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A ideia que se faz dos ucranianos da atualidade, segundo os historiadores de maior notoriedade referenciados nestes textos, é a resultante de um método de fusão da investigação do passado com a construção da realidade no presente, vertente em relação à qual os ativistas nacionalistas teriam um papel determinante. Nem todos, no entanto, pensam assim, até porque, como veremos, a complexidade da História não se compagina com simplificações. Se, por exemplo, para a maioria dos russos, a Ucrânia, enquanto estado nação, é difícil de entender, para os nacionalistas ucranianos é algo de simplesmente inquestionável. Sumariando a posição destes últimos quanto à identidade, os seus antepassados ocuparam sempre o mesmo território, pelo menos desde o século V. Originalmente, seriam o povo rus, mais tarde, já integrados no Império Russo, seriam os “pequenos russos” e, no tempo do Império Austro-Húngaro, os “ruténios”. Portanto, haveria como que uma linha legitimadora de espaço e tempo.

 

Isto mesmo nos é dito, desenvolvidamente, em Ucrânia - O Que Toda A Gente Precisa De Saber de Serhy Yekelchyk. Este mesmo autor, porém, também diz que “O termo Ucranianos firmou-se nos anos 1920, com a criação da RSS da Ucrânia, dentro da União Soviética, e a mobilização nacional dos ucranianos da Polónia” (p. 47), o que complexifica a questão. Para mais, se levada em linha de conta que grande parte do território atual do país só foi incorporada no século XX, após a Revolução de Outubro de 1917, e em períodos subsequentes. Portanto, devido às dinâmicas da História, as fronteiras foram mudando. Daí a dificuldade dos nacionalistas, sejam eles “radicais” ou “moderados”, em fundamentar com rigor o seu ponto de vista. E, assim sendo, não surpreende a cristalização progressiva de uma crença etno-nacionalista, mais ou menos dissimulada, em todo o caso fortemente presente nos círculos do poder.

 

No capítulo 5, intitulado A Revolução Laranja e a EuroMaidan, Serhy Yekelchyk aborda   aquilo a que chama “nacionalismo extremo”. Em relação à EuroMaidan, faz a seguinte pergunta: Que papel desempenhou a direita radical nos protestos e que símbolos usou? Na resposta começa por enfatizar o papel dos meios de comunicação social russos, acusados de propaganda, ao projetarem uma imagem falsa dos acontecimentos, posto atribuírem aos neonazis uma influência que não tiveram.

 

Kiev, 19 de Fevereiro, 2014. Manifestante anti-governamental lança um cocktail Molotov contra forças policiais na Praça da Independência ou Praça Maidan. Se a Revolução Laranja de 2004 foi relativamente pacífica, tendo levado à repetição de eleições das quais Viktor Yushchenko sairia vencedor, a Revolução da Dignidade, também conhecida como Euromaidan, entre novembro de 2013 e fevereiro de 2014, teve episódios extremamente violentos, com centenas de mortos e feridos. O presidente pró-russo Viktor Yanukovytch fugiu do país. Imagem: MPRnews
Kiev, 19 de Fevereiro, 2014. Manifestante anti-governamental lança um cocktail Molotov contra forças policiais na Praça da Independência ou Praça Maidan. Se a Revolução Laranja de 2004 foi relativamente pacífica, tendo levado à repetição de eleições das quais Viktor Yushchenko sairia vencedor, a Revolução da Dignidade, também conhecida como Euromaidan, entre novembro de 2013 e fevereiro de 2014, teve episódios extremamente violentos, com centenas de mortos e feridos. O presidente pró-russo Viktor Yanukovytch fugiu do país. Imagem: MPRnews

 


Barricadas no centro de Kiev num still do documentário de observação Maidan (2014) do cineasta nacionalista ucraniano Sergei Loznitsa. O que aconteceu na Praça está amplamente documentado em imagens, havendo diversos filmes sobre o assunto. Este é, provavelmente, o melhor de todos eles. Mostra, não explica. Depois, cada um tire as conclusões. O que não quer dizer que não tenha um ponto de vista. Pró-ucraniano e nacionalista. Imagem: Sabzian
Barricadas no centro de Kiev num still do documentário de observação Maidan (2014) do cineasta nacionalista ucraniano Sergei Loznitsa. O que aconteceu na Praça está amplamente documentado em imagens, havendo diversos filmes sobre o assunto. Este é, provavelmente, o melhor de todos eles. Mostra, não explica. Depois, cada um tire as conclusões. O que não quer dizer que não tenha um ponto de vista. Pró-ucraniano e nacionalista. Imagem: Sabzian

 

Segundo Yekelchyk, “o protesto que derrubou Yanukovytch não era ideológico e a sua vaga identificação com a Europa não encaixa com a suposta orientação neonazi.” (p. 159) Ainda assim, admite que “Ao mesmo tempo, a direita radical desempenhou um papel notório na revolução, que vale a pena examinar.” (p. 159) O ponto de partida para o exame é o seguinte: “Antes da presidência de Yanukovytch, os nacionalistas radicais ucranianos definhavam nas margens da política.” (p. 159) Portanto, como nas páginas seguintes – e também em páginas anteriores - se pretende demonstrar, foi o presidente pró-russo - e o seu Partido das Regiões - o responsável pelo descontentamento que trouxe de volta os radicais nos anos de 2013 e 2014:


“Quando o regime de Yanukovytch tentou uma forte repressão contra a Maidan, a direita radical liderou o caminho na organização de uma resistência igualmente violenta. Os ativistas do Setor Direito e do Liberdade ainda constituíam uma pequena minoria na multidão revolucionária, mas eram os mais bem organizados e os mais visíveis.” (p. 161)

 

De seguida:

 

“Foi neste ponto crítico que alguns símbolos e palavras de ordem da direita radical foram introduzidas na cultura de protesto. A saudação nacionalista dos anos 1940, Slava Ukraini! (Glória à Ucrânia!) e a sua resposta Heroiam slava! (Glória aos Heróis!) adquiriram novo significado na Maidan. Quando usadas pelos manifestantes, essas palavras de ordem referiam-se a uma esperada democracia e a uma Ucrânia pró-ocidental, e eram vistos como heróis aqueles que caíram a lutar por essa causa. Significativamente, outra palavra de ordem dos anos 1940, Slava natsii, smert voroham! (Glória à nação, morte aos inimigos!), não pegou” (p. 162) 

 

Nesta conjuntura, o historiador considera natural que símbolos como a bandeira da Organização dos Nacionalistas Ucranianos de Bandera, com as suas cores vermelha e negra, tenham sido aceites pelos cidadãos patriotas. No entanto, acrescenta, nem todos o fizeram de bom grado, havendo mesmo uma situação no EuroMaidan em que uma imagem de grandes dimensões do líder nacionalista, em lugar de destaque, foi substituída “por uma de Taras Shevchenko, o bardo nacional do século XIX e um símbolo muito menos divisor da identidade ucraniana.” (p. 162)

 

Aqui chegados, permito-me novo comentário. O balanço da Revolução da Dignidade foi trágico. Houve mais de uma centena de mortos entre os manifestantes, 13 do lado da polícia, e centenas de feridos. É uma estimativa benigna. Hoje, o que aconteceu entre novembro de 2013 e fevereiro de 2014 está mapeado. Está igualmente registado em imagens, entre as quais filmes de sinal contrário O resultado é inquietante. Com forte probabilidade, os efeitos, mesmo se algo diluídos na forma, persistem. Havendo diferentes versões - ora se atribuem responsabilidades ao dispositivo repressivo, ora se consideram responsáveis os extremistas do Liberdade e do Setor Direito, apoiados por diplomatas e políticos ocidentais - o facto iniludível, como adiante se verá, é que os extremistas foram determinantes. Na Praça e no que se seguiu. E o que se seguiu foi a “ucranização”, há muito latente, que atingiu as populações, a cultura e a língua russas, bem como a guerra contra os separatistas do Donbass, iniciada em 2014 e na qual morreram, pelo menos, 14 mil pessoas.

