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CULTURA

Foto do escritorJorge Campos

Falso, mas credível: o caso de Inside Nazi Germany, 1938

Atualizado: 5 de dez. de 2022



Esta é a história de como um fake documentary não só conseguiu chamar a atenção para uma questão sobre a qual, no final dos anos 30, grande parte dos americanos não queria nem ouvir falar, o problema nazi, mas também se impôs como a principal matriz daquilo que viria a ser o documentário jornalístico. O filme, hoje um filme patriótico, chama-se Inside Nazi Germany (1938), é uma produção do mais famoso e influente jornal cinematográfico de todos os tempos, The March of Time, e foi indicado pela Library of the Congress para preservação no National Film Registry em 1993. Criado pela Time Inc de Henry Luce sob a supervisão de Louis de Rochemont, um produtor de Hollywood, e por Roy Larsen, The March of Time propôs-se revolucionar o jornalismo. Começou por ter um formato de magazine, evoluindo no sentido de tratar um único tema semanalmente. Exibido em mais de cinco mil salas dos Estados Unidos e em 709 no Reino Unido, em breve seria visto por mais de 40 milhões de pessoas em todo o mundo. John Grierson, o fundador do movimento documentarista britânico, diria: “Vai para além da notícia, analisa os factores de influência e confere uma perspectiva aos acontecimentos.”


Sendo, provavelmente, o exemplo mais radical dos procedimentos adoptados pela equipa de The March of Time no sentido de revolucionar o jornalismo cinematográfico, Inside Nazi Germany foi também o mais controverso nos 16 anos de existência, entre 1935 e 1951, durante os quais fez 290 programas. Controverso, desde logo, em função dos critérios jornalísticos. Controverso, também, em função da disparidade de leituras consequente do contexto e das opções políticas de cada um. Controverso, ainda, por dramatizar a narrativa ao estilo de Hollywood. Controverso, enfim, a ponto da Warner, que tinha adquirido os direitos de The March of Time para mais de 200 salas, ter denunciado o contrato e interditado a sua exibição. Neste ponto, porém, deve ser tido em conta que Berlim era um dos grandes clientes dos filmes da Warner, sendo de sublinhar a pressão permanente exercida pela embaixada alemã nos Estados Unidos no sentido de dissuadir Hollywood de fazer filmes prejudiciais à imagem do Reich. Da controvérsia aproveitou-se a concorrência. Adquiriu os direitos de Inside Nazi Germany acabando por beneficiar daquele que viria a ser um dos maiores, se não o maior êxito de bilheteira de The March of Time.



Historicidade e contexto


The March of Time é, naturalmente, um produto da época. De um modo geral, assumiu posições antifascistas, embora não tivesse a pretensão de desempenhar um papel militante. Como frequentemente sucedia nos seus programas, Inside Nazi Germany tomava partido, neste caso, denunciando a campanha de “purificação racial” do nacional-socialismo. Visto hoje, pode parecer difícil entender a dimensão atingida pela polémica até porque o filme, sendo realmente interessante, não justificaria só por si tamanha atenção. Na verdade, não é bem assim. Há boas razões para este episódio de The March of Time continuar a ser assiduamente revisitado.


Ao contrário dos chamados documentários informativos levados a cabo pelos cineastas de Hollywood sob orientação de Frank Capra, claramente identificados com a propaganda, as actualidades de Rochemont e Larsen reivindicavam ser do campo do jornalismo (Ler neste blogue Why We Fight: violência simbólica e documentários de propaganda na II Guerra Mundial). Por isso, se alerta para questões reiteradamente colocadas, aliás, desde o primeiro momento em que a controvérsia se instalou. Primeiro, o jornalismo exige inovação, mas o jornalismo sem memória não é jornalismo. Segundo, o jornalismo sem rigorosa ética profissional também não é jornalismo. Terceiro, ser jornalista não é ser mensageiro ou meramente um storyteller. Finalmente, jornalismo e propaganda, mesmo com a melhor das intenções, não são a mesma coisa.


