“Il faut le dire, tout ce que nous avons fait en France dans le domaine du cinéma-vérité vient de l'ONF (Canada). C'est Brault qui a apporté une technique nouvelle de tournage que nous ne connaissions pas et que nous copions tous depuis. D'ailleurs, vraiment, on a la "brauchite", ça, c'est sûr; même les gens qui considèrent que Brault est un emmerdeur ou qui étaient jaloux sont forcés de le reconnaître."
Jean Rouch
Este é um texto sobre o cinema documental do Canadá, sobre os primórdios daquilo que, sendo complexo e contraditório, acabou por encontrar um lugar comum sob o guarda chuva de uma palavra: vérité ou verité, no uso que dela fizeram durante muitos anos os anglo-saxónicos. Daí a possibilidade de encontrar uma espécie de linhagem verité onde cabem cineastas tão diferentes quanto Robert Drew, Roman Kroiter, Albert Maysles, Wolf Konig, Jean Rouch, Richard Leacock, Michel Brault e até Frederick Wiseman, isto para citar apenas alguns e deixando de fora dezenas de outros de méritos igualmente reconhecidos. A irmandade, adiante-se, muitas vezes se envolveu em controvérsia no centro da qual houve razões de vária ordem, mas todas elas de algum modo articuladas em função das questões do real e da verdade.
Certamente, tudo isto acontece num contexto histórico específico. Aproveita a lição do neo-realismo italiano. Tira vantagem de tecnologias leves. Beneficia do fenómeno da reconstrução do pós-guerra e do carácter de insurgência cultural de algumas das suas manifestações. E coincide com a afirmação da Televisão como medium dominante. O futuro do documentário, na verdade, parecia ser dela indissociável, da sua agilidade para lidar com a actualidade e com os chamados current affairs. Parafraseando Umberto Eco, o historiador e crítico francês Roger Odin aludiu até a uma metamorfose do paleo-documentário em neo-documentário. E, de facto, alguma coisa mudou.
Nos Estados Unidos, no início dos anos 50, tornou-se evidente o predomínio do documentário jornalístico, uma modalidade coerente com a história dos media americanos. Mas essa tendência não foi tão generalizada quanto, por vezes, se crê. Houve diversidade nas narrativas que o documentário foi encontrando, algumas delas, digamo-lo sem receio, revolucionárias. Paradoxalmente, apesar de inseridos em unidades de produção tendencialmente jornalísticas, foi até, justamente a partir da Televisão - deixando de lado a Europa -, que os cineastas deram corpo às obras mais interessantes, ou seja, aquelas que viriam a designar-se genericamente por vérité. Nesse campo, destaca-se a produção do National Film Board (NFB), decisiva quanto ao modo de olhar o novo cinema documental.
Os jovens turcos
Na altura em que os cineastas ingleses do Free Cinema, em meados dos anos 50, declaravam o fim do movimento e os mais conhecidos de entre eles começavam a preparar-se para as longas metragens de ficção, no NFB, quer na unidade B de língua inglesa, hegemónica, quer na unidade de língua francesa, os documentaristas investiam na recusa da ortodoxia institucional e procuravam, por um lado, abordar o real de uma forma espontânea e, por outro, lançar as bases de um cinema de relação.
A maioria dos filmes exibida na televisão canadense nos anos 50 resultava de encomendas ao NFB. De um modo geral, as obras de referência precursoras do cinema directo foram produzidas com essa finalidade. Wolf Koenig, um dos fundadores de Candid Eye, definia a geração de jovens cineastas do pós-guerra, de língua inglesa ou francesa, do seguinte modo: gostava de Flaherty, conhecia bem o movimento documentarista britânico, valorizando os filmes artisticamente mais relevantes, como Night Mail (1936) de Basil Wright e Harry Watt, considerava importantes diversos documentários da II Guerra Mundial como Listen to Britain (1942) de Humphrey Jennings and Stewart McAllister, Desert Victory (1943), um filme produzido pelo Ministério da Informação Britânico, ao estilo da famosa série americana de Frank Capra Why We Fight, com realização, não creditada, de Roy Boulting e David MacDonald, ou ainda True Glory (1945), um filme de compilação com imagens de cerca de 1.400 operadores de câmara sobre combates dos Aliados na Europa com realização, também não creditada, de Carol Reed e Garson Kanin.