 

Um exemplo dessa russofobia revangista foi Roman Ratushnyi, ativista da Euro Maidan. Publicou nas suas redes sociais a citação abaixo reproduzida pelo Ukraїner, jornal em linha que "pugna pelos valores democráticos", na edição internacional de 18 de julho de 2023:

 

“Burn out in yourself even the traces of Russian subculture. Burn away all the memories from your childhood that are connected with anything Russian and Soviet. Burn down relationships with friends and relatives that are from ‘that side’ – with everyone who is a carrier of the Russian subculture. Otherwise, it will burn you down.”

 

Prestando homenagem aos caídos no campo de batalha - Heroiam slava! –, o Ukraїner deu à estampa numerosos testemunhos patrióticos por eles deixados em vida. O artigo tem o título: Powerful Quotes from the Heavenly Regiment of Ukraine. (ver artigo completo, aqui)

 

 

Roman Ratushnyi foi um dos participantes na Revolução da Dignidade. É um herói da Ucrânia, morto em combate. Há memoriais em seu nome. A unidade em que servia foi emboscada pelo exército russo perto de Yzyum, em 9 de junho de 2023. Como ele, após o EuroMaidan, milhares de jovens juntaram-se às milícias armadas. Imagem: Ukraїner
Roman Ratushnyi foi um dos participantes na Revolução da Dignidade. É um herói da Ucrânia, morto em combate. Há memoriais em seu nome. A unidade em que servia foi emboscada pelo exército russo perto de Yzyum, em 9 de junho de 2023. Como ele, após o EuroMaidan, milhares de jovens juntaram-se às milícias armadas. Imagem: Ukraїner

Kiev, 14 de outubro 2019. Movimentos nacionalistas manifestam-se em defesa da Mãe Pátria e contra a tentativa de Zelensky de negociar uma solução política com os separatistas do Donbass. À luz de tochas, a manifestação contou sobretudo com jovens, alguns fazendo uso de máscaras de modo a evitar serem reconhecidos, bem como com grupos de veteranos irredutíveis quanto à eventual cedência de qualquer parcela do território. Imagem: Los Angeles Times
Kiev, 14 de outubro 2019. Movimentos nacionalistas manifestam-se em defesa da Mãe Pátria e contra a tentativa de Zelensky de negociar uma solução política com os separatistas do Donbass. À luz de tochas, a manifestação contou sobretudo com jovens, alguns fazendo uso de máscaras de modo a evitar serem reconhecidos, bem como com grupos de veteranos irredutíveis quanto à eventual cedência de qualquer parcela do território. Imagem: Los Angeles Times


Voltando a Serhy Yekelchyk, na avaliação do mosaico etnolinguístico, apesar de considerar, por um lado, que as populações do Donbass, em estudos de opinião (não identificados) não são maioritariamente favoráveis à secessão, admite, por outro lado, “que não se dá o caso de os voluntários vindos da Rússia estarem a lutar em prol das gentes do Donbass sem que estas os apoiem.” (p. 37) Pelo contrário, afirma que a ideia de uma “Grande Rússia” apela tanto aos recém-chegados combatentes russos como a parte das populações locais, e acrescenta que “o prolongado conflito tem as suas raízes tanto na identidade cultural da região como em medos recentemente incutidos.” (p.37)

 

A seguir:

 

“Mais do que uma região “russa” da Ucrânia, o Donbass é uma região industrial “soviética”, incerta do seu papel na nova Ucrânia. Migrantes vindos de toda a Rússia e camponeses ucranianos assimilados pela vida russófona da fábrica, os trabalhadores do Donbass identificavam-se com a glória das suas construções soviéticas, agora minas ineficientes e indústrias pesadas. (...) Depois da vitória da Maidan, foi relativamente fácil para a elite política local alimentar o descontentamento. Os revolucionários vitoriosos (da EuroMaidan) providenciavam os pretextos perfeitos com as disparatadas tentativas de abolir a lei da língua, vista como protegendo o russo enquanto língua regional, e as falhadas ‘ocupações simbólicas’ de alguns edifícios administrativos no leste (referência a Odessa).” (p. 37)

 

Passar das marcas 1. Se a ideia da “ucranização”, apesar de considerada um “disparate”, é tratada por Yekelchyk de modo a não lhe atribuir grande espaço ou importância, a verdade é que outros historiadores ucranianos a tratam de forma mais severa. É o caso de Marta Havryshko, académica de reputação internacional, feminista, investigadora do holocausto, do antissemitismo e dos movimentos de extrema-direita, com passagem por diversas universidades europeias e pelos Estados Unidos. Numa entrevista dada a 11 de dezembro de 2024 ao site, em inglês, ESSF (Europe Solidaire Sans Frontières), uma organização não governamental de solidariedade, falou dos “mitos etno-nacionalistas”.

 

Oriunda de uma família onde assinala a presença de partidários do nacionalismo radical, Marta Havryshko fez estudos superiores na Universidade Ivan Franko de Lviv, sua terra natal. De acordo com o seu testemunho, nos anos de 1990, foi ensinada a olhar para o nacionalismo como tendo pugnado pela independência, mas omitindo sempre a colaboração com a Alemanha nazi. Ora, segundo afirma na entrevista, é errado fazer interpretações convenientes de acontecimentos cientificamente certificados, dando como exemplo o massacre de Volínia, em 1943, uma questão, ainda hoje, em aberto com a Polónia. Aponta, igualmente, o caso da glorificação da 14ª Divisão de Granadeiros (Divisão da Galícia), uma unidade militar ucraniana da força de elite de Hitler, as Waffen SS, maioritariamente constituída por ucranianos étnicos, a qual, no Museu de História Militar de Kiev, seria comparada em bravura à 3ª Brigada de Assalto hitleriana. Considera, ainda, noutra passagem, haver consequências nefastas para o seu país decorrentes do revisionismo da História, o qual, a seu ver, favorece a narrativa russa da desnazificação. Lamentando que as autoridades ucranianas considerem a colaboração com os nazis durante a II Guerra Mundial um “mal menor”, afirma:

 

“Therefore, not only members of the Ukrainian national underground are celebrated, but also members of military units created by the Nazis who swore allegiance to Hitler and fought for the interests of Nazi Germany. I am referring to the Waffen-SS Galicia division, involved in anti-partisan punitive actions in Slovakia and Slovenia in 1944.”

Havryshko acrescenta:


“When I criticised all these disturbing developments related to the celebration of Nazi collaborators, I was subjected to harassment, persecuted, smeared, and received death threats. Freedom of speech has become a luxury in war-torn Ukraine, where ethno-nationalist historical myths are at the core of war propaganda. Most Ukrainians cannot afford to criticise memory politics out of fear of being accused of spreading “Russian propaganda” and “collaborating with the enemy”, which could mean trial and imprisonment.” (ler entrevista completa de Marta Havrysko, aqui)

 


Marta Havryshko, ela própria refugiada de guerra, entre outros cargos dirigiu o Instituto do Centro Memorial de Babi Yar, em Kiev. Em 22 de Julho de 2025 foi publicada uma carta aberta, subscrita por numerosos académicos, com o título An Open Letter in Defense of Academic Freedoom and the Ukrainian Historian Marta Havryshko. Nela se afirma, designadamente, “we are witnessing na alarming rise in harassment, threats and persecution – often stemming from nationalist activism and public campaigns – targeting scholars who continue their research under these exceptionally difficult wartime conditions.” (ler Carta Aberta, aqui: https://www.newglobalpolitics.org/an-open-letter/). Imagem: Clark University, Worcester, Massachusetts
Marta Havryshko, ela própria refugiada de guerra, entre outros cargos dirigiu o Instituto do Centro Memorial de Babi Yar, em Kiev. Em 22 de Julho de 2025 foi publicada uma carta aberta, subscrita por numerosos académicos, com o título An Open Letter in Defense of Academic Freedoom and the Ukrainian Historian Marta Havryshko. Nela se afirma, designadamente, “we are witnessing na alarming rise in harassment, threats and persecution – often stemming from nationalist activism and public campaigns – targeting scholars who continue their research under these exceptionally difficult wartime conditions.” (ler Carta Aberta, aqui: https://www.newglobalpolitics.org/an-open-letter/). Imagem: Clark University, Worcester, Massachusetts

