-se tudo no altar das audiências."(18)
Dito isto, se a vigilância crítica não deve ser complacente, nem por isso se deve ignorar a outra face da moeda. Apesar de todos os constrangimentos, não é verdade, por exemplo, que as forças anti-apartheid fizeram questão em tornar público um agradecimento à CNN por ter dado a conhecer ao mundo o verdadeiro rosto de um regime estruturado em função da cor da pele das pessoas? E que dizer da divulgação, através de séries documentais, da vida dos povos da terra ou de obras tradicionalmente reservadas às elites culturais?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Televisão é, pois, um universo contraditório. Tem enormes possibilidades como meio de comunicação e instrumento de progresso da humanidade, mas revela-se francamente insatisfatória em diversos domínios. O apontar dos erros, ou o sentido de erro de que falei nas linhas introdutórias do texto, se não faz o juízo universal permite, ao menos, a par do sentido de ética, indagar sobre os caminhos a percorrer na convicção de que a democracia é uma aspiração da generalidade dos povos do planeta, cuja principal virtualidade consiste em auto-aperfeiçoar-se, assim os homens o queiram. É certamente difícil gerar consensos em matéria no seio da qual se confrontam estratégias de poder efectivamente conflituantes, à mistura com um pragmatismo que tudo tende a justificar em nome de males menores. Mas para o jornalista há algo de incontornável que é o investimento no saber fazer.
O saber fazer é intrinsecamente democrático, pois permite fazer boa Televisão e boa Informação, transformando o jornalismo num acto de intervenção eminentemente cultural. A linguagem da Televisão herdou elementos de outras formas de expressão, como o cinema e o teatro, e foi ganhando progressiva autonomia gramatical. Esse percurso, a par das possibilidades introduzidas pelas novas tecnologias da comunicação, permite desde já introduzir um novo elemento do discurso informativo que é a dimensão estética. Trata-se, a meu ver, de uma ideia sobre a qual vale a pena reflectir.
Em primeiro lugar, a comunicação mediática continua a ser assimétrica e essencialmente unidireccional. Só o emissor exerce controle sobre a codificação da mensagem, cabendo ao receptor um papel relativamente passivo, apesar das modalidades, aliás, precárias, de feed-back que pode accionar.
Em segundo lugar, a sensorialidade da Televisão induz um défice participativo face às suas potencialidades caso a mensagem seja mal codificada, acentuando, por isso o risco do efeito de hipnose e a consequente perda de vontade de agir sobre o mundo.
Ora o saber fazer se não evita, pelo menos reduz, os inconvenientes decorrentes da unidirecionalidade do medium, bem como os prejuízos de um envolvimento entorpecente promovido por mensagens codificadas incorrectamente. Porquê? Porque uma qualidade acrescida da competência comunicativa do emissor — o saber fazer — só pode ter como consequência uma qualidade acrescida da competência comunicativa do receptor — o saber reconhecer. Mas a ideia do saber fazer vai mais longe.
Sendo a Televisão um medium de grande plasticidade é um dado adquirido a sua relevância estética, em particular, na reportagem, que vai buscar ao cinema algumas das suas regras. Essa dimensão não se confunde, entretanto, com a espectacularidade gratuita dos efeitos proporcionada pelo instrumental electrónico. Pelo contrário, a estética da mensagem televisiva deve reforçar o conteúdo informativo, respeitando o rigor e a verdade dos factos e proporcionando, desse modo, um valor acrescentado ao acto de descodificação, posto que autoriza o prazer do texto colocando o receptor na situação de ser, também ele um (re)criador. O que é obviamente uma forma avançada de fazer progredir a democracia.
Entendamo-nos, porém, e para terminar. Aparentemente vivemos um mundo de libertação das diferenças. Derrubada a ideia de uma realidade central da história, nem por isso o mundo da comunicação generalizada prescinde de um sentido e de uma memória. O que acontece é que as diversas minorias, sejam elas étnicas, sexuais, religiosas ou de um outro tipo qualquer, estão a tomar a palavra à revelia dos modelos universais centralizadores.
"Este processo de libertação — diz Vattimo — não é necessariamente o abandono de todas as regras, a manifestação informe da demarcação: também os dialectos têm uma gramática e uma sintaxe, mas só quando conquistam dignidade e visibilidade descobrem a sua própria gramática. "(19)
Fica, portanto, em aberto uma hipótese aliciante: hoje, o tecido da democracia é percorrido transversalmente pelas linguagens em gestação das diferenças; paradoxalmente, ao promoverem a "desrealização" da realidade os media criaram uma fantasmagoria a partir da qual, entretanto, estão a emergir múltiplas e novas realidades, as quais ameaçam, minam e gradualmente subvertem o mundo estereotipado e massificado da aldeia global anunciada. Neste contexto, o saber fazer do jornalista é uma mais-valia na leitura do mundo e um valor acrescentado ao aprofundamento da liberdade e da democracia.