Quanto aos chamados filmes de ficção, Koenig cita como um dos favoritos da sua geração o extraordinário Naked City (1948) de Jules Dassin de forte pendor realista. Pelo teor das preferências, numa altura em que se procurava encontrar novos caminhos para a Televisão, facilmente se compreenderão as opões contidas na proposta apresentada pelos cineastas da Unidade B do National Film Board para o seriado documental que haveria de ser Candid Eye:
“Mostrar a vida tal como ela acontece, sem argumento prévio nem qualquer tipo de ensaio: capturá-la com som síncrono, em interiores e no exterior, sem colocar perguntas nem solicitar repetições; editar os filmes por forma a fazer o público rir e chorar (se possível ambas as coisas ao mesmo tempo); mostrar os filmes na televisão a milhões e mudar o mundo levando as pessoas a compreender que a vida real é magnífica e cheia de significado.”
Candid Eye e O Instante Decisivo
A proposta confundiu os responsáveis. A aprovação de qualquer filme passava por uma série de preliminares, nomeadamente uma descrição detalhada do argumento e do modo de o concretizar. Havia igualmente um conjunto de convenções que devia ser escrupulosamente respeitado como a obrigatoriedade do uso do tripé, determinadas formas de enquadramento da imagem, certas regras de iluminação e a presença de um texto lido por vozes com predominância de graves. Estas convenções, que repousavam numa concepção académica do cinema prevalecente no NFB, então sob a direcção de Grant McLean, são evidentes nas reportagens, por exemplo, de Coup d’Oeil, que teve, aliás, a colaboração da maioria dos cineastas posteriormente associados ao cinema directo. Daí as dificuldades levantadas: Como fazer aprovar um argumento que não existe? Como se leva o público a aceitar um filme que não conta uma história e passa uma mensagem não convencional? Como é que uma equipa de cinema consegue passar despercebida de modo a criar a ilusão de espontaneidade? Boas perguntas, mas, no essencial, as respostas estavam todas, ou quase todas, na introdução de Henri Cartier-Bresson ao seu livro O Instante Decisivo. Por exemplo:
“A reportagem é uma operação progressiva da cabeça, do olho e do coração para exprimir um problema, fixar um evento ou impressões. Um evento é tão rico que dá-se voltas em torno dele enquanto se desenvolve. Procura-se a sua solução. Encontra-se às vezes em alguns segundos; às vezes ela demanda horas ou dias; não existe solução padrão (...) Nós jogamos com coisas que desaparecem, e quando desaparecem é impossível fazê-las reviver (…).”
Daqui, tratando-se da complexa relação do fotógrafo com o objecto do seu interesse, resulta como corolário:
“Então é preciso abordar o tema a passos de lobo, mesmo tratando-se de uma natureza morta. É preciso uma aproximação sigilosa como a do gato, mas é necessário ter o olhar agudo (...) Se não o fotógrafo torna-se alguém insuportavelmente agressivo (...) uma palavra pode pôr tudo a perder (...) o melhor é fazer que esqueçam o fotógrafo e o aparelho, que sempre é demasiado visível.”
Diz também Cartier-Bresson que a composição deve ser uma preocupação constante “mas no momento de fotografar ela só poder ser intuitiva pois andamos às voltas com instantes fugidios onde as relações são instáveis”. Portanto, só vivendo nos descobrimos, descobrindo, ao mesmo tempo, o mundo exterior, ou seja: “Ele forma-nos, mas nós também podemos agir sobre ele. Deve, como tal, estabelecer-se um equilíbrio entre esses dois mundos, o interior e o exterior, num diálogo constante do qual deverá resultar algo de novo. É esse o mundo que precisamos de comunicar.”