Lviv, 18 de julho de 1943. Parada de recrutas das Waffen SS-Galicia em Lviv. Em primeiro plano, destacado, o coronel Alfred Bisanz, comandante da Administração Militar e principal responsável pelo recrutamento de ucranianos para a Divisão Galicia. Treinada pelos SS, adotando os símbolos nazis, tinha por principal missão combater o Exército Vermelho que à data já rechaçava as forças terrestres da Wehrmacht da União Soviética. A participação da Divisão Galicia em crimes de guerra é motivo de controvérsia entre os historiadores ucranianos contemporâneos. No entanto, em Fevereiro e Março de 1944, é certo ter estado no massacre de populações em Huta Pieniacka, Zawonia, Pidkamin e Palykorovy. Alfred Bisanz era, também, membro da Abwehr, os serviços de intelligentsia do Reich. Foi detido pela tropa soviética em Viena de Áustria, em 1945, julgado e executado. Imagem: Wikimedia Commons
Lviv, 18 de julho de 1943. Parada de recrutas das Waffen SS-Galicia em Lviv. Em primeiro plano, destacado, o coronel Alfred Bisanz, comandante da Administração Militar e principal responsável pelo recrutamento de ucranianos para a Divisão Galicia. Treinada pelos SS, adotando os símbolos nazis, tinha por principal missão combater o Exército Vermelho que à data já rechaçava as forças terrestres da Wehrmacht da União Soviética. A participação da Divisão Galicia em crimes de guerra é motivo de controvérsia entre os historiadores ucranianos contemporâneos. No entanto, em Fevereiro e Março de 1944, é certo ter estado no massacre de populações em Huta Pieniacka, Zawonia, Pidkamin e Palykorovy. Alfred Bisanz era, também, membro da Abwehr, os serviços de intelligentsia do Reich. Foi detido pela tropa soviética em Viena de Áustria, em 1945, julgado e executado. Imagem: Wikimedia Commons


Kyiv, 28 de Abril de 2021. Nacionalistas saem à rua para celebrar o 78º aniversário da Waffen-SS Galicia, maioritariamente constituída por ucranianos étnicos, ostentando pendões com os símbolos da unidade militar. A marcha deu origem a protestos da parte das autoridades israelitas. Imagem: Jewish Telegraphic Agency
Kyiv, 28 de Abril de 2021. Nacionalistas saem à rua para celebrar o 78º aniversário da Waffen-SS Galicia, maioritariamente constituída por ucranianos étnicos, ostentando pendões com os símbolos da unidade militar. A marcha deu origem a protestos da parte das autoridades israelitas. Imagem: Jewish Telegraphic Agency

 

Se o caso de Marta Havryshko não é passar das marcas, o que será passar das marcas? Em data anterior às declarações da historiadora, a 23 de Setembro de 2020, o Tribunal Supremo da Ucrânia decidira que os símbolos da Waffen-SS Galicia não estavam associados ao nazismo, pelo que não seriam proibidos. No ano seguinte, como documentado na foto acima, nacionalistas radicais desfilaram em Kiev para comemorar o 78º aniversário da Divisão, fundada em 1943 por voluntários da região. O presidente Zelensky, posteriormente, manifestou descontentamento com a manifestação. Mas, na edição em inglês de 29 de abril de 2021, o Kyiv Post escreveu: “In Ukraine, many people see members of the Galychyna Division as national heroes because they fought for Ukraine’s independence from the Soviet Union.”


Ainda segundo o Post:


“Some historians have stated that elements associated with the Galychyna Division were involved in attacks on civilians and other atrocities. However, despite being declared a criminal organization during the Nuremberg Trials, the division was not convicted of any crimes.” (ler notícia aqui)

 

Passar das marcas 2. Depois de Serhii Plokhi e Serhy Yekelchyk, é altura de falar de Owen Mathews e do seu livro Passar das Marcas – Os bastidores da guerra de Putin contra a Ucrânia (Edições 70), redigido em Moscovo e Kiev durante o primeiro ano de guerra. Mathews é cidadão britânico de ascendência ucraniana. Historiador, graduado em Oxford, mas destacando-se sobretudo como jornalista e escritor, foi durante 25 anos correspondente de jornais em Moscovo. Tendo começado a carreira na Bósnia, é profundo conhecedor da História da União Soviética, bem como dos assuntos da Federação Russa e dos seus principais protagonistas, em particular dos setores oposicionistas. Colaborou em numerosas publicações, entre as quais, o Moscow Times, The Times, Spectator, Independent e Newsweek. Alguns dos livros que publicou sobre os meandros da espionagem são simplesmente extraordinários. Destaca-se An Impeccable Spy: Richard Sorge, Stalin's Master Agent, biografia daquele que é considerado o espião mais famoso de todos os tempos, a meu ver, uma obra prima do género. Obviamente, o Passar das Marcas de Owen visa Vladimir Putin e a invasão da Ucrânia que, por sinal, o apanhou de surpresa na capital da Federação Russa, e acabaria por ter consequências na sua vida pessoal e familiar. Lá iremos.

 

Antes, porém, introduzo uma deriva. Se confrontada com o que depois virá, será, espero, um contributo relevante para o entendimento da complexidade da questão ucraniana. Recupero então parte de um extenso artigo de opinião publicado no Spectator, em 21 de julho de 2025, no qual Owen Mathews afirmava, em título, Ukrainians have lost faith in Zelensky. O texto desencadeou uma onda de indignações entre os pró-ucranianos do comentário político, bem como entre os partidários da bandeira azul e amarela nas redes sociais, muitos dos quais, em ambos os casos, comentadores ou fiéis seguidores, não sabiam sequer da inclinação nacionalista do autor.

 

De qualquer modo, Ukrainians have lost faith in Zelensky é, de facto, arrasador. Ouvido pelo jornalista, um antigo alto funcionário do governo, não identificado, afirma que se a guerra continuar, em breve não haverá mais Ucrânia pela qual lutar. Cada vez mais incapaz no campo de batalha, onde a realidade colide com o sucesso apregoado no ocidente, segundo ele, o País enfrentaria uma situação interna de crescente tensão “com vagas de detenções e silenciamento de órgãos de comunicação social”. Outros testemunhos, entre os quais o de Kyrylo Shevchenko, antigo diretor do Banco Central da Ucrânia, exilado na Áustria desde 2023, e também acusado de corrupção, levam Mathews a sugerir que “os líderes de uma nação em guerra roubam enquanto o povo luta e morre”. Em meados de 2025, novos escândalos. Dois vice-primeiros-ministros, o Ministro da Unidade Nacional, Oleksiy Chernyshov, e o Ministro da Reconstrução, Oleksandr Kubrakov, entre outras acusações, foram investigados por desvio de fundos e traição. A multiplicação de casos, de acordo com o que se lê, seria revelador das divergências no seio do governo, às quais se juntariam duras críticas ao presidente.  De tal modo que um antigo ministro, igualmente não identificado, é levado a dizer que a Ucrânia tem dois inimigos com o mesmo nome, Vladimir: Zelensky e Putin. Em síntese, “Putin destrói a Ucrânia por fora, Zelensky está a destruí-lo a partir do interior. (ler o artigo completo aqui)

 

O homem que alertou para a grave situação do país em Ukrainians have lost faith in Zelensky, em 2025, é o mesmo que, em 2022, fez a defesa do Vladimir ucraniano contra o Vladimir russo em Passar das Marcas, (The Inside Story of Putin’s War Against Ukraine), livro visto pelo já nosso conhecido Serhy Yekelchyk como a “melhor análise atual da contagem decrescente para a guerra”. É provável que assim seja. Entre outras razões porque, por motivos familiares, Owen, conhece bem ambos os lados da barricada, sentindo-se, por isso, à vontade para fazer uma abordagem multifacetada, de diferentes ângulos de vista. Ao relato empolgante de experiências de vida, a começar pela dele próprio, junta abundante e rigorosa informação sobre aqueles dias em que o Kremelin pareceu ter perdido a cabeça.

