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   viagem pelas imagens e palavras do      quotidiano

NDR

  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 29 de jan. de 2023
  • 13 min de leitura

Atualizado: 22 de out. de 2023


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Robert Drew Fonte: Drew Associates

"It would be a theatre without actors. It would be plays without playwrights; it would be reporting without summary and opinion; it would be the ability to look in on people's lives at crucial times from which you could deduce certain things and see a kind of truth that can only be gotten by personal experience."

Robert Drew


Imaginem um miúdo de 22 anos a juntar-se ao corpo de jornalistas e fotógrafos da mais famosa e prestigiada revista ilustrada do seu tempo, a LIFE. Corria o ano de 1946. Olhando para o rapaz, embora bem parecido, não se veria nele nada de especialmente impressivo. Seria mais um igual a tantos outros à procura de emprego no complicado período do pós-guerra. Chamava-se Robert Drew. Certamente, ninguém ousaria antecipar nele um dos mais combativos militantes da história do cinema directo. Sequer perceberia a razão de ser da sua presença nos escritórios da publicação em Nova Iorque. Havia, no entanto, um motivo. Quando chegou à Life, apesar da juventude, Drew era um veterano de guerra. Piloto de combate desde os 19 anos, tripulara um caça P-51 e levara a cabo 30 missões bem sucedidas na Europa.


No dia 31 de janeiro de 1944 o azar bateu-lhe à porta. O seu avião foi abatido próximo de Nápoles. Era a 31ª missão. Conseguiu saltar de pára-quedas acabando por cair no telhado de uma habitação. Os alemães desencadearam de imediato a caça ao homem. Drew ludibriou os perseguidores, fugindo para a montanha onde foi recolhido por um camponês. Escondido durante algumas semanas acabou por tomar conhecimento da existência de dois militares ingleses nas mesmas circunstâncias. Em conjunto, procuraram juntar-se às tropas aliadas. Só o conseguiram ao cabo de mais de três meses de inúmeras peripécias.


De regresso aos Estados Unidos, fez tudo para integrar a unidade de combate formada pelos primeiros caças a jacto. Não o conseguiu. A guerra aproximava-se do fim. Mas foi essa paixão pelos aviões que levou a LIFE a contratá-lo como especialista. Anos mais tarde, o operador de câmara Gregory Shuker, um dos seus colaboradores nos famosos Drew Associates, diria: “Quando jovem Bob ganhou experiência como piloto de caças. E um piloto de caças é diferente de um piloto de bombardeiros. Um piloto de caças voa sozinho. Toma as decisões que entende dever tomar. Ele é um piloto de caças. Quis fazer as coisas à sua maneira.”


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A aventura do piloto ainda adolescente Robert Drew é contada em From Two Men and a War, um documentário de 2004, no qual Drew prescinde em grande parte do estilo vérité e recupera memórias e cartas do amigo e prémio Pulitzer de jornalismo Ernie Pyle, com quem durante a guerra, em 1943, chegou a partilhar o mesmo quarto. Pyle escreveu sobre os feitos do jovem Drew, cujo avião estava equipado com uma máquina de filmar. Com ela foi possível obter não só magníficas imagens de combate, mas também imagens em terra, designadamente do próprio Pyle, morto dois anos mais tarde no Pacífico por um sniper japonês. No filme, Cliff Robertson dá voz aos textos de Pyle. Na imagem, Drew e Pyle. Fonte: International Documentary Association

Quis fazer as coisas à sua maneira e fez. Levou tempo. Mas Primary (1960), o primeiro filme dos chamados Drew Associates, do qual adiante se falará, não era comparável a nada até então feito nos Estados Unidos. Contudo, sendo a influência de Robert Drew no desenvolvimento do direct cinema consensual, ou quase, a verdade é que raramente se cuida de apresentar os seus argumentos no contexto da defesa da sua ideia original do screen journalism. A título de exemplo, Richard Barsam, embora chamando a atenção para a surpreendente produção de Drew e dos seus associados entre 1960 e 1962, nada menos de 19 documentários sobre temas diversos feitos para o pequeno ecrã, presta atenção sobretudo ao fracasso da tentativa, reiterando pressupostos dados como adquiridos sobre a natureza do medium segundo os quais, para fidelizar audiências, os formatos seriam indispensáveis. Só nos anos 90 o estudo exaustivo de P. J. O’Connel veio permitir uma ideia mais precisa e sistematizada sobre o papel de Robert Drew, os seus objectivos e o seu modo de dar a ver, numa primeira fase, inspirado nas fotografias da LIFE Magazine. A talhe de foice diga-se que o cineasta não se inibiu de manifestar discordâncias pontuais sobre determinados aspectos do livro relacionados com as versões dos seus colaboradores a propósito da aventura do cinema directo.

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Por antecipação deve dizer-se que, paradoxalmente, Primary (1960) abriu o caminho a um novo tipo de documentário sem ter sido sequer exibido na televisão. Aliás, de início, passou praticamente despercebido. O filme – o primeiro exemplo americano de direct cinema – é um registo em modo de observação das eleições primárias do Partido Democrata no estado do Wisconsin durante as quais estiveram frente a frente os senadores John Kennedy e Hubert Humphrey. Drew não andava à procura de um cinema novo. Estava convencido, isso sim, da possibilidade de criar um novo tipo de documentário jornalístico capaz de atrair grandes audiências. Kennedy, terá ficado convencido da importância dos documentários para a sua política da Nova Fronteira e reincidiu na experiência em Crisis: Behind a Presidential Commitment (1963). Fonte: TCM

A LIFE Magazine e os primeiros passos do Screen Journalism


Da Grande Depressão até ao fim da Guerra do Vietname as fotografias relativas a esse período de tempo foram publicadas em diversas revistas ilustradas. A mais famosa de todas terá sido a LIFE, fundada em 1883. Não será exagero dizer que a maioria dos grandes fotojornalistas universalmente reconhecidos - citando de memória Margaret Bourke-White, Robert Capa, Henri Cartier-Bresson, Alfred Eisenstaedt, Gordon Parks, W. Eugene Smith e até o futuro cineasta Stanley Kubrick - passou por ali. Entre 1936 e 1972 estima-se que um em cada quatro americanos via semanalmente as fotografias da LIFE . No início dos anos 50, Robert Drew considerava significativa a diferença entre o que diziam as fotografias da revista e aquilo que depois via na televisão sobre os mesmos temas. Se a narrativa fotográfica era viva, dinâmica e emotiva, na televisão era aborrecida, rotineira, sem a chama da imaginação.


O fotojornalismo da LIFE, com efeito, ia ao encontro da vida, procurava a espontaneidade no sentido do momento decisivo, ou seja, quando alguma coisa de facto acontecia devia ficar registada na película. Em Cinéma-Vérité: Defining the Moment (1999) de Peter Wintonick, Cartier-Bresson explica esse momento único do disparo da câmara comparando-o ao orgasmo sexual, algo cuja significação plena cresce até ficar condensada num instante. Na televisão, o paradigma do documentário era o de See It Now do jornalista da CBS Edward R. Murrow, assente no primado da palavra, com textos explicativos e amplo recurso a entrevistas (ver neste blogue See It Now I e seguintes no segmento de media). Segundo Drew: “Não se consegue perceber o que se passa no mundo através desse tipo de documentário, ainda que seja ilustrado e comentado. Salvo em algumas raras excepções não nos permite ver por nós próprios.” Por outras palavras, o espectador ficava condicionado a aceitar o ponto de vista explicitado. No sentido de contrariar essa tendência, começou então a pensar num tipo de jornalismo capaz de transportar para o ecrã a espontaneidade e a capacidade de observação das fotografias da revista.