EPÍLOGO
PROMETEU
desobedecendo às ordens de Zeus, deu o segredo do fogo aos homens. Vingativo, por natureza, como todos os deuses feitos à imagem e semelhança do homem, Zeus acorrentou-o a um rochedo nas alturas onde, durante largo tempo, uns trinta mil anos ao que parece, foi visitado diariamente por uma águia voraz. A águia comia-lhe o fígado e o fígado recuperava todos os dias para eternizar o sofrimento de Prometeu.
Zeus, claro, resolveu vingar-se igualmente dos homens que andavam todos contentes com o fogo e, para tal, como não podia deixar de ser, criou a mulher, Pandora, a qual foi dada em casamento a um sujeito um tanto irresponsável de nome Epimeteu, por sinal, irmão de Prometeu. Pandora levou consigo uma caixa de cobre reluzente, oferta do deus dos deuses, com a indicação de não a abrir em circunstância alguma. Evidentemente, um belo dia Pandora abriu mesmo a caixa e em lugar das jóias e riquezas cobiçadas deparou com todos os demónios e todas as desgraças, que logo se espalharam pelo mundo. Zeus estava vingado, mas Pandora foi ainda a tempo de fechar a caixa, nela guardando o que restava, a esperança.
Moral da história: enquanto há vida, há esperança.
Simplesmente, os mitos, às vezes, são mais complicados do que parecem. Na verdade, há em tudo isto um gesto mesquinho, daqueles de que só os deuses são capazes, e dois actos heróicos. O gesto mesquinho é, naturalmente, o exercício de um poder arbitrário e caprichoso como via da manutenção de uma determinada ordem. Os actos heróicos, o ousar transgredir pondo em causa a ordem aparente das coisas.
Se Ulisses nos tivesse deixado as suas memórias, não seria de todo improvável que deixasse transparecer algum tédio a propósito do encontro com Penélope porque aventurosa e bem aventurada fora, afinal, a viagem para Ítaca, o percurso. Pandora, movida pela curiosidade, abriu a caixa de Zeus, pois só assim poderia conhecer o que nela se guardava. Evidentemente correu um risco, tal como Prometeu, mas ambos contribuíram para alargar o conhecimento e a consciência dos homens, porventura de uma forma ambivalente e, até, ambígua.
E o facto é que nada é linear. Jacques Thibau, diplomata de carreira, autor de uma obra citada no último capítulo deste texto, hoje praticamente esquecido, teve um percurso interessante, embora não muito agradável. Entrou para a televisão pública francesa pela mão do poder, entusiasmou-se com o mundo da caixa mágica, quis fazer diferente e melhor e acabou por incorrer no desagrado de Zeus. Isto passou-se entre 1965 e 1968, antes do mês de Maio.
O pior inimigo da boa Televisão — dizia ele — é o conformismo, querendo com isso afirmar não um qualquer apelo à revolta, mas tão somente ser indispensável estimular a imaginação, fazer um jornalismo ousado, rigoroso e criativo.
Talvez seja uma ideia mítica, mas é uma boa ideia.
FIM
Notas remissivas
1. WOODROW, Alain
Informação, Manipulação, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1991
2. ECO, Humberto
Apocalípticos e Integrados, Difel, Lisboa (1991)
3. COMPARATO, Konder in Guia Alfabético das Comunicações de Massa, Propaganda, Edições 70, Lisboa, sem data
4. BOYER, Peter J.
Quem matou a CBS ? A derrocada da maior rede de Televisão americana, Editora Bertrand Brasil S.A., Rio de Janeiro, 1991
5. Em Le Monde Diplomatique, maniéres de voir, nº 14, há diversos exemplos neste
domínio.
6. WOODROW, Alain
Informação, Manipulação, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1991
7. Ibidem
8. Ibidem
9. Ibidem
10. CAZENEUVE, Jean
Les pouvoirs de la Télévision, Éditions Gallimard, Paris, 1970
11. Em Le Monde Diplomatique, maniéres de voir, nº 14, há diversos exemplos
neste domínio.
12. Ibidem
13. Ibidem
14. Ibidem
15. THIBAU, Jacques
Une Télévision pour tous les Fraçais, Éditions du Seuil, Paris, 1970
16. ECO, Humberto
Apocalípticos e Integrados, Difel, Lisboa (1991)
17. A citação de Dick Salant é tirado do 12º episódio de "A Caixa que mudou o Mundo".
18. WOODROW, Alain
Informação, Manipulação, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1991
19. VATTIMO, Gianni
A Sociedade Transparente, Relógio D'Água, Lisboa, 1992
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