 


Owen Matthews, excerto de Passar as Marcas: “Quando comecei a preparar este livro, nos primeiros dias da guerra, fiquei chocado ao ver que amigos e contactos que conhecia há vários anos e décadas me diziam que não podiam a arriscar-se a encontrar-se comigo em público ou a fazer declarações. Mesmo os funcionários apoiantes do Kremlin, tanto atuais como reformados, assim como proeminentes figuras patrióticas dos meios de comunicação e da vida política, ganharam cautelas que raiavam o absurdo.” (p. 16). Imagem: The Moscow Times
Owen Matthews, excerto de Passar as Marcas: “Quando comecei a preparar este livro, nos primeiros dias da guerra, fiquei chocado ao ver que amigos e contactos que conhecia há vários anos e décadas me diziam que não podiam a arriscar-se a encontrar-se comigo em público ou a fazer declarações. Mesmo os funcionários apoiantes do Kremlin, tanto atuais como reformados, assim como proeminentes figuras patrióticas dos meios de comunicação e da vida política, ganharam cautelas que raiavam o absurdo.” (p. 16). Imagem: The Moscow Times

Sendo o foco destes apontamentos o papel do nacionalismo na Batalha pela História - ou pela identidade legitimadora da nação, vai dar ao mesmo - vale a pena começar a conhecer melhor o autor, na primeira pessoa:

 

“A minha mãe, Lyudmila Bibikova, nasceu em 1934, na Carquive – em russo, Kharkov – uma cidade industrial de língua russa no norte da Ucrânia. O seu pai, Boris, nasceu em 1903, em Simferopol, na Crimeia, e a sua mãe, Martha Shcherbak, em Poltava, na Ucrânia. Contudo, a família Bibikov não se considerava ucraniana. Muito pelo contrário. Durante dois séculos, os Bibikov desempenharam um papel significativo no domínio imperial russo sobre a Ucrânia, primeiro como servos dos czares e depois como leais tenentes do poder soviético. A conexão não é confortável. Quer eu queira quer não, a história da minha família – o meu sangue – está intimamente ligado não só à Ucrânia e à Rússia, mas também à história do Império Russo.” (p. 50)

 

Daí a dificuldade em lidar como o problema de forma distanciada. Owen tenta fazê-lo indo bater nos mesmos pontos já largamente tratados por Plokhi e Yekelchyk, todavia, com algumas diferenças significativas. Contra a tese de Putin, segundo a qual russos e ucranianos seriam um mesmo povo, convoca o israelita Noal Yuval Harari. Para este, cujo pensamento corresponde ao dos nacionalistas, a Ucrânia tem uma história de mais de mil anos e Kiev já era uma importante metrópole e centro cultural quando Moscovo não era sequer um vilarejo. Owen, porém, discorda de ambos:

 

“As duas perspectivas são inadequadas. Os nacionalistas ucranianos têm razão quando afirmam que a sua nação é realmente antiga – mas é uma nação que raramente foi independente, e nunca com as fronteiras que herdou da União Soviética em 1991. E Putin tem razão quando afirma que os Russos, os Bielorussos e os Ucranianos descendem todos da unidade política da Rússia de Quíive – mas do mesmo modo que os estados francês e alemão foram conjuntamente os herdeiros do império quase contemporâneo de Carlos Magno, facto esse que dificilmente se revelou uma receita para uma unidade história subsequente.” (p. 48)

 

Putin, que não recolhe nenhuma simpatia da parte do autor, teria ainda razão num outro ponto: “Para quase qualquer russo ou ucraniano moderno, as relações entre as duas nações não são uma questão abstrata de política, e muito menos de história, mas de sangue e família.” (p. 49)

 

Prova disso, o percurso da família de Owen Mathews, os Bibikov. 

 


Mapa dos territórios da Ucrânia a partir de 1654. A verde, áreas incorporadas no tempo do Império Russo, especialmente no tempo de Catarina, a Grande. A rosa, a zona do Donbass integrada por Lenine em 1922 tendo em vista proporcionar a base industrial complementar às extensas regiões agrícolas dominantes. A verde escuro, a oeste, terras entregues à República Soviética da Ucrânia por Estaline, após a II Guerra Mundial. Finalmente, a Crimeia, a sul, região geoestratégica fundamental onde se encontra Sebastopol, a grande base naval russa, foi integrada por Krushev, em 1954. Imagem: Washington Times
Mapa dos territórios da Ucrânia a partir de 1654. A verde, áreas incorporadas no tempo do Império Russo, especialmente no tempo de Catarina, a Grande. A rosa, a zona do Donbass integrada por Lenine em 1922 tendo em vista proporcionar a base industrial complementar às extensas regiões agrícolas dominantes. A verde escuro, a oeste, terras entregues à República Soviética da Ucrânia por Estaline, após a II Guerra Mundial. Finalmente, a Crimeia, a sul, região geoestratégica fundamental onde se encontra Sebastopol, a grande base naval russa, foi integrada por Krushev, em 1954. Imagem: Washington Times



Continua com Ucrânia (Parte IV): Nacionalismo e Identidade no Tempo dos Monstros, etno-nacionalismo e NATO

 




 
 
 

 

2. O “nacionalismo moderado” de Plokhy, Yekelchyk e Matthews


São os pilares do nacionalismo identificados no monumento a Stepan Bandera de Lviv que servem de matriz aos historiadores ucranianos ou de ascendência ucraniana. Com diferentes e, por vezes, substanciais declinações, a maioria procura afastar-se do líder ultranacionalista, promovendo, em simultâneo, a ideia de um novo “nacionalismo moderado”. É o que fazem Plokhy, Yekelchyk e Matthews que, em maior ou menor grau, levam a cabo digressões, medidas em séculos, em busca da identidade da nação. Poderá haver, e há, ponderação diversa de episódios sinalizados, mas partilham os fundamentos de uma mesma matriz histórica legitimadora. A razão é simples. A questão da Ucrânia é existencial.


 

Stepan Bandera, o herói nacionalista ucraniano de quem a maioria dos historiadores contemporâneos procura distanciar-se. Comandante da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN), Bandera foi um dos principais colaboradores da Alemanha nazi, sendo comprovadamente responsável por numerosas atrocidades e crimes de guerra, incluindo o extermínio de judeus ucranianos. Todavia, há quem veja nele um ícone da resistência anti-soviética e um combatente pela liberdade. A imagem negativa a ele associada que para o exterior é, regra geral, atribuída à propaganda russa. (ver exemplo do elogio de Bandera, herói nacional, aqui: https://theins.ru/en/politics/250805). Imagem:The Insiderd
Stepan Bandera, o herói nacionalista ucraniano de quem a maioria dos historiadores contemporâneos procura distanciar-se. Comandante da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN), Bandera foi um dos principais colaboradores da Alemanha nazi, sendo comprovadamente responsável por numerosas atrocidades e crimes de guerra, incluindo o extermínio de judeus ucranianos. Todavia, há quem veja nele um ícone da resistência anti-soviética e um combatente pela liberdade. A imagem negativa a ele associada que para o exterior é, regra geral, atribuída à propaganda russa. (ver exemplo do elogio de Bandera, herói nacional, aqui: https://theins.ru/en/politics/250805). Imagem:The Insiderd

A bandeira nacional e o tridente sempre presentes nas manifestações pró-ucranianas. A foto é de Pittsburgh, em 03 de março de 2025, com a refugiada nos Estados Unidos, desde 2014, Natalka Rymar, ao centro. O tryzub, tridente em português, em fundo azul (o céu) e ouro (o trigo), é o símbolo nacional da Ucrânia. Há quem localize a sua origem no século I d.C., como símbolo de poder de algumas tribos nórdicas. A partir desses vestígios procurou estabelecer-se um itinerário que tem na Rus’ de Kiev, no século X, o momento em que o tridente, então visto como a Santíssima Trindade, representa o estado. Porém, só no século XX surge associado a duas efémeras repúblicas ucranianas, aliás, com pouco ou nada em comum com a atual. O tridente em fundo ouro e azul, enquanto símbolo da república da Ucrânia que emergiu com o colapso da União Soviética, em 1991, tem pouco mais de 30 anos. Imagem: Pittsburgh’s Public Source
A bandeira nacional e o tridente sempre presentes nas manifestações pró-ucranianas. A foto é de Pittsburgh, em 03 de março de 2025, com a refugiada nos Estados Unidos, desde 2014, Natalka Rymar, ao centro. O tryzub, tridente em português, em fundo azul (o céu) e ouro (o trigo), é o símbolo nacional da Ucrânia. Há quem localize a sua origem no século I d.C., como símbolo de poder de algumas tribos nórdicas. A partir desses vestígios procurou estabelecer-se um itinerário que tem na Rus’ de Kiev, no século X, o momento em que o tridente, então visto como a Santíssima Trindade, representa o estado. Porém, só no século XX surge associado a duas efémeras repúblicas ucranianas, aliás, com pouco ou nada em comum com a atual. O tridente em fundo ouro e azul, enquanto símbolo da república da Ucrânia que emergiu com o colapso da União Soviética, em 1991, tem pouco mais de 30 anos. Imagem: Pittsburgh’s Public Source



