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CULTURA

Foto do escritorJorge Campos

Documentário Português - Da urgência do presente à memória do futuro

Atualizado: 22 de out. de 2023


Os Lisboetas de Serge Tréfaut

Quinta-feira, 2 dia de Maio de 2006. Há um jornal onde leio que Portugal é o país da Europa onde os cidadãos menos se interessam pela política. Um outro anuncia-me uma quase completa ausência de auto-estima por parte dos meus concidadãos. Um terceiro oferece-me uma primeira página demolidora: em manchete, caracteres gordos, vem lembrar-me que 85 por cento dos pensionistas recebe pouco mais de 350 euros mensais; abaixo, foto a toda a largura, vultos sem rosto diante do portão de uma fábrica, mais 250 que acabam de ser despedidos; no canto superior esquerdo a imagem de um cachorro impecavelmente tosquiado, vestido a rigor para o Inverno (de amarelo) e com um chapéu (verde) de aba larga que ilustra um título segundo o qual os portugueses gastam anualmente mais de 200 milhões com os seus animais domésticos. Perante o rosto deste jornal, por deformação ou vício de associar o real e a sua representação ao olhar documentário revi instintivamente cenas de Umberto D., de Vittorio De Sica, Roger and Me, de Michael Moore e Gates of Heaven, de Errol Morris. Não me ocorreu, porventura injustamente, a memória de nenhum filme português. Mas, à noite, numa pequena sala do Porto que arrisca incursões nesse outro cinema fui ver os Lisboetas, de Serge Tréfaut. 


Lisboetas é um daqueles filmes raros no cinema documental português contemporâneo. Aborda um tema pertinente, o quotidiano dos estrangeiros que demandaram Portugal em busca de melhores condições de vida e encontraram um país, como quase sempre acontece nestas ocasiões, diferente do imaginado. Mantendo um registo de observação, do qual é indissociável uma ética impecável de respeito para com o outro, compondo um quadro de situações mais do que uma rede narrativa baseada na relação e construção de personagens, mas ainda assim, revelando um apurado sentido de descoberta do que de mais contingente e pungente reside na condição humana, o filme, na aparente fragilidade da sua lógica discursiva, opera o prodígio de nos dar a nós, portugueses, uma imagem imprevista do país que somos através de um olhar diferente. Esse olhar é tanto o dos emigrantes à deriva pelas ruas e lugares de Lisboa em busca de um futuro no presente incerto, quanto o do próprio Tréfaut que, recusando efeitos de retórica e investindo numa série de combinações de montagem, se faz intérprete de uma situação conhecida, mas nunca antes assim revelada


Isso acontece por razões que se prendem com a melhor tradição do documentário social, desde sempre associado a um conjunto de circunstâncias que lhe permitem proceder ao escrutínio dos sinais dos tempos, mas que em Portugal tem sido episódico. Explico-me. Aparentemente, o documentário português está numa encruzilhada. Se nos últimos anos conheceu um desenvolvimento sem precedentes, constituindo uma comunidade de praticantes alargada e capacitada para poder configurar o embrião de um movimento, nem por isso logrou ainda alcançar um grau de sofisticação teórica e de maturidade organizativa que lhe permita enfrentar com naturalidade os desafios que lhe são colocados. Apesar de um corpo de filmes relevante, ainda que relativamente reduzido, parece haver uma crise de identidade cuja razão de ser pode estar relacionada com um problema de memória, sem a qual não é possível encontrar as ferramentas mais ajustadas para enfrentar o presente e pensar o futuro. Com efeito, na ausência de uma História do Documentário Português – o que temos são Histórias do Cinema Português, nas quais, de quando em vez, se faz referência ao documentário ou tentativas meritórias, como a de Luís de Pina, de fazer uma cronologia do filme documentário – faltam referências a partir das quais possam construir-se itinerários sistematizados. Há, naturalmente, percursos individuais. Mas, quando se aborda o percurso institucional os fantasmas erguem-se em torno da falta de apoios, organismos que tutelam mais por obrigação do que por sentido de missão, júris problemáticos, operadores de televisão obsoletos, enfim um coro de dificuldades certamente fundamentado, mas cuja sombra relega para segundo plano a questão central de saber o que se pretende fazer, o que é urgente dizer e filmar. E como.