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Capas da LIFE Fonte: Old Life Magazines

De parceria com um colega, Alan Grant, e com o apoio de um responsável da NBC, Bud Barry, Robert Drew propôs-se fazer um programa piloto no qual tentaria pôr em prática as suas ideias. Surgiu, assim, Key Picture, um magazine de televisão de quarenta minutos com cinco estórias. Os resultados, porém, ficaram muito aquém do esperado. As imagens pouco tinham de espontâneo, a montagem era previsível e a narração continuava presente. Pouco sobrava para o olhar. Drew fizera, afinal, uma espécie de See It Now para pior, tanto mais que faltava alguém com a presença totémica de Murrow para articular o discurso. No entanto, segundo O’Connel, algo de positivo emergiu: “As lições de Key Picture eram claras; o jornalismo de observação requeria o desenvolvimento de equipamentos e métodos radicalmente diferentes dos utilizados por forma a poder ser concretizado. Drew não sabia exactamente do que necessitava, mas sabia que seria um longo e dispendioso processo.”


Rejeitado pela NBC, Key Picture foi apresentado à Time Inc., empresa proprietária da LIFE e produtora de March of Time, acompanhado de um memorando dizendo basicamente o seguinte: a televisão iria roubar tempo à leitura das revistas e, portanto, afectar as suas receitas publicitárias; a LIFE tinha mais em comum com o jornalismo televisivo do que este com o entretenimento; o entretenimento na televisão era de tal forma invasivo que as suas “fantasias soporíferas” ocupavam o espaço que devia ser reservado à actualidade; assim sendo, a Time Inc. devia lançar uma ofensiva contra o entretenimento e apoiar o jornalismo televisivo “através da produção de um programa semanal de primeira qualidade capaz de atrair uma audiência de massas.” A longo prazo, advertia Drew premonitoriamente, o debate não seria entre imprensa e televisão, mas entre jornalismo e entretenimento. A sua proposta chegou a ser ponderada, mas sem resultados práticos.


Entretanto, uma bolsa da Fundação Nieman permitiu-lhe passar uma temporada na Universidade de Harvard onde fez um curso avançado para jornalistas profissionais. Aí, familiarizou-se com o pensamento de dois pessimistas em relação ao futuro da democracia, Henry Adams e Walter Lippmann, reflectiu sobre as teses optimistas de John Grierson a propósito dos efeitos do filme documentário no plano da cidadania e entusiasmou-se com The Philosophy of Loyalty de Josiah Royce, discípulo de William James, para quem o indivíduo devia dedicar lealdade incondicional a causas socialmente úteis. Drew viu na obra de Royce um estímulo à sua ideia de revolucionar o jornalismo de televisão. Essa revolução, porém, não passaria pelas notícias (hard news). O seu interesse concentrou-se no documentário, como reafirmaria muito mais tarde, no ano 2000, durante um seminário no Sun Valley Center of Arts que juntou pioneiros do cinema directo como Albert Maysles, Richard Leacock e D.A. Pennebaker.


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Os lendários irmãos Maysles, Albert e David, parceiros de uma vida, autores de alguns dos melhores documentários americanos de cinema directo. Diria Albert Maysles: People are people. We're out to discover what is going on behind the scenes and get as close as we can to what is happening. Fonte: The New York Times

Drew reiterou nessa altura ter sido em Harvard que estruturou o seu pensamento. De manhã assistia às aulas e debates. À noite via televisão. Constatou que os documentários de televisão eram semelhantes às suas aulas da manhã posto que obedeciam à lógica didáctica que impregnava a narração oral. Retirando o som a See It Now verificou que a significação se desintegrava. Viu filmes produzidos por John Grierson. Considerou-os, de um modo geral, excessivamente expositivos e institucionais, embora a ideia de contribuir para o melhor esclarecimento dos cidadãos continuasse pertinente. Por outro lado, encontrou nos filmes de Robert Flaherty afinidades com a narrativa do jornalismo de imagens da Life. Flaherty retirara a câmara dos estúdios, filmava no exterior e construía dramaticamente as narrativas. “Drama” seria, aliás, a palavra-chave da revolução pretendida por Drew:


“… o meu ponto de vista teórico levou-me a concluir que tínhamos um meio de difusão (a televisão), tínhamos poder e drama na vida real onde quer que houvesse pessoas a viver ou a morrer ou a trabalhar duramente ou a apaixonarem-se ou fosse o que fosse, e tudo o que precisávamos de fazer era dar ao jornalista, tal como eu o entendia, histórias autênticas da vida real, editá-las de modo a que se contassem a si mesmas, com um mínimo de narração. Assim, teríamos, por um lado, o drama, porque estaríamos a tratar do real e não do ficcional e, por outro lado, uma nova forma de jornalismo porque obedeceria a uma lógica dramática e não a uma lógica verbal e esquemática.”


O ponto de vista de Drew dificilmente seria aceite pela maioria dos jornalistas, cujos critérios passavam fundamentalmente pela objectividade e pelo equilíbrio. Tão pouco poderia ser aceite pelos operadores de televisão que temiam derivas subjectivas fora do controle exigido pela lógica de broadcasting, na qual a fórmula repetitiva prevalecia sobre os conteúdos de mais ampla imaginação. Ao longo dos anos, muitos interrogaram Drew porque razão insistia em chamar jornalismo ao que propunha, porque razão não lhe chamava simplesmente “drama”. A sua resposta foi sempre a mesma: era preciso mudar o jornalismo de televisão.


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D. A. Pennebaker filma Bob Dylan em Dont Look Back (1967) uma das obras de referência do cinema directo Fonte: DN

Devido às suas convenções, o documentário jornalístico de televisão, recorrendo às categorias de Plantinga, aproxima-se da voz formal, essencialmente afirmativa e assertiva, mesmo quando procede ao exercício do contraditório. Tende, por isso, a não deixar amplitude de interpretação ao destinatário. As coisas são como são apresentadas. A proposta de Drew está mais próxima da voz aberta, “epistemologicamente hesitante”, na medida em que em vez de explicar procura observar, explorar, abrir espaço a múltiplas hipóteses de interpretação mais de acordo com a complexidade do real. É o que se passa, por exemplo, nos filmes de Frederick Wiseman, bem como noutros documentários de observação. Na maioria dos casos, não há neles certezas, mas pistas, quando muito sugestões. Em princípio, caberá ao receptor decidir. Por analogia, forçando um pouco a nota, poder-se-ia dizer que aquilo que distingue as duas vozes é, de algum modo, o que permite distinguir o cinema de autor do cinema clássico americano. O primeiro é centrado nas personagens e nas suas inquietações, hesitações e derivas, aproxima-se do ensaio. O segundo obedece à ordem do argumento sendo, por isso, por norma, mais previsível.


No caso do screen journalism de Robert Drew, porém, é necessário resistir a uma colagem apressada de etiquetas. Se os seus filmes passam pela observação nem por isso dispensam procedimentos, na montagem, semelhantes aos da construção da narrativa clássica. Dito de outra maneira, tratando-se de cinema de observação dispensam o argumento, mas exigem “drama”, logo, não enjeitando a possibilidade de encontrar na montagem a estrutura em três actos – introdução, problema, solução – com pontos de viragem, por forma a fazer avançar a história. Por outro lado, descontando Flaherty, as referências de Drew passam, sobretudo por programas de televisão como Omnibus e The Search, tal como por nomes como os de Bill McClure, Arthur Zegart, Fons Ianelli e Richard Leacock. Com excepção de Leacock os demais pouco ou nada dirão, hoje, a pessoas sem um conhecimento razoável da História da Televisão americana.