Moeda de prata do tempo do príncipe Vladimir, o Grande, da Rus’ de Kiev. No reverso, à direita, o tridente. Mykhailo Hrushevsky, historiador ucraniano da transição do século XIX para o século XX, afirma ter identificado no tridente a simbologia das origens da nacionalidade, o elo de ligação entre o estado moderno e o passado medieval. Imagem: Reddit
Moeda de prata do tempo do príncipe Vladimir, o Grande, da Rus’ de Kiev. No reverso, à direita, o tridente. Mykhailo Hrushevsky, historiador ucraniano da transição do século XIX para o século XX, afirma ter identificado no tridente a simbologia das origens da nacionalidade, o elo de ligação entre o estado moderno e o passado medieval. Imagem: Reddit


O Regresso da História. Historiador e diretor do Harvard Ukranian Research Institute, apresentado pelo Financial Times como “o mais importante historiador da Ucrânia”, Serhii Plokhy introduz em A Guerra Russo-Ucraniana - O Regresso Da História, publicado pela Editorial Presença, a diferenciação entre “nacionalismo moderado” e “nacionalismo radical”. Porém, ao longo das 330 páginas do livro escassas linhas se ocupam do nacionalismo “radical”. A par do reconhecimento do papel de organizações extremistas, Plokhy, não omitindo o passado de Stepan Bandera, apoiante do III Reich, cujo colaboracionismo sugere ter sido consequência de uma reação ao Holodomor, realça, em todo o caso, o papel do homem que, no final da guerra, chegou a estar detido num campo de concentração nazi.


Em contrapartida, investe a fundo na tese segundo a qual “A invasão russa destruiu os últimos resquícios da crença de que os Ucranianos e os Russos eram povos irmãos” (p.186), providenciando, nesse sentido, diversos comprovativos. Por exemplo, em Pereiaslav, as autoridades municipais removeram o monumento comemorativo da reunificação da Rússia e Ucrânia, o qual, reportando a 1654, aludia ao juramento de fidelidade prestado pelo atamã Bohdan Khmelnytsky ao Czar russo (p.187). Outro exemplo:


“O monumento da Mãe Pátria a defender a cidade contra a agressão nazi com a espada numa mão e o escudo na outra, erigido pelos soviéticos nos anos 1980 e conhecido como um símbolo de Kiev, permaneceu quase intacto, mas mudou de significado. É agora visto como um símbolo da resistência à invasão russa.” (p.187)


A estátua da Mãe Pátria com 102 metros de altura, originalmente um monumento comemorativo da vitória soviética sobre o nazi-fascismo, foi adaptado aos novos tempos. Perdeu a foice e o martelo e em seu lugar apareceu o tridente ucraniano. Na foto, o monumento original. Imagem: Poder 360
A estátua da Mãe Pátria com 102 metros de altura, originalmente um monumento comemorativo da vitória soviética sobre o nazi-fascismo, foi adaptado aos novos tempos. Perdeu a foice e o martelo e em seu lugar apareceu o tridente ucraniano. Na foto, o monumento original. Imagem: Poder 360


Estátua atual da Mãe Pátria, outrora parte do complexo do memorial do Museu Nacional da História da Ucrânia na Segunda Guerra Mundial. Imagem: Los Angeles Times
Estátua atual da Mãe Pátria, outrora parte do complexo do memorial do Museu Nacional da História da Ucrânia na Segunda Guerra Mundial. Imagem: Los Angeles Times


Mapa da demolição de estátuas de Lenine e resultados eleitorais das presidenciais de 2010 disputadas entre Yanukovych, considerado pró-russo, e Tymoshenko, pró-ocidental. O mapa é de 2017 e permite algumas reflexões quando comparado os mapas militares atuais. Imagem: Ukrainian Research Institute, Harvard Institute
Mapa da demolição de estátuas de Lenine e resultados eleitorais das presidenciais de 2010 disputadas entre Yanukovych, considerado pró-russo, e Tymoshenko, pró-ocidental. O mapa é de 2017 e permite algumas reflexões quando comparado os mapas militares atuais. Imagem: Ukrainian Research Institute, Harvard Institute

 

Em A Guerra Russo-Ucraniana - O Regresso Da História está o que se ouve e lê na generalidade dos meios de comunicação em Portugal e no resto da Europa. Tendo a chancela de um cientista social, reforça a crença de quem encara positivamente a narrativa dominante. Vejamos alguns exemplos. Celebra O Regresso do Ocidente (p.229), título de um extenso capítulo em que se debruça exclusivamente sobre a atualidade; em Os Pacificadores (p.244) destaca o papel de Emmanuel Macron, bem como de dirigentes como Johnson e Scholtz, no apoio a Zelensky; congratula-se, adiante, com a Frente Comum (p.247) dos países ocidentais e considera histórica a reunião da Nato de 29 de Junho de 2022, em Madrid, por ter reforçado, por um lado, a unidade transatlântica e, por outro, porque “o comunicado emitido pelo gabinete de imprensa da cimeira designava a Rússia como ‘a ameaça mais significativa e direta para a segurança dos aliados’, designação usada pela primeira vez desde o fim da Guerra Fria.” (p.248).


Escrito entre março de 2022 e fevereiro de 2023 no seguimento da contraofensiva do exército ucraniano que desalojou os russos de várias posições no terreno, o livro foi acrescentado de um Posfácio onde o autor escreve sobre a Nova Ordem Mundial. Corolário da crença na identidade da nação em armas contra o inimigo comum, condição em função da qual a vitória militar estaria assegurada, o Posfácio avança atribuindo à Ucrânia um papel charneira na geoestratégia do ocidente, sob liderança americana. Dá igualmente como adquirido o enfraquecimento da Federação Russa, destinada a uma posição de vassalagem face à China. Mas, Plokhy vai mais longe. Escreve:


“Há indicações claras de que a nação ucraniana emergirá desta guerra mais unida e segura da sua identidade do que em qualquer outro momento da sua história moderna. Além disso, a resistência bem-sucedida da Ucrânia à agressão russa está destinada a promover o próprio projeto de construção nacional da Rússia.” (p.271)


Serhii Plokhy, académico residente nos Estados Unidos, disse numa entrevista ao Hrohromadske ter rompido com a arquitetura da História posto que, sendo esta uma ciência do passado, decidira fazer incidir o foco do seu livro, sobretudo, no presente. Exemplo, excerto: “Toda a operação militar, sustentada pela convicção de Putin na inexistência da nação ucraniana e no desejo de os Ucranianos viverem sob autoridade russa, foi inspirada na ocupação russa da Crimeia.” (p.154). Imagem: Hrohromadske, 04 jun 2024
Serhii Plokhy, académico residente nos Estados Unidos, disse numa entrevista ao Hrohromadske ter rompido com a arquitetura da História posto que, sendo esta uma ciência do passado, decidira fazer incidir o foco do seu livro, sobretudo, no presente. Exemplo, excerto: “Toda a operação militar, sustentada pela convicção de Putin na inexistência da nação ucraniana e no desejo de os Ucranianos viverem sob autoridade russa, foi inspirada na ocupação russa da Crimeia.” (p.154). Imagem: Hrohromadske, 04 jun 2024

Sendo uma celebridade da intelligentsia ucraniana, autor de best-sellers como Chernobyl (2018) e Átomos e Cinzas (2022), Plokhy é sempre muito solicitado. Numa entrevista em inglês concedida à maior publicação on line da Ucrânia, o Hrohromadske, de 4 de junho de 2024, face à hipótese da cedência de territórios à Rússia, afirmou: “Border shifts are normal. The main thing is sovereignty and independence, and the ability to maintain them. The Poles today are somehow coping well without Lviv.” É uma diferença assinalável face ao tom geral do livro.