Para Wolf Koenig e para os futuros cineastas de Candid Eye o livro de Cartier-Bresson tinha o peso de uma Bíblia profana. Fizeram chegar ao então director de produção Donald Mulholand uma cópia, à qual juntaram uma explicação mais precisa dos seus objectivos. Finalmente, foi dada luz verde à experiência. Os cineastas da Unidade B, com a colaboração de operadores e técnicos de língua francesa, saíram à rua ao encontro do real e fizeram muitos documentários. Mais tarde, diria Koenig: “Muitos eram maus, alguns aceitáveis, um par deles bons. Mas o sucesso que tiveram deve-se em larga medida a O Instante Decisivo. Para nós chegou num momento decisivo.”
Candid Eye principiou a ser exibido em 1958 na CBC–TV. Rapidamente ganhou não apenas a aceitação do público, mas também do grupo de cineastas da unidade francesa do NFB criada em 1956, em Montreal. No documentário de Denys Desjardins, Le direct avant la lettre (2005), Koenig diz que essa colaboração se revelou muito produtiva devido à existência de um conjunto de preocupações comuns, ainda que pudesse haver divergências quanto ao modo de encarar o real. Havia uma mesma atitude em relação à recusa do argumento, à encenação de cenas, à atenção prestada ao quotidiano aparentemente banal evitando efeitos retóricos, à preferência dada aos equipamentos ligeiros. Mas, se os cineastas da Unidade B procuraram o olhar espontâneo, não intrusivo, de algum modo distante das suas personagens, Michel Brault, Claude Jutra e outros optaram por uma perspectiva mais relacional, estabelecendo um contrato com os seus protagonistas um pouco - mas não inteiramente - na linha do que Jean Rouch andava a fazer nos seus filmes rodados em África ao longo do rio Niger. Dito de outra maneira, se Candid Eye partia de alguém ou de um acontecimento encarando o processo fílmico não como uma forma de moldar o real, mas de revelar e, desse modo, permitir o acesso à significação, no cinema da unidade francesa o envolvimento do cineasta no processo fílmico podia ser assumido com as consequências daí decorrentes. No entanto, importa reter que a linha de diferenciação de ambas as abordagens, nesta fase, era relativamente ténue.
Robert Flaherty Film Seminar, 1958
Se a génese da aventura do cinema directo na sua versão canadense é contemporânea de Candid Eye e por ele impulsionada, é habitual, no entanto, atribuir um papel pioneiro a Les Raquetteurs (1958) de Michel Brault e Gilles Groulx. Em rigor, o filme não era ainda cinema directo porque a quase totalidade da banda som foi recriada em estúdio. Apenas uma pequena parte resultou do som síncrono. O sucesso do filme e o reconhecimento europeu por parte da crítica especializada contribuíram não só para validar os esforços de Candid Eye – Koenig, Kroiter e Filgate receberam imediatamente uma encomenda de 15 filmes para a televisão – mas, também, para pôr em cheque a estrutura conservadora do National Film Board. Permitiu aos cineastas do Quebeque, por outro lado, entrarem em contacto com a pequena comunidade internacional do que viria a ser o cinéma-vérité, nomeadamente com Jean Rouch que assistiu, na companhia de Michel Brault, a Les Raquetteurs durante o Robert Flaherty Film Seminar, na Califórnia, em 1958. Comentando as mudanças operadas na organização por si fundada e os novos filmes do National Film Board, John Grierson aludiu de forma oblíqua à existência de um “cavalo de Tróia da estética”. Mais tarde, porém, viria a reclamar parte da responsabilidade das novas opções como sendo uma consequência natural do trabalho até então desenvolvido.
O Seminário Flaherty de 1958 foi histórico por diversas razões. Em primeiro lugar, debateu os filmes do Free Cinema, ainda praticamente desconhecidos (ver neste blogue o artigo intitulado Free Cinema: Uma atitude significa um estilo). O famoso crítico, historiador e teórico do Cinema Lewis Jacobs ficou impressionado quer pela forma como tinham sido produzido e realizados, quer pela narrativa. O tópico da narrativa tornar-se-ia controverso uma vez que outros críticos, aparentemente incapazes de avaliar a capacidade observacional da câmara de filmar, sugeriram precisamente a ausência dela. Em segundo lugar, permitiu a Michel Brault mostrar a produção recente da sua Unidade francesa do NFB, portanto, numa fase pré-cinema directo. E, finalmente, prestou atenção a cineastas como John Marshall, Robert Gardner e, sobretudo Jean Rouch, cujo método foi objecto de múltiplas avaliações e cujos filmes suscitaram um dilema aos críticos, nomeadamente Colin Young e Martin Zweiback:
“Um público que veja estes filmes fora do contexto intimista e amigável de um Seminário Flaherty ficará muitas vezes desapontado e achá-los-á obscuros, repetitivos e mal construídos. Rouch, porém, é em primeiro lugar um humanista e só depois um cineasta. E se as expectativas convencionais do público e dos produtores interferem com o seu trabalho, ele acha que são eles que deverão desistir, não ele .”