McClure era um dos poucos operadores de See It Now, segundo Drew, que conseguia dar vida e espontaneidade às imagens tornando a narração desnecessária. Zegart costumava acumular as funções de argumentista, realizador e produtor executivo, e era um dos habituais de The Search. Apesar das limitações dos equipamentos – estava-se em meados dos anos 50 – conseguia, ao contrário da maioria dos repórteres televisivos do seu tempo, caracterizar as personagens conferindo-lhes espessura psicológica e dramática. Drew recorda particularmente um filme realizado na prisão de San Quentin, no qual Zegart dava a conhecer de forma subtil o modo de relacionamento dos presidiários. Ianelli trabalhava para Omnibus e colaborara com Morris Engel, o primeiro cineasta a utilizar uma câmara portátil de 35mm com som síncrono. Ianelli desenvolvera uma câmara mais pequena de 16mm também com som síncrono, tendo feito dois filmes, um numa urgência hospitalar, outro sobre um pugilista que decidira retirar-se. Em qualquer dos casos, Drew diz ter ficado impressionado com o realismo das cenas. Apontava-lhes, porém, uma falha narrativa devido à ausência de plot points. Finalmente, Leacock chegou ao conhecimento de Drew através de Toby and the Tall Corn, um filme também exibido em Omnibus.


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Richard Leacock a filmar Louisiana Story, 1948, com Robert e Francis Flaherty. Leacock utilizou em grande parte do filme uma câmara Arriflex 35 II. Fonte: Hulton Archive/Getty

Leacocok trabalhara como operador de câmara em Louisiana Story (1948) de Robert Flaherty, cujo método o terá levado a compreender a importância do olhar. Quando rodavam Louisina Story – um filme que levou anos a concluir com uma relação de 25:1 entre a metragem de película utilizada e o material aproveitado na versão final – Leacock tinha dificuldade em perceber a razão pela qual Flaherty passava horas, dias e até semanas observando o material filmado daí resultando, muitas vezes, a repetição de cenas aparentemente exemplares. Quando, porém, as cenas eram repetidas, os resultados, de um modo geral, davam razão a Flaherty, como no caso da sequência da perfuração em busca de petróleo, inicialmente filmada de dia e, posteriormente, repetida à noite de modo a eliminar tudo aquilo que não fosse essencial à compreensão. Posteriormente, Leacock colaborou como operador de câmara free-lance com Louis de Rochemont, as Nações Unidas, a CBS e algumas agências governamentais, tendo igualmente participado em documentários de Leo Hurwitz, Willard Van Dyke e Irving Jacoby. No entanto, segundo ele próprio relata, essas experiências nunca foram inteiramente satisfatórias. Os motivos dessa insatisfação radicavam essencialmente na dificuldade de manuseamento dos equipamentos existentes.


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Poster de Louisiana Story (1948) de Robert Flaherty Fonte: Wikimedia Commons

Tecnologia, linguagem: 16mm, sync sound


O mencionado Toby and the Tall Corn – um filme de observação mostrando o processo de montagem de uma tenda de divertimentos, a chegada do público que a vai enchendo e a sua reacção às atracções – era já uma consequência das tentativas de Leacock de libertar a câmara. O encontro de Drew e Leacock foi, portanto, um encontro de pessoas com preocupações comuns, embora com opiniões diferentes quanto à terminologia do que estavam em vias de concretizar. Drew vinha do campo do jornalismo. Leacock, apesar da sua recorrente colaboração com a televisão, sempre se identificou como cineasta. Ambos se empenharam em desenvolver uma nova geração de equipamentos, sobretudo o primeiro, cuja posição na Time, Inc. lhe permitiu obter um financiamento de meio milhão de dólares para esse efeito. Em todo o caso, importa lembrar que também no Canadá, França e Reino Unido havia trabalho no mesmo sentido.


Retrospectivamente, facilmente se constata, desde o primórdio das imagens em movimento, a estreita relação estreita entre tecnologia e linguagem. Não será difícil admitir, por exemplo, a diferença entre o Kinetógrafo de Edison e o cinematógrafo dos Lumière e as consequências daí decorrentes. O primeiro era um equipamento de grandes dimensões, pesado e operado através da electricidade. Estava, por isso, confinado ao estúdio onde Edison podia filmar números de circo ou de vaudeville numa perspectiva teatral. O filme de enredo americano terá encontrado aí o seu ponto de partida. O cinematógrafo, muito mais leve, saiu à rua e permitiu ir ao encontro do quotidiano e, portanto, do documental.


No final dos anos 20, quando o filme documentário ganhou identidade e autonomia, as câmaras, embora pudessem deslocar-se, pediam ainda o apoio do tripé. A sensibilidade do filme a preto e branco exigia iluminação artificial numa variedade de circunstâncias. Estes constrangimentos de ordem técnica influenciaram, por exemplo, o cinema de Robert Flaherty, cujo método, entretanto, se revelou o mais adequado para tirar partido dos meios disponíveis. Em Man of Aran (1934) adaptou teleobjectivas especiais de modo a filmar dramaticamente a luta do homem com o mar.


Com o advento do filme sonoro, nos anos 30, o cinema teve de encerrar-se no estúdio dada a dificuldade de deslocação para o exterior dos equipamentos de som. A sua dimensão, o número de pessoas que ocupavam, a juntar aos custos, desencorajavam saídas para o exterior. Daí a sonorização de documentários, na maioria dos casos, ser feita posteriormente. Isso explica, também, o predomínio da voz off, do texto expositivo e da voz formal.


No pós-guerra e nos anos 50, na Europa, a tentativa de fazer um cinema documental inovador em França e no Reino Unido foi inicialmente levada a cabo sem som síncrono. Foi assim com filmes como Nuit et Brouillard (1956), Toute La Mémoire du Monde (1956) e Guernica (1950) de Alain Resnais, Les Statues Meurent Aussi (1953) de Chris Marker e Alain Resnais, O Dreamland (1953) de Lindsay Anderson e Momma Don’t Allow (1956) de Karel Reisz e Tony Richardson. Seria necessário esperar ainda algum tempo pelos primeiros documentários em 16mm e som síncrono.


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O suíço de origem polaca Stefan Kudelski, inventor da Nagra, que revolucionou a captação de som no cinema Fonte: The Independent

As câmaras de 16mm, no entanto, são mais antigas do que, por vezes, se pensa. As primeiras foram produzidas pela Estman Kodak, em 1923. Ao longo dos anos sofreram múltiplas adaptações, tendo sido utilizadas, nomeadamente por Leni Riefenstahl em Olimpíada. Mas, só no final dos anos 5O, início dos anos 60, permitiram aos operadores uma mobilidade sem precedentes. As mais conhecidas viriam a ser a francesa Éclair, uma invenção de André Coutant de 1961 e a alemã Arriflex. Ambas tinham sido desenhadas para o apoio do ombro do operador e, em qualquer dos casos, ficara resolvido o problema do ruído dos motores. Dispunham de lentes zoom podendo, por isso, mudar a escala dos planos sem interromper a filmagem e estavam ligadas a gravadores de som dos quais o mais conhecido, denominado Nagra, foi desenvolvido pelo suíço Stefan Kudelski, em 1958. Tinham igualmente grande autonomia de película, ela própria tendo evoluído no sentido de poder ser utilizada com um mínimo de iluminação artificial, podendo mesmo dispensá-la em determinadas situações. A constante actualização dos equipamentos permitiu, naturalmente, a pluralidade de discursos e narrativas.


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André Coutant, o engenheiro inventor de uma enorme gama de máquinas de filmar entre as quais a famosa Éclair 16, em 1963, portátil e silenciosa, permitindo grande mobilidade e a captação de som directo. Fonte: Afcinema

Lindsay Anderson e Karel Reisz, prosseguindo numa via que vinha dos meados dos anos 50, libertaram a câmara de filmar e romperam com os métodos do documentário inspirado em Grierson; posteriormente, Robert Drew e Richard Leacock – na verdade, mais o primeiro que o segundo – encararam a possibilidade de converter o filme documentário em documentário jornalístico de televisão com base no cinema de observação; os irmãos David e Albert Maysles partindo igualmente da observação evoluíram para uma perspectiva estética alheia aos critérios jornalísticos; D.A. Pennebaker, ao centrar a sua atenção nos ícones emergentes das novas tribos juvenis, como Bob Dylan, adoptou o estilo fly on the wall e deu expressão às manifestações da contra-cultura dos anos 60; Jean Rouch e Michel Brault admitiram ter condições para exercitar através do cinema um modo participativo de relacionamento com o mundo. Roman Kroiter e Wolf Koenig seriam pioneiros na Unidade B do National Film Board do Canadá das primeiras experiências de cinema directo para televisão na série documental Candid Eye (ver neste blogue Candid Eye: Vérité ou mostrar a vida como ela acontece).