 

O que toda a gente precisa de saber. Se o livro de Plokhy é interessante porque construído em torno do O Regresso Da História, o de Serhy Yekelchyk, apesar de anterior, é essencial para o entendimento desse ponto de vista. O Regresso Da História, aliás, é tributário de Ucrânia - O Que Toda A Gente Precisa De Saber de Yekelchyk. O próprio Plokhy considera o trabalho do colega como o melhor de entre todos para efeito de introdução ao conflito. Timothy Snyder, académico americano e opositor de Putin, vai mais longe. Autor do sempre citado O Caminho Para O Fim Da Liberdade (2019)) diz que Ucrânia - O Que Toda A Gente Precisa De Saber deveria ser adotado como livro de cabeceira, andar sempre no bolso do casaco e se, porventura, alguém decidisse ler apenas um livro sobre o conflito, então, esse livro só poderia ser o de Yekelchyk. Está lá tudo.


Trata-se, com efeito, de um texto esclarecedor porque responde às questões em função das linhas gerais do que possa ser um eventual contraditório. Recuperando o revisionismo histórico assente nos pilares nacionalistas, introduzindo uma variante bastante criativa sobre o papel da “cultura de massas”, da qual adiante se falará, o livro tem como horizonte temporal o primeiro ano da presidência de Zelensky, em 2020, portanto, anterior à invasão russa. Talvez por isso, dedica particular atenção à guerra lançada contra os separatistas do Donbass a partir de 2014. Os títulos dos sete capítulos permitem identificar o foco do autor. Vejamos: 1. Porquê a Ucrânia? 2. A Terra e o Povo; 3. A construção da moderna Ucrânia; 4. Ucrânia depois do comunismo; 5. A Revolução Laranja e a EuroMaidan; 6. A anexação russa da Crimeia e a guerra no Donbass; 7. A guerra na Ucrânia como questão internacional.


Daqui, facilmente se poderá inferir a presença de uma estrutura baseada na construção de uma ideia de nação. Cada um dos capítulos responde a perguntas, 83 no conjunto, às quais o autor responde de forma precisa e sistemática. No primeiro, desenha uma tela de fundo da atualidade. As perguntas nele contidas são as seguintes: Porque tornou a Ucrânia um assunto-chave na luta política americana? Que é a Praça Maidan e porque se tornou notícia de abertura em todo o mundo? Como e porque motivo a Rússia anexou a Crimeia? Porque se desencadeou um conflito no Leste da Ucrânia na primavera de 2014? Porque causou a crise ucraniana tensões entre a Rússia e o Ocidente?



Serhy Yekelchyk vive no Canadá onde ensina História e Estudos Eslavos na Universidade de Vitória, na província da Columbia Britânica. Na foto, de fevereiro de 2022, discursa perante apoiantes da Ucrânia concentrados diante do edifício do Parlamento na cidade de Vitória. Excerto do livro: “Na atual cultura de massas da Ucrânia, Bandera funciona mais como um símbolo da resistência antirússia, uma vaga afirmação de protesto, semelhante à imagem de Che Guevara numa T-shirt.” (p. 95). Imagem: David Furlonger - University of Victoria/UVic News Archive
Serhy Yekelchyk vive no Canadá onde ensina História e Estudos Eslavos na Universidade de Vitória, na província da Columbia Britânica. Na foto, de fevereiro de 2022, discursa perante apoiantes da Ucrânia concentrados diante do edifício do Parlamento na cidade de Vitória. Excerto do livro: “Na atual cultura de massas da Ucrânia, Bandera funciona mais como um símbolo da resistência antirússia, uma vaga afirmação de protesto, semelhante à imagem de Che Guevara numa T-shirt.” (p. 95). Imagem: David Furlonger - University of Victoria/UVic News Archive

Perguntas, na verdade, que qualquer pessoa faria, sendo essa uma das razões da eficácia retórica do livro. Uma vez respondidas, porém, resulta evidente a presença de um ponto de vista analítico com um juízo moral subjacente. Segue-se, parafraseando Plokhy, o “regresso à História”. O método, legítimo, consiste em estabelecer as premissas e retirar as conclusões. As primeiras resultam da particular interpretação de Yekelchyk a propósito da complexa rede política, geoestratégica e étnico-linguística, cujas raízes tanto mergulham no tempo quando são aplicáveis a episódios mais recentes, alguns dos quais envoltos em controvérsia. Entre eles, o massacre de Odessa. É visto pelo autor como um confronto entre manifestantes pró-russos e pró-Maidan que “terminou num banho de sangue quando uma coluna conjunta de adeptos de futebol e de ativistas da EuroMaidan entraram em confronto com uma parada de forças pró-russas no centro da cidade.” (p. 207)


Acrescenta o autor:


“Depois das primeiras vítimas, a luta moveu-se para a praça onde os ativistas tinham assentado campo. Ali, muitos ativistas pró-russos refugiaram-se num edifício sindical abandonado e dezenas morreram, aparentemente, devido à inalação de fumo quando o edifício pegou fogo, em circunstâncias ainda por esclarecer. Nesse dia houve 48 mortos na cidade, todos, exceto seis, pró-russos, e centenas de pessoas foram feridas.” (p. 207)

A versão de Yekelchyk, não mais do que uma breve passagem do livro, diverge da que levou as autoridades europeias a pedirem explicações a Kiev, exigindo o apuramento de responsabilidades, bem como, mais tarde, já em março de 2016, o Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU (OHCHR) a elaborar um relatório sobre os sucessivos adiamentos e entorses da justiça ucraniana. Seriam ainda elaborados outros dois relatórios, cujas consequências foram nulas. A dada altura, o massacre de Odessa passou a ser considerado quer em Kiev quer no ocidente como “propaganda russa”, apesar das evidências. Por exemplo, sabe-se que quem incendiou a Casa dos Sindicatos foi Demyan Ganul, comandante de milícias de rua constituídas para perseguir a população pró-russa. Conhecem-se, também, pessoas que participaram na carnificina e, na ocasião, exibiram fotos de congratulação nas redes sociais. Uma delas é Ievgeniia Kraizman, ativista do grupo Femen, alegadamente feminista e admiradora de Bandera.


 

A Casa dos Sindicatos de Odessa em chamas. Segundo o que então veio a lume, milícias ucranianas, organizadas pelo Sector Direito e outras organizações extremistas, bloquearam manifestantes pró-russos no interior e incendiaram o edifício. Dezenas de pessoas foram queimadas vivas. Mais de duas centenas ficaram feridas, na maioria dos casos alvejadas quando tentavam escapar. Imagem: ABC News
A Casa dos Sindicatos de Odessa em chamas. Segundo o que então veio a lume, milícias ucranianas, organizadas pelo Sector Direito e outras organizações extremistas, bloquearam manifestantes pró-russos no interior e incendiaram o edifício. Dezenas de pessoas foram queimadas vivas. Mais de duas centenas ficaram feridas, na maioria dos casos alvejadas quando tentavam escapar. Imagem: ABC News


Demyan Ganul, notório neonazi, foi identificado como um dos organizadores e perpetradores do massacre. Figura proeminente do submundo ucraniano, o seu nome constou das listas de criminosos procurados em diversos países. Foi executado em Março de 2025 por um atirador solitário no centro da cidade de Odessa. Imagem: Nevillegafa
Demyan Ganul, notório neonazi, foi identificado como um dos organizadores e perpetradores do massacre. Figura proeminente do submundo ucraniano, o seu nome constou das listas de criminosos procurados em diversos países. Foi executado em Março de 2025 por um atirador solitário no centro da cidade de Odessa. Imagem: Nevillegafa

As conclusões extraídas por Yekelchyk em função das suas premissas são, com frequência, bastante ousadas. É o que sucede quanto à questão étnico-linguística, decisiva para compaginar de modo coerente o que se entende por “ucranianos”. Tendo a Ucrânia acedido à independência apenas em 1991, a noção de “ucranianos” ou “nação ucraniana”, segundo Yekelchyk, “é ainda entendida como referindo-se a ucranianos étnicos.” Com efeito, a Constituição do País proclama como fonte da sua soberania “o povo ucraniano – cidadãos da Ucrânia de todas as nacionalidades”, distinguindo, no entanto, “entre este conceito cívico de nação e nação ucraniana étnica.” Nas últimas décadas, contudo, escreve o autor:


“(...) os falantes de ucraniano aceitaram gradualmente um entendimento ocidental de ‘Ucranianos’ como tratando-se de todos os cidadãos da Ucrânia. Uma tal mudança linguística reflete o moroso desenvolvimento de um patriotismo cívico baseado na aliança com o Estado em vez de com a nação étnica.” (p. 46).