Assim sendo, parece razoável constatar uma perplexidade que não tem de ser necessariamente negativa e que, do meu ponto de vista, tem origem numa crise de crescimento, a qual, aliás, não é exclusiva do caso português, mas que, por razões de conjuntura é particularmente sentida entre nós. A vários níveis. Um exemplo: o problema clássico e recorrente da distinção entre documentário e ficção. Convoco duas posições conhecidas.


Para Godard, “todos os grandes filmes de ficção tendem ao documentário, como todos os grandes documentários tendem à ficção. (...) E quem optar a fundo por um deles encontra necessariamente o outro no fim do caminho (Godard, 1985) ”. Para Guynn “é precisamente contra a ficção e as suas tradições que se foi constituindo a teoria do documentário (Guynn, 2001)” e isto porque o quadro institucional do seu percurso histórico assenta, fundamentalmente, sobre três pilares: em primeiro lugar, o documentário tem a sua filiação natural num cinema liberto dos constrangimentos impostos por procedimentos recorrentes de outras artes como a literatura e o teatro; em segundo lugar, o documentário situa-se a si mesmo, no plano institucional, por oposição ao cinema de ficção, propondo uma crítica da suas condições de financiamento, produção e distribuição; finalmente, o documentário proclama o ‘realismo’ do seu discurso por oposição ao mundo imaginário da ficção, assumindo uma função ‘natural’ na sua relação com o seu objecto ‘natural’. Em suma, “o documentário distingue-se não somente pelo seu ‘conteúdo’ específico, as suas formas e os seus métodos, mas também pelo lugar que assume enquanto formação social (Guynn, 2001)”.  


Entre nós, porventura na ausência de memória sobre o percurso e os contornos deste debate, de forma mais ou menos explícita, tenho ouvido defender que tudo é basicamente igual porque tudo é basicamente cinema. Cinema será, certamente. Mas esta atitude, essencialmente defensiva, como se alguma coisa de sagrado estivesse em risco de se perder, ilude as questões e fragiliza a capacidade de intervenção institucional da comunidade de praticantes que, justamente, encara o documentário como veículo privilegiado de interpelação do real e, nessa medida, pode reclamar para ele o estatuto de bem público. Pelo contrário, a opção por um cinema receoso de ir à luta, resistente à transversalidade das formas e linguagens, fechado sobre si próprio a pretexto da poética, sendo dificilmente compatível com os paradigmas da modernidade, quando muito dará origem a uma espécie de peregrinação em busca do Santo Graal.


Daí a necessidade, neste como noutros domínios, de uma clarificação, aliás, recorrentemente sentida sempre que situações semelhantes, salvaguardadas as respectivas especificidades, se colocaram no passado. Por exemplo, em 1935, numa altura em que o movimento documentarista britânico conhecia, também ele, uma crise de crescimento e se multiplicavam as suas tendências, Paul Rotha procurou sistematizar o conhecimento, entretanto, adquirido. Em Documentary Film identificou a tradição do documentário em função de quatro tendências: a naturalista ou romântica, que surgiu com os primeiros filmes de Flaherty; a relacionada com as vanguardas artísticas dos anos 20; a associada a newsreels e cuja deriva mais arrojada corresponde ao trabalho de Dziga Vertov; e, finalmente, a que resulta da convivência do cinema com a propaganda: “onde quer que o cinema se encontre ao serviço do lucro tem tendência para se situar na esfera da tradição do estúdio, ao passo que o cinema ao serviço da propaganda e da persuasão tem sido largamente responsável pelo método do documentário (Rotha, 1970)”.  


Este tipo de exercício, na medida em que reflectindo sobre o passado lhe foi conferindo um sentido prospectivo, permitiu ir desenhando o mapa plural a partir do qual se foi construindo a História e Teoria do Documentário. Evidentemente, as referências contidas nesse mapa não são um espartilho, antes abrem perspectivas, e cada criador escolhe o seu caminho respondendo a um impulso interior cuja explicitação depende apenas de si e da sua peculiar relação com o mundo. Nesse sentido, houve e há uma grande variedade de vozes, como acontece em Portugal, tanto mais que a mudança de paradigmas sustentada pelos self media confere uma ainda maior liberdade de criação. Mas, tratando-se de intervir criativa ou institucionalmente, o mapa é um auxiliar precioso da acção e essa parece ser uma lacuna ainda por resolver no documentário português, apesar da ponderação que nos últimos anos tem vindo a ser feita das suas práticas.