O problema suscitado por Young e Zweiback antecipava o que seria posteriormente recorrente na relação do cinema directo com a televisão, ou seja, a dificuldade do público em seguir a narrativa devido à presença de uma voz epistemologicamente hesitante - na terminologia de Plantinga - em função da polissemia da imagem. De qualquer modo, Young e Zweiback manifestaram-se a favor de reconhecimento de que, a partir de então, seria necessário reconsiderar a ideia do documentário.
Les Raquetteurs, quase cinema directo
O modo como Les Raquetteurs foi feito é em si mesmo exemplar pelo que representa de determinação em experimentar outros caminhos. Em princípio o filme estava destinado a ser mais uma das pequenas peças de quatro minutos de Coup d’Oeil, uma rubrica de reportagem muito cuidada do ponto de vista formal que habitualmente fechava os jornais de informação geral. Les Raquetteurs, praticantes de um desporto peculiar consistindo basicamente em deslizar sobre a neve com raquettes fixadas nos pés, iriam fazer o seu congresso anual durante um fim de semana na pequena cidade de província de Sherbrooke. No documentário de Gilles Nöel Le Cheval de Troie de L´Esthétique - six tableaux sur Michel Brault (2005), o cineasta conta como ele e os seus companheiros Gilles Groulx, um montador acabado de ingressar no NBF e o técnico de som Marcel Carrière subverteram a agenda inicial. Começaram por falsificar a requisição do material acrescentando um zero à metragem de película autorizada. Desse modo, puderam filmar durante todo o fim de semana e não apenas os 30 minutos habitualmente permitidos. Utilizando uma câmara Arriflex de 35mm e um gravador de som Makhac acompanharam de perto todos os eventos relacionados com o congresso: a participação dos habitantes, as boas vindas do presidente do município de Sherbrooke, o desfile dos raquetteurs acompanhado de uma banda de música, as inevitáveis provas de velocidade, a festa de encerramento do congresso com a eleição da sua rainha e o animado baile que se lhe seguiu. Quando a produção do NFB viu as imagens não lhes reconheceu interesse. Determinou o seu depósito em arquivo.
Os episódios seguintes fizeram do filme o símbolo da luta de emancipação dos cineastas franceses da tutela institucional inglesa, rompendo com as convenções elitistas filiadas na alta cultura, indo, de certa forma, ao encontro das posições contestárias da Unidade B. Tal como os seus colegas ingleses elaboraram uma espécie de manifesto em defesa de um novo tipo de documentário relacional fundado na mobilidade e na observação. O filme foi montado nos tempos livres de Gilles Groulx, contando com o apoio de Tom Daly, um dos homens de Candid Eye, e de um produtor recém chegado de nome Louis Portugais, cuja marca ficaria bem patente na produção cinematográfica do Canadá. Esteticamente, em Les Raquetteurs há uma diferença em relação aos documentários de Candid Eye. Estes, pretendendo evitar intrometer-se na acção e interferir com os protagonistas, faziam uso de teleobjectivas que permitiam filmar a distância considerável. Brault, segundo Gilles Marsolais, quis reagir contra esse procedimento, o qual, aliás, explorara reiteradamente na excelente série televisiva de curtas-metragens Petites médisances (1953-1954) em cumplicidade com Jacques Giraldeau, fundador do primeiro cine-clube do Quebeque. Apercebendo-se que a teleobjectiva condenava o cineasta a ficar de fora dos acontecimentos incorrendo no risco de apenas captar a aparência das coisas, começou a investir na liberdade de movimentos e na utilização da grande angular:
“O interesse de um filme como Les Raquetteurs reside no facto do cineasta procurar abordar o acontecimento pelo seu interior, acompanhando-o de perto e, em definitivo, vivendo-o. Como tal, uma parte da montagem está já contida nas tomadas de vista que resultam do modo como o operador de câmara vai reagindo às situações.”