Para se entender a questão, a qual, na verdade, parece algo nebulosa, Yekelchyk defende ser necessário compreender a natureza da nação étnica ucraniana que “também vindo a mudar”. Vejamos como:


“Os nacionalistas acreditam em nações étnicas, orgânicas, primordiais, definidas pelo sangue; mas os estudiosos modernos argumentam o contrário. Demonstram que as nações modernas emergiram quando a educação e os media ajudaram as massas a ‘imaginarem-se” a si mesmas como parte da nação. A cultura folclórica do campesinato serviu como fundação das modernas nações na Europa do Leste, mas foi necessário o esforço de intelectuais patriotas para definir as nações étnicas dentro dos impérios, que eram como mantas de retalhos, desenhando a partir de elementos folclóricos uma cultura moderna nobre que servisse de alicerce para a identidade nacional contemporânea.” (p. 47)

Dada a complexidade etno-linguística da Ucrânia, e para quem busca as raízes profundas da identidade, entregar a tarefa a historiadores patriotas fazer fé na cultura de massas, não será passar um pouco das marcas?

 


Mapa etno-linguístico da Ucrânia. 2014. Imagem: Eurasian Geopolitcs, UC Berkeley
Mapa etno-linguístico da Ucrânia. 2014. Imagem: Eurasian Geopolitcs, UC Berkeley



Mapa linguístico da Ucrânia, 2014. A língua oficial, o ucraniano, era falada por cerca de 70 por cento da população. O russo, a segunda língua, era igualmente utilizada em todo o país, sendo dominante em regiões como o Donbass e praticamente exclusiva na Crimeia. Imagem: CNN
Mapa linguístico da Ucrânia, 2014. A língua oficial, o ucraniano, era falada por cerca de 70 por cento da população. O russo, a segunda língua, era igualmente utilizada em todo o país, sendo dominante em regiões como o Donbass e praticamente exclusiva na Crimeia. Imagem: CNN

 

Continua com Ucrânia (Parte III): Nacionalismo e Identidade no Tempo dos Monstros, passar das marcas

 
 
 

Após a invasão da Ucrânia pela Federação Russa numerosas publicações de autores portugueses e estrangeiros encheram os escaparates das livrarias. Como se esperava, a atividade editorial acompanhou a vaga de condicionamento simbólico necessária ao respaldo de uma opinião pública favorável à guerra apoiada pelos Estados Unidos e pela União Europeia. Agora, após anos de incontáveis tragédias, quando parecia aberta uma janela para a diplomacia, verifica-se que, afinal, o futuro é cada vez mais uma incógnita. Durante todo este tempo li centenas de páginas sobre a guerra e consultado inúmeros documentos. Se dissipei algumas dúvidas, outras, dada a complexidade da situação, avolumaram-se. Sendo possível identificar o fundamento das narrativas, da Ucrânia e seus aliados, por um lado, e da Federação Russa, República Popular da China e Sul global, por outro, há uma nebulosa que parece toldar a razão. Chama-se nacionalismo. Quando isso acontece, havendo raízes profundas de ordem histórico-cultural, fica aberta a porta ao mito. E é inevitável uma intensa disputa ideológica.


 

Próximo de Bakhmut, 15 de abril de 2023. Soldado ucraniano da Guarda Nacional regressa da frente de combate. Imagem: RadioFreeEurope/RadioLiberty
Próximo de Bakhmut, 15 de abril de 2023. Soldado ucraniano da Guarda Nacional regressa da frente de combate. Imagem: RadioFreeEurope/RadioLiberty


Kyiv,14 de março de 2020. Comício de veteranos ucranianos do batalhão Azov. Imagem: NurPhoto
Kyiv,14 de março de 2020. Comício de veteranos ucranianos do batalhão Azov. Imagem: NurPhoto

Essa disputa é evidente nas publicações que consultei, a maioria com um ponto de vista favorável ao regime de Kiev, até porque o bloqueio imposto à informação do outro lado, desde logo, a proibição da RT, canal de notícias em inglês da Federação Russa, dificulta enormemente a tarefa. Ainda assim, o ciberespaço permite aceder a dados alternativos em suporte digital. Por isso, qualquer pessoa, observadas as cautelas indispensáveis de verificação de factos e fontes - tarefa complexa dado a vertigem de propaganda em circulação – pode avançar na busca do conhecimento. Aliás, pode avançar e recuar, posto que amiúde é necessário afinar premissas e conclusões.   

 

Dito isto, devo acrescentar que não tenho como adquirido que os media tradicionais, em especial as televisões, sejam fiáveis. Pelo contrário, veiculam muita informação enviesada por exemplo, em programas ou edições especiais onde muito do que por lá passa tem origem, com forte probabilidade, em canais de serviços de inteligência. É dos livros. (Nota: sobre manipulação mediática e crise do jornalismo, ver aqui.)


O que se segue também é sobre livros, mas em torno da guerra russo-ucraniana. De autores pró-ucranianos e de ascendência ucraniana, são: A Guerra Russo-Ucraniana - O Regresso Da História (2023) de Serhii Plokhi; Ucrânia - O Que Toda A Gente Precisa De Saber (2020) de Serhy Yekelchyk; Passar das Marcas (2022) de Owen Matthews. O quarto livro, em contraponto é Este é o Tempo dos Monstros (2022) de António Avelãs Nunes. Farei breves recensões, não prescindindo de tecer alguns comentários, bem como de abordar matérias raramente tratadas nos media tradicionais. Como ponto de partida constato que a opinião dominante é estruturada em função de cinco eixos retóricos essenciais, a saber:

 

a) identificação de um agressor e de um agredido segundo o normativo da ordem internacional “tal como a conhecemos”; b) o mito da “ameaça russa” e a “luta do ocidente pela liberdade”; c) defesa do regime de Kiev e construção da persona do herói, Zelensky; d) demonização do Kremlin e construção da persona do vilão, Putin; e) exaltação da resistência ucraniana em nome do direito à autodeterminação e independência.

 

Estes cinco eixos estão declinados nas obras dos autores mencionados. Em diferentes modulações, são o pano de fundo do tema central deste texto cujo foco incide no problema da identidade e do nacionalismo ucranianos. É nesse campo que se trava uma batalha titânica pela História vista como determinante não só para o entendimento do conflito, mas também para delinear os caminhos de uma eventual solução futura a qual, a meu ver, terá de passar por uma reconfiguração das fronteiras. 

 

1. A Batalha pela História 

 

Considerações. Dando por adquirida a vulgata construída em torno da bondade da antiga república soviética face ao opressor russo, raramente os media do ocidente se dão ao trabalho de investir na busca das raízes profundas que determinam contexto. Fazendo prevalecer a tese do agressor e do agredido, impõem o juízo moral como pêndulo de avaliação. Isso é óbvio nas obras dos autores de ascendência ucraniana. Contudo, quanto à pertença dos territórios, as coisas são mais complexas e eles não o ignoram. Por isso, de diferentes maneiras, sentem como imperativo encontrar uma matriz identitária da nação, mesmo se, para isso, tiverem de criar novos critérios de ponderação científica. Ao cabo e ao resto, se é defensável admitir que a Ucrânia e a Rússia são parte de um mesmo tronco comum ancestral é, igualmente, legítimo reivindicar a existência de uma linhagem ucraniana diferenciada. Como facilmente se compreende é esta última que suporta o nacionalismo do regime de Kiev. 