Primeira conclusão. No próximo artigo, faremos a avaliação da influência que estes nomes terão tido, ou não, no screen journalism de Robert Drew. De momento diremos que se o trabalho de Edward R. Murrow em See I Now representa a matriz daquilo que, de um modo mais ou menos fiel à sua fórmula, viria a ser o documentário jornalístico de televisão, Robert Drew é o intérprete da tentativa de justamente contrariar a fórmula de Murrow propondo a sua substituição por um documentário que devolvesse o primado à imagem na enunciação jornalística. Tendo ou não consciência disso, Drew aproximava-se daquilo que os canadianos de língua inglesa do National Film Board vinham fazendo desde 1958, nomeadamente na série documental para televisão Candid Eye. Pela mesma altura, é bom lembrá-lo, quer no cinema quer na televisão, multiplicavam-se as tentativas de recuperar a espontaneidade do real através da observação. Tal como Murrow, mas por outras razões, Drew viria a ser um perdedor, não conseguindo que o seu método se impusesse. Para já, fica esta ideia; as câmaras de 16mm com som síncrono proporcionaram uma abordagem do cinema documental no limiar daquilo a que poderia chamar-se uma utopia do real. Roberto Drew teve um papel central nessa revolução.



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O seriado documental Candid Eye do NFB esteve em antena em 1958 e 1959. Entre os seus principais colaboradores contavam-se, além de Kroiter e Koenig, Colin Low, Terence Macartney-Filgate e Tom Daly. Lonely Boy segue o dia a dia do ídolo juvenil Paul Anka através de uma observação atenta a detalhes. Na foto vê-se Anka quando cantava Put your Hand on my Shoulder num concerto em Nova Iorque. A sequência começa com uma série de close-ups de teenagers do sexo feminino. Um dos agentes da polícia encarregado da segurança do palco assiste perplexo. Surge um grande plano de uma jovem com o rosto marejado de lágrimas ao qual se segue, não a imagem do cantor em palco, como seria previsível, mas um plano de pormenor da sua mão esquerda onde a câmara se imobiliza durante alguns segundos. A imagem é tanto mais poderosa quanto a banda som mistura a melodia da canção com a estridência das adolescentes. A câmara sobe depois lentamente até se imobilizar em grande plano no rosto de Anka. A expressão Candid Eye acabou por ser informalmente adoptada como equivalente para o cinema directo feito pela unidade de língua inglesa do National Film Board do Canadá. Fonte: Offscreen

Ver cena aqui



Continua









 
 
 
  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 7 de jan. de 2023
  • 17 min de leitura

Atualizado: 22 de out. de 2023


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Police (1958), de Terence Macartney-Filgate. Fonte: NFB

“Il faut le dire, tout ce que nous avons fait en France dans le domaine du cinéma-vérité vient de l'ONF (Canada). C'est Brault qui a apporté une technique nouvelle de tournage que nous ne connaissions pas et que nous copions tous depuis. D'ailleurs, vraiment, on a la "brauchite", ça, c'est sûr; même les gens qui considèrent que Brault est un emmerdeur ou qui étaient jaloux sont forcés de le reconnaître."

Jean Rouch


Este é um texto sobre o cinema documental do Canadá, sobre os primórdios daquilo que, sendo complexo e contraditório, acabou por encontrar um lugar comum sob o guarda chuva de uma palavra: vérité ou verité, no uso que dela fizeram durante muitos anos os anglo-saxónicos. Daí a possibilidade de encontrar uma espécie de linhagem verité onde cabem cineastas tão diferentes quanto Robert Drew, Roman Kroiter, Albert Maysles, Wolf Konig, Jean Rouch, Richard Leacock, Michel Brault e até Frederick Wiseman, isto para citar apenas alguns e deixando de fora dezenas de outros de méritos igualmente reconhecidos. A irmandade, adiante-se, muitas vezes se envolveu em controvérsia no centro da qual houve razões de vária ordem, mas todas elas de algum modo articuladas em função das questões do real e da verdade.


Certamente, tudo isto acontece num contexto histórico específico. Aproveita a lição do neo-realismo italiano. Tira vantagem de tecnologias leves. Beneficia do fenómeno da reconstrução do pós-guerra e do carácter de insurgência cultural de algumas das suas manifestações. E coincide com a afirmação da Televisão como medium dominante. O futuro do documentário, na verdade, parecia ser dela indissociável, da sua agilidade para lidar com a actualidade e com os chamados current affairs. Parafraseando Umberto Eco, o historiador e crítico francês Roger Odin aludiu até a uma metamorfose do paleo-documentário em neo-documentário. E, de facto, alguma coisa mudou.


Nos Estados Unidos, no início dos anos 50, tornou-se evidente o predomínio do documentário jornalístico, uma modalidade coerente com a história dos media americanos. Mas essa tendência não foi tão generalizada quanto, por vezes, se crê. Houve diversidade nas narrativas que o documentário foi encontrando, algumas delas, digamo-lo sem receio, revolucionárias. Paradoxalmente, apesar de inseridos em unidades de produção tendencialmente jornalísticas, foi até, justamente a partir da Televisão - deixando de lado a Europa -, que os cineastas deram corpo às obras mais interessantes, ou seja, aquelas que viriam a designar-se genericamente por vérité. Nesse campo, destaca-se a produção do National Film Board (NFB), decisiva quanto ao modo de olhar o novo cinema documental.


Os jovens turcos


Na altura em que os cineastas ingleses do Free Cinema, em meados dos anos 50, declaravam o fim do movimento e os mais conhecidos de entre eles começavam a preparar-se para as longas metragens de ficção, no NFB, quer na unidade B de língua inglesa, hegemónica, quer na unidade de língua francesa, os documentaristas investiam na recusa da ortodoxia institucional e procuravam, por um lado, abordar o real de uma forma espontânea e, por outro, lançar as bases de um cinema de relação.


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Antecipando um exemplo. Lonely Boy (1962) de Roman Kroiter e Wolf Koenig é um dos mais brilhantes documentários alguma vez feitos sobre uma estrela de Rock’n Roll. A estrela era um rapaz de 18 anos que adoptara o nome artístico de Paul Anka por decisão de um empresário preocupado com a sua galinha dos ovos de ouro ao ponto de a fazer emagrecer com ajuda especializada, aumentar a sua massa muscular à custa de muitas horas de ginásio e entregá-lo nas mãos de um cirurgião plástico para lhe dar um rosto compatível com o esperado de alguém capaz de saltar para o topo das paradas de sucessos com cada nova canção produzida. Anka era um bom escritor de canções. Tinha uma relação fortemente empática com as suas admiradoras, na maioria, muito jovens. Atingiu num ápice, à escala da época, projecção planetária. Visto hoje facilmente se constata que o filme estã não só muito à frente do seu tempo e ainda mais à frente da maioria dos biopics sem ponta por onde se lhes pegue que por aí circulam. É um dos títulos indispensáveis do cinema directo canadiano. E um exemplo do que foi o seriado televisivo criado pelo National Film Board ao qual foi dado o nome de Candid Eye. Fonte: NFB

A maioria dos filmes exibida na televisão canadense nos anos 50 resultava de encomendas ao NFB. De um modo geral, as obras de referência precursoras do cinema directo foram produzidas com essa finalidade. Wolf Koenig, um dos fundadores de Candid Eye, definia a geração de jovens cineastas do pós-guerra, de língua inglesa ou francesa, do seguinte modo: gostava de Flaherty, conhecia bem o movimento documentarista britânico, valorizando os filmes artisticamente mais relevantes, como Night Mail (1936) de Basil Wright e Harry Watt, considerava importantes diversos documentários da II Guerra Mundial como Listen to Britain (1942) de Humphrey Jennings and Stewart McAllister, Desert Victory (1943), um filme produzido pelo Ministério da Informação Britânico, ao estilo da famosa série americana de Frank Capra Why We Fight, com realização, não creditada, de Roy Boulting e David MacDonald, ou ainda True Glory (1945), um filme de compilação com imagens de cerca de 1.400 operadores de câmara sobre combates dos Aliados na Europa com realização, também não creditada, de Carol Reed e Garson Kanin.