Dito isto, em 1937 era praticamente impossível a uma companhia estrangeira de newsreels filmar no interior da Alemanha de Hitler. Mesmo em relação aos seus aliados, os alemães adoptavam uma atitude cautelosa preferindo serem eles próprios a fornecer os materiais destinados a exibição pública. Um dos poucos fotógrafos e operador de câmara a conseguir uma autorização especial, depois de negociações com a Gestapo, foi Julien Bryan. Os alemães consideravam a cobertura noticiosa de terceiros sobre o seu país pouco ou nada objectiva, mas Bryan, operador free-lance que gozava de certa reputação não alinhada, acabou por convencê-los da possibilidade de dar à América uma versão justa e equilibrada do quotidiano do III Reich.


Obtida a autorização, entrou em contacto com The March of Time, assumindo o compromisso de lhe vender o material que viesse a filmar, embora procurando salvaguardar, em simultâneo, as garantias dadas sob palavra aos alemães. Recebeu dois mil dólares adiantados, partiu, filmou durante sete semanas na Alemanha e regressou com perto de 30 mil metros de película, garantindo ter assegurado as imagens do século. Apesar da qualidade técnica, Rochemont considerou boa parte das imagens irrelevante posto que, censuradas ou não pelos homens de Gobbels, mostravam sobretudo uma sociedade próspera, ocupada com desfiles, acampamentos de juventude e pessoas felizes. Bryan terá filmado ainda alguma propaganda anti-semita, todavia insuficiente para o efeito pretendido. Então, que fazer?



Primeiro, a audiência, depois a história, enfim, os factos


O produtor de The March of Time tinha adquirido fama de saber contornar obstáculos de forma expedita. Voltou a fazê-lo. Pagou a Bryan o acordado, conservou os rolos de película e tratou de fazer um filme à sua maneira. Primeiro, deslocou-se a uma pequena comunidade germano-americana anti-nazi em Horboken, New Jersey, que vivia de acordo com os padrões alemães tradicionais – até a organização do espaço e a traça das casas correspondia a esses padrões – e convenceu os seus membros a participarem em reconstruções a pensar em Inside Nazi Germany. Foram forjadas cenas de campos de concentração, de vigilância policial e de censores a examinarem correspondência nos centros postais. Reuniu depois imagens de filmes e newsreels alemães, designadamente com discursos de Hitler, paradas militares e cerimoniais partidários. Finalmente, Jack Glenn, o realizador principal, convenceu o líder pró-nazi americano Fritz Khun a deixar-se filmar no seu gabinete, imagens posteriormente apresentadas em paralelo com cenas onde Khun se dirige aos seus correligionários durante um comício fascista. Na montagem a parte filmada por Julien Bryan acaba certamente por contribuir para a credibilidade ao filme.


Estreado na noite de 20 de Janeiro de 1938, no Embassy Theatre em Nova Iorque, Inside Nazi Germany obteve um sucesso sem precedentes para aquilo que então passara a ser designado, no âmbito de The March of Time, por documentário de notícias ou, como dizia Rochemont, pictorial journalism. Manteve-se em cartaz durante meses. Com uma estrutura narrativa construída de modo a alcançar picos dramáticos para garantir a continuidade da acção, articulando imagens reais com reconstruções, o programa, afrontando em nome da inovação a ideologia da objectividade jornalística que ganhara força a partir dos anos 20, foi imediatamente objecto de acesa controvérsia.



Para tanto contribuíram igualmente os textos, adjectivados, com opção pela função expressiva da linguagem em detrimento da função referencial - tomando como referência as categorias de Jakobson - daí resultando, portanto, a presença sistemática de juízos de valor. Dão-se a seguir dois exemplos. O primeiro, aliás, um excelente exercício de retórica, descreve a situação na Alemanha nazi sem espaço para o princípio do contraditório:


“Still going on, as pitilessly, as brutally, as it did five years ago is Goebbels’s persecution of the Jews. (...) And on the Christian churches, Goebbels’s propaganda machine is today bearing down savagely, for these - almost gone - are still offering resistance to the new order. The Nazi state tolerates no rival authority. (...) To the good Nazi , not even God stands above Hitler…”


O segundo exemplo, premonitório, como que a justificar os procedimentos discursivos acima mencionados, remete para o final do filme:


“Nazi Germany faces her destiny with one of the great war machines in history. And the inevitable destiny of the great war machines of the past has been to destroy the peace of the world, its people, and the governments of their time.”