Por exemplo, Michel Brault, de câmara ao ombro, começa por filmar a sequência da banda que percorre as ruas de Sherbrooke à distância, mas quando os músicos passam junto dele integra-se ele próprio no desfile de modo a transmitir ao público a sensação de estar a participar. Claude Jutra falaria mesmo de uma fixação quase erótica sobre a câmara por forma a exprimir o efeito de aproximação pretendido. Esse método era intencional e a aproximação tinha motivações de ordem política e estética. No dizer de Marsolais, aludindo a Dziga Vertov, o método de Brault consistia numa espécie de cine-punho (ver neste blogue O Cine-Olho, o Cine-Punho e o Homem Novo) envergando uma luva de veludo, cujo compromisso ético e moral consistia em observar com olho clínico as contradições de uma sociedade esclerosada.
Nessa linha, o filme explicitamente mais político de Michel Brault, Les Ordres, só apareceria em 1974 na forma de uma narrativa ficcional que reconstituía em termos documentais a repressão dos cidadãos do Quebeque francês, em Outubro de 1970, resultante do estado de excepção decretado pelo governo. Para trás ficava uma produção de altíssima qualidade, na qual avultavam, entre outros, Les enfants du silence (1962), Pour la suite du Monde (1963), Entre la mer et l’eau douce (1965), Les enfants de Néant (1968), Éloge du Chiac (1969) e L’Acadie l’Acadie?!? (1971). Alguns destes filmes denotam a influência de Jean Rouch, nomeadamente Pour la suite du Monde, realizado em colaboração com Pierre Perrault, em cuja ficha técnica os nomes dos diversos elementos surgem como tendo “vivido e representado” (“vécus et joués”) o filme. Michel Brault, de resto, reconhece a importância no seu percurso de cineasta de duas obras fundamentais de Rouch, Moi, un Noir (1957) e Les Maîtres Fous (1954), este último, por sinal, também debatido no Seminário Flaherty de 1958 e, tal como Moi, un Noir, realizado com um câmara de apenas 20 segundos de autonomia de película. Brault colaborou depois em Chronique d’un Été (1960), a primeira experiência europeia de cinéma-vérité. A influência de Rouch, cuja filiação numa linha de cinema de autor é legitimada desde muito cedo pelos Cahiers du Cinéma, acabaria por alargar-se a outros cineastas canadianos de língua francesa, mesmo quando os seus trabalhos se destinavam à televisão.
A questão da autoria
Free Cinema, Candid Eye e Cinéma-Vérité, tendo embora pontos em comum, obedeciam a pressupostos diferentes. Durante o curto período em que vigorou o Free Cinema (ver neste blogue artigo sobre a matéria) nunca encarou a televisão como um meio de passagem natural para o documentário como sucedeu com o Candid Eye e, em parte, com o Cinéma-Vérité da unidade francesa do National Film Board. Daí também o problema da autoria ter sido colocado de diferentes maneiras. Recuando ao movimento documentarista britânico nos anos 30 e 40 verifica-se como a questão dos créditos e da realização foi, pelo menos durante algum tempo, relativamente negligenciada. Contudo, apesar do espírito de grupo, nos filmes do Free Cinema há já o sentido da autoria, mesmo se de responsabilidade, partilhada como sucede em Nice Time (1957) dos suíços Claude Goretta e Alain Tanner e em Momma Don’t Allow (1956) de Karel Reisz e Tony Richardson, para já não falar de Together (1956) de Lorenza Mazzeti, o qual chegou a ser dado como um caso perdido até Lindsay Anderson se envolver na edição. No caso do cinema francês essa tendência foi mesmo a imagem de marca da curta-metragem e do documentário do pós-guerra quando se travou a luta iniciada pelo Grupo dos 30 e, sobretudo na década de 50, quando a política dos autores ganhou estatuto de pensamento dominante nos Cahiers du Cinéma. Apesar da colaboração entre cineastas, por exemplo, entre Alain Resnais e Chris Marker, a assinatura do filme era, na maioria dos casos, apenas de uma pessoa. Trabalhando muitas vezes por encomenda, os cineastas franceses atingiram, na verdade, elevados patamares de originalidade justificando em absoluto a atribuição da autoria.