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Fonte: IMDb

Quanto aos chamados filmes de ficção, Koenig cita como um dos favoritos da sua geração o extraordinário Naked City (1948) de Jules Dassin de forte pendor realista. Pelo teor das preferências, numa altura em que se procurava encontrar novos caminhos para a Televisão, facilmente se compreenderão as opões contidas na proposta apresentada pelos cineastas da Unidade B do National Film Board para o seriado documental que haveria de ser Candid Eye:


“Mostrar a vida tal como ela acontece, sem argumento prévio nem qualquer tipo de ensaio: capturá-la com som síncrono, em interiores e no exterior, sem colocar perguntas nem solicitar repetições; editar os filmes por forma a fazer o público rir e chorar (se possível ambas as coisas ao mesmo tempo); mostrar os filmes na televisão a milhões e mudar o mundo levando as pessoas a compreender que a vida real é magnífica e cheia de significado.”


Candid Eye e O Instante Decisivo


A proposta confundiu os responsáveis. A aprovação de qualquer filme passava por uma série de preliminares, nomeadamente uma descrição detalhada do argumento e do modo de o concretizar. Havia igualmente um conjunto de convenções que devia ser escrupulosamente respeitado como a obrigatoriedade do uso do tripé, determinadas formas de enquadramento da imagem, certas regras de iluminação e a presença de um texto lido por vozes com predominância de graves. Estas convenções, que repousavam numa concepção académica do cinema prevalecente no NFB, então sob a direcção de Grant McLean, são evidentes nas reportagens, por exemplo, de Coup d’Oeil, que teve, aliás, a colaboração da maioria dos cineastas posteriormente associados ao cinema directo. Daí as dificuldades levantadas: Como fazer aprovar um argumento que não existe? Como se leva o público a aceitar um filme que não conta uma história e passa uma mensagem não convencional? Como é que uma equipa de cinema consegue passar despercebida de modo a criar a ilusão de espontaneidade? Boas perguntas, mas, no essencial, as respostas estavam todas, ou quase todas, na introdução de Henri Cartier-Bresson ao seu livro O Instante Decisivo. Por exemplo:


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Henri-Cartier Bresson: Corrrida “Os Seis Dias de Paris”, Vélodrome d’Hiver, Paris, 1945 Fonte: El País

“A reportagem é uma operação progressiva da cabeça, do olho e do coração para exprimir um problema, fixar um evento ou impressões. Um evento é tão rico que dá-se voltas em torno dele enquanto se desenvolve. Procura-se a sua solução. Encontra-se às vezes em alguns segundos; às vezes ela demanda horas ou dias; não existe solução padrão (...) Nós jogamos com coisas que desaparecem, e quando desaparecem é impossível fazê-las reviver (…).”


Daqui, tratando-se da complexa relação do fotógrafo com o objecto do seu interesse, resulta como corolário:


“Então é preciso abordar o tema a passos de lobo, mesmo tratando-se de uma natureza morta. É preciso uma aproximação sigilosa como a do gato, mas é necessário ter o olhar agudo (...) Se não o fotógrafo torna-se alguém insuportavelmente agressivo (...) uma palavra pode pôr tudo a perder (...) o melhor é fazer que esqueçam o fotógrafo e o aparelho, que sempre é demasiado visível.”


Diz também Cartier-Bresson que a composição deve ser uma preocupação constante “mas no momento de fotografar ela só poder ser intuitiva pois andamos às voltas com instantes fugidios onde as relações são instáveis”. Portanto, só vivendo nos descobrimos, descobrindo, ao mesmo tempo, o mundo exterior, ou seja: “Ele forma-nos, mas nós também podemos agir sobre ele. Deve, como tal, estabelecer-se um equilíbrio entre esses dois mundos, o interior e o exterior, num diálogo constante do qual deverá resultar algo de novo. É esse o mundo que precisamos de comunicar.”


Para Wolf Koenig e para os futuros cineastas de Candid Eye o livro de Cartier-Bresson tinha o peso de uma Bíblia profana. Fizeram chegar ao então director de produção Donald Mulholand uma cópia, à qual juntaram uma explicação mais precisa dos seus objectivos. Finalmente, foi dada luz verde à experiência. Os cineastas da Unidade B, com a colaboração de operadores e técnicos de língua francesa, saíram à rua ao encontro do real e fizeram muitos documentários. Mais tarde, diria Koenig: “Muitos eram maus, alguns aceitáveis, um par deles bons. Mas o sucesso que tiveram deve-se em larga medida a O Instante Decisivo. Para nós chegou num momento decisivo.”


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Wolf Koenig: “Show our world and the lives lived by ordinary people, but without influencing or manipulating them. Observe but do not disturb. Preferably, remain invisible. All with the purpose of showing us all who we are.” Fonte: NFB Blog

Candid Eye principiou a ser exibido em 1958 na CBC–TV. Rapidamente ganhou não apenas a aceitação do público, mas também do grupo de cineastas da unidade francesa do NFB criada em 1956, em Montreal. No documentário de Denys Desjardins, Le direct avant la lettre (2005), Koenig diz que essa colaboração se revelou muito produtiva devido à existência de um conjunto de preocupações comuns, ainda que pudesse haver divergências quanto ao modo de encarar o real. Havia uma mesma atitude em relação à recusa do argumento, à encenação de cenas, à atenção prestada ao quotidiano aparentemente banal evitando efeitos retóricos, à preferência dada aos equipamentos ligeiros. Mas, se os cineastas da Unidade B procuraram o olhar espontâneo, não intrusivo, de algum modo distante das suas personagens, Michel Brault, Claude Jutra e outros optaram por uma perspectiva mais relacional, estabelecendo um contrato com os seus protagonistas um pouco - mas não inteiramente - na linha do que Jean Rouch andava a fazer nos seus filmes rodados em África ao longo do rio Niger. Dito de outra maneira, se Candid Eye partia de alguém ou de um acontecimento encarando o processo fílmico não como uma forma de moldar o real, mas de revelar e, desse modo, permitir o acesso à significação, no cinema da unidade francesa o envolvimento do cineasta no processo fílmico podia ser assumido com as consequências daí decorrentes. No entanto, importa reter que a linha de diferenciação de ambas as abordagens, nesta fase, era relativamente ténue.