Com cerca de 17 minutos, o filme começa com uma colecção de postais de Berlim seguida de imagens de Julien Bryan, mostrando uma cidade amena e acolhedora. As aparências, porém, enganam. Reconstruções articuladas com imagens factuais alemães e, aqui e além, pontuadas por imagens de Bryan, vão revelando a face oculta da Alemanha nazi: o papel da mulher – destinada a uma vida doméstica e à procriação de arianos puros – a educação das crianças e dos jovens para a guerra, o destino dos dissidentes condenados à prisão e deportados para os campos de concentração, a perseguição aos judeus, a tortura para os opositores, a propaganda de massas, a censura institucionalizada, a construção de um exército de poderio incomparável.


Os planos são curtos – raramente The March of Time tinha planos de duração superior a cinco segundos, quase sempre menos, por vezes, simples flashes – o que correspondia a um intuito de evitar a monotonia do olhar através de um ritmo de montagem muito vivo. Raymond Fielding refere que nos anos 30 cada programa tinha, em média, 19 minutos e 39 segundos nos quais cabiam, habitualmente, 288 planos com uma duração máxima de quatro segundos. A seguir à guerra, a duração do plano passou a ser em média de cinco segundos. O corte, porém, podia, só por si, não obedecer a uma operação semântica. Em muitos casos, funcionava como mera colagem, o que originava a presença, na terminologia de Christian Metz, da predominância de sintagmas não narrativos. Onde os sintagmas narrativos aparecem com maior frequência é nas reconstruções, mas, mesmo aí, têm apenas uma função descritiva, jamais enveredando por figuras de estilo ou derivas poéticas.


Rochemont: “To us, the word documentary was a dirty word ”


Para a época, o estilo de The March of Time foi uma novidade. Rochemont odiava a simples ideia de documentário: “To us, the word ‘documentary’ was a dirty word.” Para ele, o que criara era pictorial journalism. Segundo um dos seus colaboradores, Lothar Wolf, o que distinguia The March of Time de tudo o mais era o facto de o argumento dominar a imagem e não o contrário:


“(Louis) foi o primeiro a atribuir valor idêntico às palavras e à imagem. No documentário há um princípio segundo o qual é a imagem que deve contar a história. Nunca subscrevi essa ideia. Penso tratar-se de uma simplificação abusiva, tal como sucede com o cinéma vérité ”.


O livro de estilo de The March of Time – ou, pelo menos, o estilo imposto por Rochemont – determinava outras convenções. Era obrigatório o uso do tripé, filmar de um ângulo correspondente ao ângulo de visão dos espectadores nas salas - o que deu origem a uma fenómeno até então raro no cinema clássico americano, uma vez que os tectos, em cenas de interiores, estavam sempre a aparecer - e raramente eram feitos planos em movimento. Se, por necessidade descritiva se fazia uma panorâmica, o plano seguinte só aparecia após a câmara estar completamente imobilizada. Evitavam-se os cortes em movimento. A regra era o plano fixo, variando o tamanho. O close-up era utilizado de forma comedida. Também não há vestígios nem de talking heads nem de perguntas feitas pelo repórter. Há diálogos e testemunhos, mas sempre em circunstâncias adequadas às cenas, como que decorrendo naturalmente da acção. Se havia algo a comunicar verbalmente pelos protagonistas isso era feito através de diálogos previamente redigidos. Os diálogos, na maioria dos casos, resultavam bastante artificiais.