No Canadá foi diferente. Da parte dos cineastas de língua francesa, que lutavam por maior autonomia institucional no interior de um National Film Board no qual a língua inglesa era hegemónica, houve uma natural inclinação para os pressupostos da política dos autores. No entanto, tiveram de bater-se pelas as suas ideias num contexto de produção para televisão, portanto, obedecendo a imposições formais e ritmos de produção nem sempre compatíveis com o tempo de criação. Mas o mesmo sucedeu com os cineastas da Unidade B. Isso poderá explicar parcialmente a razão pela qual um número significativo de filmes, quer da parte francesa, quer da parte inglesa, seja de autoria partilhada. Roman Kroiter e Wolf Koenig trabalharam muitas vezes juntos. Tal como Michel Brault, cuja colaboração está associada, por exemplo, a cineastas como Gilles Groulx e Claude Jutra. Esta explicação não é, porém, suficiente. No fundo, poderia ser o cinema que se pretendia fazer a justificar a existência de equipas cujo processo de realização podia ser da responsabilidade de mais de uma pessoa. E, nesse sentido, independentemente de serem anglófonos ou francófonos, os cineastas do National Film Board partilhavam de ideias comuns. As suas equipas estavam a fazer algo de novo e, como tal, eram forçadas a enfrentar rotinas institucionais inadequadas à prossecução dos seus objectivos. Por isso, complementavam as suas afinidades estéticas com a cumplicidade no plano dos procedimentos. Acresce que a própria natureza das matérias, inscritas na observação do quotidiano, requeriam amiúde a presença de mais de um operador de câmara. O exemplo de La Lutte (1961) e o modo como o filme evoluiu a partir da ideia inicial é, a vários títulos, paradigmático.
O filme é sobre a luta livre, vulgo wrestling, hoje imensamente popular na televisão americana. Segundo Michel Brault La Lutte não tem autor. O intuito era filmar os combates de uma quarta-feira à noite no Fórum de Montréal tendo subjacente o propósito jornalístico de desmistificar os mecanismos que punham em causa a veracidade dos resultados. Roland Barthes, de passagem por Montréal, disse que gostaria de assistir às filmagens. Mas, quando Brault e os seus companheiros lhe disseram que tencionavam desmascarar os bastidores da luta, bem como os compromissos dos lutadores, insurgiu-se: “Mais non, ça va pas, vous êtes fous! On ne démonte pas le théâtre. Le théâtre, c’est du théâtre et la lutte c’est du théâtre populaire. C’est la façon qu’a le peuple d’assister à la lutte entre le bien et le mal. Pourquoi détruire ça?”
O filme acabou assim por tomar outro sentido. Entendendo a justeza da observação de Barhes, Brault e a sua equipa prestaram especial atenção à reacção dos espectadores nos diversos momentos do espectáculo, tomando partido, sentindo a dor encenada pelos seus favoritos, vibrando com cada golpe nos adversários e rejubilando com a inevitável vitória dos bons (lutadores supostamente do Quebeque, franceses e italianos) sobre os maus (alemães, americanos, turcos e russos). La Lutte obedece, de um modo geral, a uma ordem cinematográfica de cinema puro na qual predominam os sintagmas narrativos articulados em sequências cujos planos – sobretudo na lona de combate – são feitos, na maioria dos casos, com grandes angulares. Os planos sequência, embora presentes, não têm ainda a relevância significante que viriam a ter numa fase mais adiantada do direct cinema. O som do narrador que relata a luta serve de comentário tanto ao que acontece no rinque quanto às expressões e manifestações do público. No final, por mero acaso, a questão da verdade - leia-se vérité - foi levantada por dois dos lutadores derrotados, os falsos russos irmãos Kalmykov, e pelo seu empresário. Vociferando em close-up diante da câmara um dos irmãos diz: “We didn’t loose the match! That’s the positive truth!” Como antecipara Roland Barthes, a verdade da luta estava no teatro, não numa qualquer tentativa de expor os seus bastidores. Na ficha técnica os nomes da equipa do NFB aparecem por ordem alfabética – Michel Brault, Marcel Carrière, Claude Fournier e Claude Jutra – seguindo-se os nomes dos colaboradores com Roland Barthes à cabeça.