Robert Flaherty Film Seminar, 1958


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Satyajit Ray, extraordinário cineasta indiano de cunho fortemente poético e documental, uma das presenças no seminário Flaherty de 1958. Foram debatidos os seus filmes Aparaiito (1956) e Pather Panchali (1955). A presença de Ray ilustra o carácter ecuménico do evento. Fonte: Robert Flaherty Film Seminar

Se a génese da aventura do cinema directo na sua versão canadense é contemporânea de Candid Eye e por ele impulsionada, é habitual, no entanto, atribuir um papel pioneiro a Les Raquetteurs (1958) de Michel Brault e Gilles Groulx. Em rigor, o filme não era ainda cinema directo porque a quase totalidade da banda som foi recriada em estúdio. Apenas uma pequena parte resultou do som síncrono. O sucesso do filme e o reconhecimento europeu por parte da crítica especializada contribuíram não só para validar os esforços de Candid Eye – Koenig, Kroiter e Filgate receberam imediatamente uma encomenda de 15 filmes para a televisão – mas, também, para pôr em cheque a estrutura conservadora do National Film Board. Permitiu aos cineastas do Quebeque, por outro lado, entrarem em contacto com a pequena comunidade internacional do que viria a ser o cinéma-vérité, nomeadamente com Jean Rouch que assistiu, na companhia de Michel Brault, a Les Raquetteurs durante o Robert Flaherty Film Seminar, na Califórnia, em 1958. Comentando as mudanças operadas na organização por si fundada e os novos filmes do National Film Board, John Grierson aludiu de forma oblíqua à existência de um “cavalo de Tróia da estética”. Mais tarde, porém, viria a reclamar parte da responsabilidade das novas opções como sendo uma consequência natural do trabalho até então desenvolvido.


O Seminário Flaherty de 1958 foi histórico por diversas razões. Em primeiro lugar, debateu os filmes do Free Cinema, ainda praticamente desconhecidos (ver neste blogue o artigo intitulado Free Cinema: Uma atitude significa um estilo). O famoso crítico, historiador e teórico do Cinema Lewis Jacobs ficou impressionado quer pela forma como tinham sido produzido e realizados, quer pela narrativa. O tópico da narrativa tornar-se-ia controverso uma vez que outros críticos, aparentemente incapazes de avaliar a capacidade observacional da câmara de filmar, sugeriram precisamente a ausência dela. Em segundo lugar, permitiu a Michel Brault mostrar a produção recente da sua Unidade francesa do NFB, portanto, numa fase pré-cinema directo. E, finalmente, prestou atenção a cineastas como John Marshall, Robert Gardner e, sobretudo Jean Rouch, cujo método foi objecto de múltiplas avaliações e cujos filmes suscitaram um dilema aos críticos, nomeadamente Colin Young e Martin Zweiback:


“Um público que veja estes filmes fora do contexto intimista e amigável de um Seminário Flaherty ficará muitas vezes desapontado e achá-los-á obscuros, repetitivos e mal construídos. Rouch, porém, é em primeiro lugar um humanista e só depois um cineasta. E se as expectativas convencionais do público e dos produtores interferem com o seu trabalho, ele acha que são eles que deverão desistir, não ele .”


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Fonte: Vodkaster

O problema suscitado por Young e Zweiback antecipava o que seria posteriormente recorrente na relação do cinema directo com a televisão, ou seja, a dificuldade do público em seguir a narrativa devido à presença de uma voz epistemologicamente hesitante - na terminologia de Plantinga - em função da polissemia da imagem. De qualquer modo, Young e Zweiback manifestaram-se a favor de reconhecimento de que, a partir de então, seria necessário reconsiderar a ideia do documentário.


Les Raquetteurs, quase cinema directo


O modo como Les Raquetteurs foi feito é em si mesmo exemplar pelo que representa de determinação em experimentar outros caminhos. Em princípio o filme estava destinado a ser mais uma das pequenas peças de quatro minutos de Coup d’Oeil, uma rubrica de reportagem muito cuidada do ponto de vista formal que habitualmente fechava os jornais de informação geral. Les Raquetteurs, praticantes de um desporto peculiar consistindo basicamente em deslizar sobre a neve com raquettes fixadas nos pés, iriam fazer o seu congresso anual durante um fim de semana na pequena cidade de província de Sherbrooke. No documentário de Gilles Nöel Le Cheval de Troie de L´Esthétique - six tableaux sur Michel Brault (2005), o cineasta conta como ele e os seus companheiros Gilles Groulx, um montador acabado de ingressar no NBF e o técnico de som Marcel Carrière subverteram a agenda inicial. Começaram por falsificar a requisição do material acrescentando um zero à metragem de película autorizada. Desse modo, puderam filmar durante todo o fim de semana e não apenas os 30 minutos habitualmente permitidos. Utilizando uma câmara Arriflex de 35mm e um gravador de som Makhac acompanharam de perto todos os eventos relacionados com o congresso: a participação dos habitantes, as boas vindas do presidente do município de Sherbrooke, o desfile dos raquetteurs acompanhado de uma banda de música, as inevitáveis provas de velocidade, a festa de encerramento do congresso com a eleição da sua rainha e o animado baile que se lhe seguiu. Quando a produção do NFB viu as imagens não lhes reconheceu interesse. Determinou o seu depósito em arquivo.


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Michel Brault: “Cependant, pour aller filmer les gens, pour aller parmi eux, avec eux, ils doivent savoir que nous sommes là, ils doivent accepter les conséquences de la présence de la caméra et ça nécessite l’utilisation d’un grand angulaire. La seule démarche légitime est celle qui sous-tend une sorte de contrat tacite entre les gens filmés et ceux qui filment, c’est-à-dire une acceptation mutuelle de la présence de l’autre.” Fonte: NFB Blog

Os episódios seguintes fizeram do filme o símbolo da luta de emancipação dos cineastas franceses da tutela institucional inglesa, rompendo com as convenções elitistas filiadas na alta cultura, indo, de certa forma, ao encontro das posições contestárias da Unidade B. Tal como os seus colegas ingleses elaboraram uma espécie de manifesto em defesa de um novo tipo de documentário relacional fundado na mobilidade e na observação. O filme foi montado nos tempos livres de Gilles Groulx, contando com o apoio de Tom Daly, um dos homens de Candid Eye, e de um produtor recém chegado de nome Louis Portugais, cuja marca ficaria bem patente na produção cinematográfica do Canadá. Esteticamente, em Les Raquetteurs há uma diferença em relação aos documentários de Candid Eye. Estes, pretendendo evitar intrometer-se na acção e interferir com os protagonistas, faziam uso de teleobjectivas que permitiam filmar a distância considerável. Brault, segundo Gilles Marsolais, quis reagir contra esse procedimento, o qual, aliás, explorara reiteradamente na excelente série televisiva de curtas-metragens Petites médisances (1953-1954) em cumplicidade com Jacques Giraldeau, fundador do primeiro cine-clube do Quebeque. Apercebendo-se que a teleobjectiva condenava o cineasta a ficar de fora dos acontecimentos incorrendo no risco de apenas captar a aparência das coisas, começou a investir na liberdade de movimentos e na utilização da grande angular:


“O interesse de um filme como Les Raquetteurs reside no facto do cineasta procurar abordar o acontecimento pelo seu interior, acompanhando-o de perto e, em definitivo, vivendo-o. Como tal, uma parte da montagem está já contida nas tomadas de vista que resultam do modo como o operador de câmara vai reagindo às situações.”


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Cena da banda de música em Les Raquetteurs. Fonte: IMBd

Por exemplo, Michel Brault, de câmara ao ombro, começa por filmar a sequência da banda que percorre as ruas de Sherbrooke à distância, mas quando os músicos passam junto dele integra-se ele próprio no desfile de modo a transmitir ao público a sensação de estar a participar. Claude Jutra falaria mesmo de uma fixação quase erótica sobre a câmara por forma a exprimir o efeito de aproximação pretendido. Esse método era intencional e a aproximação tinha motivações de ordem política e estética. No dizer de Marsolais, aludindo a Dziga Vertov, o método de Brault consistia numa espécie de cine-punho (ver neste blogue O Cine-Olho, o Cine-Punho e o Homem Novo) envergando uma luva de veludo, cujo compromisso ético e moral consistia em observar com olho clínico as contradições de uma sociedade esclerosada.