Um outro procedimento habitual era o uso de legendas, à maneira dos títulos da imprensa, bem como de gráficos e mapas explicativos. A música, subordinada à narrativa, preenchia o filme do princípio ao fim. Era composta para cada um dos episódios, obedecendo a propósitos de dramatização, o mesmo sucedendo com a forma como o famoso narrador Westbrook Van Voorhis dizia os textos. Fazia uso da palavra com modulações de voz capazes de suscitar uma gama variada de emoções, e deixava o texto em suspenso através de pausas que criavam expectativa e interrogações. Em suma, suprimia através do enunciado verbal os hiatos narrativos da imagem.


Consequências


Apesar de a rejeição de princípio do filme documentário, de cinema, por parte de The March of Time, a verdade é que a fórmula encontrada por Louis de Rochemont e Roy Larsen, dando prioridade aos critérios do pictoral journalism, produziu efeitos tanto no campo do jornalismo quanto fora dele. Comecemos por aqui.


Quando a versão cinematográfica de The March of Time teve início não havia tradição nos Estados Unidos do filme documentário destinado a ser exibido nas salas. Quando muito poderão ser apontados como casos bem sucedidos dois ou três filmes de Flaherty e os filmes de Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack. Por isso, é legítimo atribuir-lhe o mérito de ter suscitado no grande público o interesse por um formato que não sendo nem documentário, nem newsreels, nem produção dramática, mas uma síntese de tudo isso, acabaria por dar alento, ainda que mitigado, a um novo interesse pelo documentário e não só nos Estados Unidos.


Por outro lado, entre os documentaristas também não faltavam admiradores de The March of Time, o qual, aliás, viria a contar entre os seus colaboradores com algumas das figuras de proa do movimento documentarista britânico, como, por exemplo, Edgar Anstey, Harry Watt e Len Lye, além do próprio John Grierson. A sua influência fez-se igualmente sentir nos documentários americanos de propaganda realizados pelos mestres de Hollywood. Frank Capra afirmara só ter compreendido o que era um documentário depois de ter visto os filmes de Leni Riefenstahl, mas a verdade é que o seu modelo de filme informativo está muito mais próximo de Inside Nazi Germany do que de qualquer das obras da realizadora alemã. Mesmo os documentários e newsreels da esquerda radical americana, apesar de se oporem em termos políticos e ideológicos a The March of Time, cuja orientação era essencialmente liberal, não enjeitaram o seu estilo (Ver neste blogue: Filmes da esquerda radical americana contra o fascismo: Native Land e Black Legion).


Grierson, num dos seus ensaios, a propósito de The March of Time chegou a dizer: “Tudo é feito de um modo penetrante, em profundidade, e, como tal, dramático.” Ora, do ponto de vista do jornalismo, se o dramático não deve ser rejeitado, também não pode ser encarado sem vigilância. Rochemont, não não só se permitia usar e abusar de reconstruções, mas também não se importava de criar factos ao serviço da história a contar. Fez isso em Inside Nazi Germany, fez isso em diversas outras ocasiões. Por outro lado, uma coisa são reconstruções de base factual, em todo o caso, sempre de duvidosa credibilidade quando delas se abusa, tratando-se de jornalismo, outra coisa, é utilizar sem contraditório informações veiculadas por partes interessadas para, do ponto de vista simbólico, hegemonizar o espaço público, dando como adquirido aquilo que afinal resulta de estratégias de propaganda.


Isto vale tanto para Inside Nazi Germany quanto para a generalidade da informação em situações limite como é, por exemplo, o estado de guerra. O êxito deste filme resulta, aliás, de ser a resposta certa para quem tinha necessidade de ver e ouvir o que lá está. A lógica destas coisas é sempre a mesma. Para que medidas extremas possam ser implementadas é necessário alimentar uma opinião dominante favorável ao respaldo dessas mesmas medidas. Neste caso, dir-se-ia que pelas boas razões. Esse, porém, já não é o território do jornalismo. É outra coisa. Legitimado pelos media, pode ser credível. Mas também pode ser falso. Propaganda. Pode ser até fake news. Um amigo meu dizia há dias ter muito medo de pessoas sem memória. Eu também.






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