Apesar de destinado à televisão o filme obedece a uma ordem inteiramente cinematográfica. Não é ainda cinema directo porque a única parte com som síncrono é justamente aquela em que os irmãos Kalmykov proporcionam inadvertidamente um final exemplar ao colocarem o problema que era justamente o problema dos cineastas, ou seja, a verdade. A narrativa releva da organização da cadeia sintagmática, o comentário recusa a mera exposição, funcionando, tal como a partitura musical, em contraponto das imagens. Outros documentários canadenses, quer da parte francesa quer da inglesa, adoptaram procedimentos semelhantes, de resto, já perceptíveis nos filmes de Wolf Koenig de 1953, bem como no trabalho de Terence Macartney-Filgate. Explicitados de forma coerente pela primeira vez em The Days Before Christmas (1957), um conjunto de filmes que antecipa o seriado Candid Eye, esses procedimentos fundadores, constituindo um corpo coerente de princípios, iriam permitir fazer alguns dos melhores documentários feitos para a Televisão. O documentário inaugural da série foi Blood and Fire emitido a 26 de Outubro de 1958. Mergulhando no real, Candid Eye abordou questões sociais, equacionou questões políticas, lidou com grupos problemáticos e deu a conhecer sem paliativos personagens extraordinárias como, por exemplo Glenn Gould e Stravinsky.
Há, finalmente, um ponto a salientar quanto ao conjunto da produção deste período que principia com o trabalho mais experimental da Unidade B do NFB, coincidente no tempo das primeiras experiências do Free Cinema, e o final da década de 60, quando o cinema directo parecia ter esgotado a sua capacidade de exposição televisiva e enveredava por outro tipo de desenvolvimentos. Esse ponto releva do modo peculiar como a produção canadiana lidou com a televisão e com o jornalismo, em particular.. Em muitos dos seus filmes é inquestionável o domínio das marcas de enunciação do cinema, mas há igualmente elementos de reportagem, de quando em vez textos expositivos de contextualização, mais raramemente, entrevistas. Não tanto na obra dos cineastas francófonos, mais nos filmes dos anglófonos e, sobretudo, no trabalho daqueles que assumiram, pelo menos durante algum tempo, a vertente mais jornalística como Colin Low que, aliás, viria a ser um dos responsáveis com John Kemeny pela proposta de criação, em 1966, de Chalenge for Change, um programa, como o nome indica, que era um desafio no sentido de ensaiar formas de documentário com base no cinéma-vérité.
Em suma, durante anos, no pós-guerra, o National Film Board levou a cabo diversas experiências que permitiram alargar o horizonte tanto de um novo tipo de cinema quanto de um novo jornalismo, no qual, raramente, o cinema deixou de estar presente. O NFB fazia pelo menos um filme por semana. A aceitação era tal que, por vezes, não havia sequer a ideia da circunstância em que esses filmes iriam ser exibidos, apesar da maior parte da produção se destinar à Televisão. No entanto, passavam igualmente, por exemplo, em salas de cinema como complemento dos filmes de fundo. Tanto podiam fazer parte de programas como Eye Witness quanto de Coup d’Oeil. É certo que, na sua maioria, inicialmente, tinham argumento e diálogos escritos, obedeciam a regras estritas, tinham um enfoque jornalístico. Mas também é certo que esses filmes, a partir de certa altura, permitiram iniciar a série de experiências que haveriam de conduzir quer a unidade anglófona quer a francófona ao cinema directo. E o cinema directo, segundo Michel Brault, não é mais do que filmar as pessoas tal como elas são.
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