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Les Ordres (1974) de Michel Brault, um marco no campo das possibilidades combinatórias de estratégias ficcionais e documentais. Fonte: La Lanterne

Nessa linha, o filme explicitamente mais político de Michel Brault, Les Ordres, só apareceria em 1974 na forma de uma narrativa ficcional que reconstituía em termos documentais a repressão dos cidadãos do Quebeque francês, em Outubro de 1970, resultante do estado de excepção decretado pelo governo. Para trás ficava uma produção de altíssima qualidade, na qual avultavam, entre outros, Les enfants du silence (1962), Pour la suite du Monde (1963), Entre la mer et l’eau douce (1965), Les enfants de Néant (1968), Éloge du Chiac (1969) e L’Acadie l’Acadie?!? (1971). Alguns destes filmes denotam a influência de Jean Rouch, nomeadamente Pour la suite du Monde, realizado em colaboração com Pierre Perrault, em cuja ficha técnica os nomes dos diversos elementos surgem como tendo “vivido e representado” (“vécus et joués”) o filme. Michel Brault, de resto, reconhece a importância no seu percurso de cineasta de duas obras fundamentais de Rouch, Moi, un Noir (1957) e Les Maîtres Fous (1954), este último, por sinal, também debatido no Seminário Flaherty de 1958 e, tal como Moi, un Noir, realizado com um câmara de apenas 20 segundos de autonomia de película. Brault colaborou depois em Chronique d’un Été (1960), a primeira experiência europeia de cinéma-vérité. A influência de Rouch, cuja filiação numa linha de cinema de autor é legitimada desde muito cedo pelos Cahiers du Cinéma, acabaria por alargar-se a outros cineastas canadianos de língua francesa, mesmo quando os seus trabalhos se destinavam à televisão.


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Chronique d’un Été (1961) de Jean Rouch e Edgar Morin. No Verão de 1960, Edgar Morin ia a caminho dos 40 anos. Há muito descobrira a paixão do Cinema e escrevia regularmente a propósito. Atestam-no títulos como o Cinema ou o Homem Imaginário (1956) e As Estrelas: Mito e Sedução no Cinema (1957). Mas nesse Verão de 1960 ele iria fazer uma incursão diferente. Na companhia de Jean Rouch, quatro anos mais velho e já com uma vasta filmografia, Morin embrenhou-se naquele que viria a ser um filme cuja influência perdura até hoje: Chronique d’un Été (1961). Colocado pela Sight and Sound no sexto lugar da escala dos documentários mais importantes de todos os tempos, Chronique d’un Été tornou-se na peça-chave do Cinéma-Vérité. No início do filme, o etnólogo Rouch interpela o sociólogo Morin sobre o comportamento das pessoas diante de uma câmara de filmar. Um pouco à maneira do que fizera Dziga Vertov em O Homem da Câmara de Filmar (1929), anunciaram que se ira assistir à primeira experiência de cinéma-vérité. No final, quer um quer o outro concordam em terem ficado com um grande problema nas mãos. É bem verdade. Pelo meio ficaram múltiplos desencontros, tanto da parte dos protagonistas da tribo parisiense sobre a qual o filme trabalha, quanto dos co-realizadores cujos pontos de vista divergiam o bastante para, mais tarde, Morin dizer que não era aquele o filme que tinha querido fazer. Rodado numa época em que a sociedade francesa vivia a guerra da Argélia (ver neste blogue o artigo sobre a Batalha de Argel de Gillo Pontecorvo), mas também a euforia em torno da Nouvelle Vague, Chronique d’un Été recolhe contributos de cineastas extraordinários como Michel Brault e continua a desafiar o pensamento sobre o Cinema.

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Jean Rouch, Marceline Loridan-Ivens e Edgar Morin os principais obreiros de Chronique d’un Été Fonte: Cine por Mujeres, Madrid

A questão da autoria


Free Cinema, Candid Eye e Cinéma-Vérité, tendo embora pontos em comum, obedeciam a pressupostos diferentes. Durante o curto período em que vigorou o Free Cinema (ver neste blogue artigo sobre a matéria) nunca encarou a televisão como um meio de passagem natural para o documentário como sucedeu com o Candid Eye e, em parte, com o Cinéma-Vérité da unidade francesa do National Film Board. Daí também o problema da autoria ter sido colocado de diferentes maneiras. Recuando ao movimento documentarista britânico nos anos 30 e 40 verifica-se como a questão dos créditos e da realização foi, pelo menos durante algum tempo, relativamente negligenciada. Contudo, apesar do espírito de grupo, nos filmes do Free Cinema há já o sentido da autoria, mesmo se de responsabilidade, partilhada como sucede em Nice Time (1957) dos suíços Claude Goretta e Alain Tanner e em Momma Don’t Allow (1956) de Karel Reisz e Tony Richardson, para já não falar de Together (1956) de Lorenza Mazzeti, o qual chegou a ser dado como um caso perdido até Lindsay Anderson se envolver na edição. No caso do cinema francês essa tendência foi mesmo a imagem de marca da curta-metragem e do documentário do pós-guerra quando se travou a luta iniciada pelo Grupo dos 30 e, sobretudo na década de 50, quando a política dos autores ganhou estatuto de pensamento dominante nos Cahiers du Cinéma. Apesar da colaboração entre cineastas, por exemplo, entre Alain Resnais e Chris Marker, a assinatura do filme era, na maioria dos casos, apenas de uma pessoa. Trabalhando muitas vezes por encomenda, os cineastas franceses atingiram, na verdade, elevados patamares de originalidade justificando em absoluto a atribuição da autoria.


No Canadá foi diferente. Da parte dos cineastas de língua francesa, que lutavam por maior autonomia institucional no interior de um National Film Board no qual a língua inglesa era hegemónica, houve uma natural inclinação para os pressupostos da política dos autores. No entanto, tiveram de bater-se pelas as suas ideias num contexto de produção para televisão, portanto, obedecendo a imposições formais e ritmos de produção nem sempre compatíveis com o tempo de criação. Mas o mesmo sucedeu com os cineastas da Unidade B. Isso poderá explicar parcialmente a razão pela qual um número significativo de filmes, quer da parte francesa, quer da parte inglesa, seja de autoria partilhada. Roman Kroiter e Wolf Koenig trabalharam muitas vezes juntos. Tal como Michel Brault, cuja colaboração está associada, por exemplo, a cineastas como Gilles Groulx e Claude Jutra. Esta explicação não é, porém, suficiente. No fundo, poderia ser o cinema que se pretendia fazer a justificar a existência de equipas cujo processo de realização podia ser da responsabilidade de mais de uma pessoa. E, nesse sentido, independentemente de serem anglófonos ou francófonos, os cineastas do National Film Board partilhavam de ideias comuns. As suas equipas estavam a fazer algo de novo e, como tal, eram forçadas a enfrentar rotinas institucionais inadequadas à prossecução dos seus objectivos. Por isso, complementavam as suas afinidades estéticas com a cumplicidade no plano dos procedimentos. Acresce que a própria natureza das matérias, inscritas na observação do quotidiano, requeriam amiúde a presença de mais de um operador de câmara. O exemplo de La Lutte (1961) e o modo como o filme evoluiu a partir da ideia inicial é, a vários títulos, paradigmático.


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La Lutte (1961) de Michel Brault, Marcel Carrière, Claude Fournier et Claude Jutra. Um documentário notável, peça chave da produção de cinema documental do Quebeque. Fonte: ONF

O filme é sobre a luta livre, vulgo wrestling, hoje imensamente popular na televisão americana. Segundo Michel Brault La Lutte não tem autor. O intuito era filmar os combates de uma quarta-feira à noite no Fórum de Montréal tendo subjacente o propósito jornalístico de desmistificar os mecanismos que punham em causa a veracidade dos resultados. Roland Barthes, de passagem por Montréal, disse que gostaria de assistir às filmagens. Mas, quando Brault e os seus companheiros lhe disseram que tencionavam desmascarar os bastidores da luta, bem como os compromissos dos lutadores, insurgiu-se: “Mais non, ça va pas, vous êtes fous! On ne démonte pas le théâtre. Le théâtre, c’est du théâtre et la lutte c’est du théâtre populaire. C’est la façon qu’a le peuple d’assister à la lutte entre le bien et le mal. Pourquoi détruire ça?”


