Ao contrário do que por vezes se pensa os debates televisivos não são decisivos quanto à opção de voto. Mas são importantes. Vejamos aquilo que é consensual. A maioria dos eleitores faz a sua escolha ao longo de um período dilatado de tempo durante o qual interioriza preferências. As escolhas são, pois, fruto de um conjunto de circunstâncias relacionado com a a circunstância particular de cada um. Isto é de ciência certa. Remete para os fenómenos da exposição e percepção seletivas. É por essa razão que não hesitamos, na maioria dos casos, em atribuir a vitória num frente a frente ao candidato da nossa simpatia. Marcelo leva aí larga vantagem. Fez um mandato equilibrado. Tem enorme popularidade. Anda todos os dias, há anos, em campanha. Em suma, é praticamente imbatível. Dito isto, há outras questões. De todas, a mais importante será a relação de forças que irá resultar do plebiscito do dia 24. Aí é razoável admitir ter sido o candidato da extrema-direita o principal beneficiário da exposição mediática, dos tais debates onde não debateu nada, limitando-se a vociferar insultos e barbaridades. Era o que alguns queriam ouvir. Resta saber quantos. E porquê.
A campanha eleitoral realiza-se numa conjuntura atípica. Face a uma pandemia de consequências imprevisíveis, boa parte da população, duramente atingida no seu dia a dia, quer, acima de tudo, um garante de segurança. Dispensa aventuras. Todavia, olhando aos sinais, é evidente haver quem não descarte a possibilidade de tirar partido da situação. Desde logo entre abstencionistas crónicos, mas sobretudo no eleitorado da direita. Uns e outros alimentam o ressentimento contra o Presidente da República por não ter sido o Sebastião saído das brumas da memória para enfrentar a geringonça. Mais do que um combate democrático pretendem um ajuste contas em família. Patologicamente nostálgicos de um passado mítico ou simplesmente receosos da perda de privilégios acumulados ao longo de décadas exploram o descontentamento de quantos têm motivos, por vezes, com razão, para se queixar. Daí o ensaio de discursos ora centrados na fantasia e no absurdo, caso do candidato da Iniciativa Liberal, ora na irracionalidade do ódio e das mitologias fascistas, caso do candidato da extrema-direita racista e xenófoba.
A comunicação social tem sido generosa com ambos. Que me lembre, só por uma vez as televisões fizerem o escrutínio em profundidade do partido do ex-candidato do PSD à Câmara de Loures. Foi na SIC num trabalho do jornalista Pedro Coelho intitulado “A Grande Ilusão: o ódio saiu do armário”. Quem estiver interessado em saber o que aquilo é, pois que vá ver. Que passe pela cabeça de alguém votar naquilo, mesmo tratando-se de um voto de protesto, é capaz de ser motivo para ajuda especializada. Quanto ao candidato Mayan, obviamente, nada tem a ver com o fascismo. É fundador de um partido da direita democrática, é um democrata. No entanto, por muito que alguns comentadores queiram apontá-lo como uma surpresa, tem uma paleta de argumentos reduzida a quase nada, é frágil na exposição e repete as mesmas coisas até à exaustão na observância de práticas elementares de marketing político. Basicamente, defende o modelo económico da Escola de Chicago, cujos principais teóricos foram Hayec e Friedman. O modelo, como se sabe, foi testado no Chile de Pinochet, depois exportado como solução salvífica tendo como embaixadores Reagan e Thatcher, chegou a parecer triunfante após a queda do muro de Berlim, mas ruiu com estrondo na crise financeira de 2008. Não houve nenhum fim da história como se chegou a anunciar. Mayan, uma pessoa séria que acredita no que diz, porventura ingénua, foi buscar esse neoliberalismo puro e duro ao congelador e meteu-o no micro-ondas. Serve-o agora em versão do tipo receita para curar todas as maleitas. Ou seja, privatiza-se tudo que o mercado resolve.
Quanto valem esta direita e extrema-direita consequentes do esvaimento do PSD e do CDS, bem como das dores de uma franja de descontentes radicalizados, habitualmente abstencionistas, não sabemos. Mas temos indicações. As audiências dos debates televisivos e as sondagens que vão saindo, valendo o que valem, não auguram nada de bom. A juntar a isto, o acordo dos Açores criou a expectativa de poder ser replicado no plano nacional multiplicando as hipóteses de futuras equações de governo. Ouvindo os principais comentadores da direita, os únicos, aliás, que opinam semanalmente nas televisões em sinal aberto, fica patente a importância do terreno onde se disputa a hegemonia simbólica. A construção da realidade começa no campo mediático, sabem-no bem. Por isso, ensaiam já a possibilidade de uma alternativa política. Dispondo do espaço de que dispõem, aproveitam-no. Mas também fica clara a sua tolerância face à extrema-direita, pelos vistos considerada um mal menor, o que é um erro grosseiro.
A esquerda, por seu turno, partiu para estas eleições com a certeza de voltar a encontrar-se com o atual e futuro Presidente. Parte dela, de resto, deu-lhe o seu apoio. A restante optou por não apresentar um candidato único e, a meu ver, fez bem. Não estando em causa o vencedor - sejamos realistas, só algo de totalmente imprevisível poderia evitar o inevitável - é preferível uma pluralidade de vozes a colocar diferentes pontos de vista do que uma espécie de candidato frentista a correr para ficar em segundo lugar. Por maior que fosse o consenso, estaria sempre duplamente condicionado pela quase impossibilidade de ganhar e pelos compromissos assumidos entre os parceiros. Fossem outras as circunstâncias, um candidato único faria todo o sentido. Nestas, não. Para mais, como os debates confirmaram, os três candidatos de esquerda estão a anos-luz dos outros - à exceção de Marcelo - no que respeita a competência, preparação e experiência. Dir-se-á haver o risco do candidato fascista ultrapassar um ou outro. É verdade. Mas colocar essa questão no centro das preocupações era o melhor favor que se lhe poderia fazer. Assim, há três candidatos em campanha, todos eles bons, com os olhos postos no futuro. A Juventude Socialista percebeu isso quando apelou ao voto em qualquer um dos deles.
Marcelo está à vontade. Demonstrou-o na RTP no debate entre todos os candidatos. Adotando a pose presidencial falou para todos os portugueses. Saiu-se bem. O apoio do PS, PSD e de uma faixa significativa de eleitores sem partido garante-lhe vantagem substancial. Mas o que será o segundo mandato de Marcelo já não é bem uma incógnita. Ele tem dito amiúde ser necessária uma alternativa de direita forte. Ao viabilizar a solução açoreana deu um sinal negativo. Sou da mesma idade de Marcelo, conheço bem o seu percurso. Respeito-o. Mas, enquanto eleitor de esquerda, só votaria nele numa única circunstância. Felizmente, a questão não se coloca. Certo é, durante os próximos cinco anos, esquerda e direita terem de conviver com ele. Resta saber em que condições. Eu não o quero com uma votação expressiva ao ponto de se sentir tentado a dar corda à tal alternativa de direita forte. Só isso.
2021/01/13
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