Está por fazer, por exemplo, uma História Crítica em função da qual se possa ter uma visão de conjunto dos seus principais episódios, protagonistas, implicações políticas, filiações artísticas e vínculos comunicacionais, porventura numa lógica transdisciplinar, cruzando o cinema com áreas de investigação do âmbito dos estudos culturais. De forma mais localizada, seria igualmente relevante recuperar, sistematizar e dar visibilidade ao que foi o trabalho documental dos cineastas responsáveis pelo Cinema Novo, do qual se diz ter alguma relevância, apesar de cultivado apenas como meio de passagem para a ficção, mas do qual pouco se fala e, em rigor, pouco se conhece. Em qualquer dos casos, não se trata de andar à procura da arca do tesouro, mas trata-se, seguramente, de identificar elos perdidos e assim ter uma visão mais completa das diferentes variáveis com influência no documentário em Portugal.

Esta pesquisa não pode, naturalmente, desenvolver-se à margem da produção e da criação. Do ponto de vista operativo, seguramente contribuiria para atenuar equívocos de ordem conceptual que reiteradamente se verificam. Por exemplo, muitos projectos apresentados no ICAM aos concursos destinados ao documentário de criação, embora contendo abundante material informativo, raramente deixam transparecer um olhar ou um ponto de vista sobre o assunto, pelo que talvez fizesse mais sentido colocá-los nos concursos de apoio à produção audiovisual. Estes equívocos alargam-se, a um outro nível, ao modo como o serviço público de televisão programa os seus conteúdos de informação e não ficção.


A Dama de Chandor de Catarina Mourão

Cabendo-lhe uma tarefa de regulação simbólica, com todas as consequências daí decorrentes a montante e jusante da antena, natural seria que procedesse de acordo com uma estratégia coerente de programação das diversas representações do real ampliando, desse modo, o leque de possibilidades de leitura do mundo. A reportagem e o documentário televisivo têm o seu lugar devendo, em qualquer dos casos, obedecer a critérios de exigência. Mas, deveria ser igualmente contemplada a presença regular do documentário ao qual preside o olhar do cinema. Um filme como Lisboetas, de Serge Tréfaut faz muito mais pela compreensão de um problema com o qual Portugal tem de saber lidar do que qualquer reportagem exibida num telejornal. O mesmo poderia dizer-se de O Quarto da Vanda de Pedro Costa em relação à segregação e toxicodependência, de A Dama de Chandor de Catarina Mourão sobre a presença portuguesa no mundo ou das Enfermeiras do Estado Novo de Susana Sousa Dias sobre a resistência ao fascismo. É verdade que todos estes três últimos filmes foram exibidos na RTP, como, aliás, aconteceu com outros e é positivo que isso tenha acontecido. Mas não basta mostrar. É preciso programar.    


Termino como comecei. Historicamente, o filme documentário foi sempre assumindo formas e encontrando soluções de modo a dar resposta às questões da actualidade. Chris Marker, perante a entropia informativa das sociedades mediáticas, defendeu que nunca como agora houve tamanha urgência de imaginar o real. Naturalmente, a urgência do documentarista é sempre resultante da necessidade de ler o mundo e as suas personagens, daquilo que ele entende ser necessário dizer e como. Daí a pertinência de conhecer as suas prioridades, saber o que o move. Essa clarificação de propósitos, sobretudo para quem faz do documentário a primeira opção criativa, é essencial à coerência de um percurso que se pretenda construir. Ora, a verdade é que o documentário português, propondo-se tratar de muita coisa, parece assumir um relativo distanciamento em relação a matérias como aquelas que fizeram as manchetes do jornal que mencionei ou a outras de igual relevância do nosso quotidiano. É apenas uma nota, mas as citações que fiz de Paul Rotha em Documentary Film não foram inocentes. Além do mais, o livro tem o seguinte subtítulo: The use of the film medium to interpret creatively and in social terms the life of the people as it exists in reality.



Referências bibliográficas


Godard, Jean-Luc – Jean Luc-Godard par Jean-Luc Godard, Edition de L’Étoile, Paris, 1985.

Guynn, William - Un cinéma de Non-Fiction - Le documentaire classique à l’épreuve de la théorie, Publications de l’Université de Provence, Aix-en-Provence, 2001.

Rotha, Paul (in collaboration with Road, Sinclair and Griffith Richard) – Documentary Film (The use of the film medium to interpret creatively and in social terms the life of the people as it exists in reality), Communication Arts Books, Hastings House, Publishers, New York, 1970.

Publicado em docs.pt 03, Lisboa, Junho de 2006

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