O filme acabou assim por tomar outro sentido. Entendendo a justeza da observação de Barhes, Brault e a sua equipa prestaram especial atenção à reacção dos espectadores nos diversos momentos do espectáculo, tomando partido, sentindo a dor encenada pelos seus favoritos, vibrando com cada golpe nos adversários e rejubilando com a inevitável vitória dos bons (lutadores supostamente do Quebeque, franceses e italianos) sobre os maus (alemães, americanos, turcos e russos). La Lutte obedece, de um modo geral, a uma ordem cinematográfica de cinema puro na qual predominam os sintagmas narrativos articulados em sequências cujos planos – sobretudo na lona de combate – são feitos, na maioria dos casos, com grandes angulares. Os planos sequência, embora presentes, não têm ainda a relevância significante que viriam a ter numa fase mais adiantada do direct cinema. O som do narrador que relata a luta serve de comentário tanto ao que acontece no rinque quanto às expressões e manifestações do público. No final, por mero acaso, a questão da verdade - leia-se vérité - foi levantada por dois dos lutadores derrotados, os falsos russos irmãos Kalmykov, e pelo seu empresário. Vociferando em close-up diante da câmara um dos irmãos diz: “We didn’t loose the match! That’s the positive truth!” Como antecipara Roland Barthes, a verdade da luta estava no teatro, não numa qualquer tentativa de expor os seus bastidores. Na ficha técnica os nomes da equipa do NFB aparecem por ordem alfabética – Michel Brault, Marcel Carrière, Claude Fournier e Claude Jutra – seguindo-se os nomes dos colaboradores com Roland Barthes à cabeça.


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Marcel Carrière, o homem que revolucionou o som do cinema do Quebeque Fonte: Mon cinéma québécois en France

Apesar de destinado à televisão o filme obedece a uma ordem inteiramente cinematográfica. Não é ainda cinema directo porque a única parte com som síncrono é justamente aquela em que os irmãos Kalmykov proporcionam inadvertidamente um final exemplar ao colocarem o problema que era justamente o problema dos cineastas, ou seja, a verdade. A narrativa releva da organização da cadeia sintagmática, o comentário recusa a mera exposição, funcionando, tal como a partitura musical, em contraponto das imagens. Outros documentários canadenses, quer da parte francesa quer da inglesa, adoptaram procedimentos semelhantes, de resto, já perceptíveis nos filmes de Wolf Koenig de 1953, bem como no trabalho de Terence Macartney-Filgate. Explicitados de forma coerente pela primeira vez em The Days Before Christmas (1957), um conjunto de filmes que antecipa o seriado Candid Eye, esses procedimentos fundadores, constituindo um corpo coerente de princípios, iriam permitir fazer alguns dos melhores documentários feitos para a Televisão. O documentário inaugural da série foi Blood and Fire emitido a 26 de Outubro de 1958. Mergulhando no real, Candid Eye abordou questões sociais, equacionou questões políticas, lidou com grupos problemáticos e deu a conhecer sem paliativos personagens extraordinárias como, por exemplo Glenn Gould e Stravinsky.


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The Days Before Christmas (1957) de Terence Macartney-Filgate, filmes sem narração nos quais só a imagem e o som diegético contam. Fonte: NFB

Há, finalmente, um ponto a salientar quanto ao conjunto da produção deste período que principia com o trabalho mais experimental da Unidade B do NFB, coincidente no tempo das primeiras experiências do Free Cinema, e o final da década de 60, quando o cinema directo parecia ter esgotado a sua capacidade de exposição televisiva e enveredava por outro tipo de desenvolvimentos. Esse ponto releva do modo peculiar como a produção canadiana lidou com a televisão e com o jornalismo, em particular.. Em muitos dos seus filmes é inquestionável o domínio das marcas de enunciação do cinema, mas há igualmente elementos de reportagem, de quando em vez textos expositivos de contextualização, mais raramemente, entrevistas. Não tanto na obra dos cineastas francófonos, mais nos filmes dos anglófonos e, sobretudo, no trabalho daqueles que assumiram, pelo menos durante algum tempo, a vertente mais jornalística como Colin Low que, aliás, viria a ser um dos responsáveis com John Kemeny pela proposta de criação, em 1966, de Chalenge for Change, um programa, como o nome indica, que era um desafio no sentido de ensaiar formas de documentário com base no cinéma-vérité.


Em suma, durante anos, no pós-guerra, o National Film Board levou a cabo diversas experiências que permitiram alargar o horizonte tanto de um novo tipo de cinema quanto de um novo jornalismo, no qual, raramente, o cinema deixou de estar presente. O NFB fazia pelo menos um filme por semana. A aceitação era tal que, por vezes, não havia sequer a ideia da circunstância em que esses filmes iriam ser exibidos, apesar da maior parte da produção se destinar à Televisão. No entanto, passavam igualmente, por exemplo, em salas de cinema como complemento dos filmes de fundo. Tanto podiam fazer parte de programas como Eye Witness quanto de Coup d’Oeil. É certo que, na sua maioria, inicialmente, tinham argumento e diálogos escritos, obedeciam a regras estritas, tinham um enfoque jornalístico. Mas também é certo que esses filmes, a partir de certa altura, permitiram iniciar a série de experiências que haveriam de conduzir quer a unidade anglófona quer a francófona ao cinema directo. E o cinema directo, segundo Michel Brault, não é mais do que filmar as pessoas tal como elas são.


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Stravinsky (1965) marca o fim da colaboração Wolf Koenig com Roman Kroitor. É também o último exemplo do estilo Candid Eye. O filme foi nomeado para diversos prémios tanto no campo do cinema (BAFTA, por exemplo) quanto da informação televisiva (venceu o Canadian Film Award for TV Information em 1966). Este retrato informal do grande compositor, na altura com 83 anos, mostra-o a dirigir a Orquestra Sinfónica da CBC e revela a sua personalidade surpreendentemente jovial para um homem da sua idade. Filmado durante um longo período de tempo no Candá e na Europa, Stravinsky tem algumas cenas negociadas, nomeadamente a bordo do navio que transportava o compositor e a mulher para Hamburgo. Numa delas, a última, os cineastas, Koenig e Kroitor, depois de darem o trabalho por terminado, pedem-lhe que continue a conversa em russo com o amigo de longa data Nicholas Nabokov. Tal como sucedera com Brault e Jutra na cena final de La Lutte também aqui Koenig e Kroiter foram surpreendidos, feita a tradução, com um diálogo que correspondia às suas preocupações, uma vez que Stravinsky, de forma bem humorada, procurava explicar a Nabokov o método utilizado nas filmagens por forma a atingir a vérité. Fonte: NFB

 
 
 
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Imagens do Real Imaginado (IRI) do Instituto Politécnico do Porto foi o ponto de partida para o primeiro Mestrado em Fotografia e Cinema Documental criado em Portugal. Teve início em 2006. A temática foi O Mundo. Inspirado no exemplo da Odisseia nas Imagens do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura estabeleceu numerosas parcerias, designadamente com os departamentos culturais das embaixadas francesa e alemã, festivais e diversas universidades estrangeiras. Fiz o IRI durante 10 anos contando sempre com a colaboração de excelentes colegas. Neste segmento da Programação cabe outro tipo de iniciativas, referências aos meus filmes, conferências e outras participações. Sem preocupações cronológicas. A Odisseia na Imagens, pela sua dimensão, tem uma caixa autónoma.

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