deixo o hotel de circunstância por uma porta lateral. azul é o céu onde por vezes pássaros de cores improváveis me levam em voo vertical ascendente. vou sem destino. o automóvel desliza pela manhã junto ao mar. no convés de um navio de vidro transparente, ao som de músicos em traje de rigor, atores de semblante grave conversam como se mudar de personagem fosse questão primordial e transcendente. acelero. a meu lado, jimmy dean, de cigarro no canto da boca, chapéu de cowboy descaído sobre os olhos e postura negligente, olha-me de soslaio. jimmy e eu partilhamos o silêncio dos interditos. pouco falamos. ele viaja na indiferença do labirinto do mito, eu na contingência do labirinto do ser. pela tarde dentro, de quando em vez, vislumbro pelo espelho retrovisor fragmentos de cenas afiadas como um bailado de navalhas de ponta e mola. é uma imagem recorrente, tal como a do navio, agora longe, navegando a lenta declinação das águas, lá onde sobra o fio da música do ocaso e a bruma processa a metamorfose da memória em esquecimento. os faróis varrem a noite, vertigem de um feixe de luz intenso, clarão de cometa errante. olho a estrada. mal consigo vê-la. penso na razão, ou falta dela, de algumas coisas me serem o que são nunca o sendo ou quase nunca. desprendido na insolência do seu destino fatal, jimmy dean esboça o enigma de um sorriso. travo a fundo. faz-se negro. acordo em sobressalto. temo o primeiro confronto com o espelho como se diante dele pudesse confirmar-se um estado febril ou, por excesso, o fio da lâmina do tempo. com a barba por fazer, o rosto em desalinho, deixo a água do chuveiro escorrer abundante pelo corpo. mergulho num longo plano sequência. não tarda voltarei a sair pela porta lateral de um hotel de circunstância.
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