 

Os nacionalismos sempre suscitaram controvérsia. O ucraniano não foge à regra. Emergiu na sua forma mais radical desde a II Guerra Mundial após a independência, em 1991. Nessa altura, a Ucrânia passou a ser vista como uma espécie de terra prometida dos grupos de extrema-direita, tendo, inclusivamente, campos de treino militar neonazis na região ocidental junto à fronteira com a Polónia, na antiga região da Galícia. A imagem projetada para o exterior com a perseguição exacerbada dos russos étnicos e a suspensão do ensino da língua e da cultura russas, levou o governo de Kiev, a partir a partir dos desmandos de 2014, a tomar medidas para atenuar essa percepção. Pressionado pela União Europeia, igualmente preocupada com a corrupção generalizada, o regime fê-lo, no entanto, de modo inconsequente. Promoveu a guerra contra os separatistas do Donbass e fechou os olhos à repressão noutras regiões, designadamente ao massacre de Odessa de 2 de maio de 2014 que fez dezenas de mortos e centenas de feridos entre manifestantes pró russos.

 

Segundo os dirigentes ucranianos, a expressão da extrema-direita é, hoje, meramente residual. Sê-lo-á. Ou não. Em termos eleitorais a sua expressão é reduzida. Porém, a verdade é que a maioria dos radicais mais influentes transitou para novas formações políticas, vistas como aceitáveis no ocidente, que surgiram ao longo do agitado processo político subsequente à chamada Revolução Laranja de 2004. A título de exemplo, Andriy Parouby, ex-presidente da Rada, um dos fundadores, em 1991, do Partido Nacional Social, mais tarde, Partido Svoboda, foi eleito deputado, em 2007, pelo Partido Nossa Ucrânia de Victor Yuschenko, e, posteriormente, pela Frente Popular de Arseni Yatseniuk. O seu nome está ligado à coordenação das manifestações na Praça Maidan, em 2014, bem como ao massacre de Odessa. Enquanto Secretário da Comissão de Segurança e Defesa Nacional coordenou a guerra desencadeada contra os independentistas do Donbass. Era um partidário da NATO e da integração europeia.

 

Andriy Paroubiy foi executado com sete tiros por um atirador solitário, em Agosto de 2025, no bastião nacionalista de Lviv. O assassino, segundo a imprensa de Kiev, foi detido alguns dias mais tarde, sem, no entanto, ter sido revelada a sua identidade. Porém, foram exibidas fotos da detenção. O homem terá dito que atuara por vingança e que pretendia ser trocado por prisioneiros ucranianos na Rússia. Os meios de comunicação do ocidente, regra geral, omitiram o passado de Paroubiy. Imagem: TVP/World.
Andriy Paroubiy foi executado com sete tiros por um atirador solitário, em Agosto de 2025, no bastião nacionalista de Lviv. O assassino, segundo a imprensa de Kiev, foi detido alguns dias mais tarde, sem, no entanto, ter sido revelada a sua identidade. Porém, foram exibidas fotos da detenção. O homem terá dito que atuara por vingança e que pretendia ser trocado por prisioneiros ucranianos na Rússia. Os meios de comunicação do ocidente, regra geral, omitiram o passado de Paroubiy. Imagem: TVP/World.

Parouby não é um caso isolado. Após Maidan, Oleksandr Sych ficou com a pasta essencial dos Assuntos Económicos, Serhiy Kvit assumiu a Educação, Andriy Makhnyk foi nomeado ministro da Ecologia, Ihor Shvaiko ficou com a Agricultura e Oleh Makhnitsky tornou-se o Procurador Geral da Ucrânia. Têm em comum o facto de pertencerem todos ao partido Svoboda. Mas há numerosos outros casos documentados.

 

Conhecendo os antecedentes, saber se os radicais exercem ainda influência sobre o regime de Kiev foi a questão colocada por Paul Millar num artigo publicado em 11 de Outubro de 2024 no site do canal France 24, edição inglesa, intitulado: “Should Zelensky's government be afraid of far-right groups?”

 

Millar começa por fazer referência ao duro embate verbal entre o deputado Oleksandr Merezhko do partido Servos do Povo, o partido de Zelensky, e militares dispostos a lutar contra os russos até ao último homem, não admitindo sequer discutir a eventualidade de cedência de qualquer território. Após uma virulenta troca de insultos, Merezhko denunciou o recrudescimento das forças extremistas na Ucrânia o que, para ele, era uma situação perigosa. Os militares acusaram-no de cobardia. O assunto, apesar das cautelas, começou a ser discutido no espaço público no final do ano passado.    

 

Lendo o artigo de Millal fica-se com a ideia de que se os partidos fascistas e neonazis falharam em transformar o nacionalismo mais agressivo em votos, melhor sorte tiveram as milícias armadas cujos representantes, agora integrados no exército regular, se movem com à vontade nos círculos do poder. Lesia Bidochko, historiadora, especialista em media e propaganda, leitora da Academia Kyiv-Mohyla, disse ao France 24, que a extrema-direita ganhou legitimidade após a participação em Maidan, bem como na guerra do Donbass: 

“Faced with growing pro-Russian separatism, the government made the controversial decision to arm and utilise far-right militias as a key force in resisting separatist movements (...) This development not only fuelled domestic tensions but also played into Moscow’s propaganda, which sought to legitimise its intervention by painting Ukraine as being overrun by extremist elements.” (artigo completo publicado de Paul Millal, aqui).

 

Lesia Bidochko ao France 24: “On one hand, the rise of the far right can be attributed to Russia’s aggression, which has reignited the fervour of Ukrainian nationalists regarding territorial integrity and consolidation of the Ukrainian nation,” (...) “On the other, it is also a consequence of Ukraine’s opportunistic political elites, who are willing to engage with even overt neo-Nazi elements to further their interests and gain political profit.” Imagem: Wilson Center
Lesia Bidochko ao France 24: “On one hand, the rise of the far right can be attributed to Russia’s aggression, which has reignited the fervour of Ukrainian nationalists regarding territorial integrity and consolidation of the Ukrainian nation,” (...) “On the other, it is also a consequence of Ukraine’s opportunistic political elites, who are willing to engage with even overt neo-Nazi elements to further their interests and gain political profit.” Imagem: Wilson Center

Tal como os líderes políticos extremistas, também as milícias armadas sofrearam uma metamorfose quando integradas na Guarda Nacional. O Batalhão Azov, por exemplo, em 2014, tornou-se a 12ª Brigada de Forças Especiais. Oficialmente, deixou de ser uma organização de voluntários da extrema-direita e tornou-se numa unidade profissional de combate. Um dos seus principais comandantes, Denys Prokopenko, haveria de distinguir-se na defesa de Mariupol. Capturado pelo exército russo seria depois libertado numa troca de prisioneiros. Outro líder do Azov original e seu fundador, Andriy Biletsky foi designado comandante do 3º Corpo do Exército com o objetivo de nele concentrar as melhores práticas das suas milícias anteriores. É hoje um homem chave do regime de Kiev. Com passado neonazi, conhecido por ligações ao supremacismo branco, distinguiu-se de tal forma no campo militar que se tornou numa figura de culto. É agora um defensor da democracia, segundo o próprio. Esteve algum tempo na Verkhovna Rada, o Parlamento ucraniano, mas é a coordenar a frente de batalha que melhor se move. No The Times de 14 de agosto de 2025, Maxim Tucker escreve:

 

“Biletsky says he envisages a future in the military, but his reputation as an effective leader is making him an ever more powerful political force in wartime Ukraine. He was not afraid to criticise Zelensky’s recent attempt to grab control of Ukraine’s anti-corruption bodies. (...) His vision for the future, he says, involves a permanently militarised society, effectively becoming the army and the arsenal of a Europe that has proved alarmingly slow to build its own.” (artigo completo de Maxim Tucker, aqui).

 

Andriy Biletsky encarna o mito da bravura do herói nacionalista da Ucrânia. Tem influência política na capital. Nas suas palavras, não só é possível recuperar os territórios ocupados, como, com o prolongamento da guerra, Putin ficará numa posição insustentável e o regime da Federação Russa entrará em colapso. Imagem: Transcend Media Service
Andriy Biletsky encarna o mito da bravura do herói nacionalista da Ucrânia. Tem influência política na capital. Nas suas palavras, não só é possível recuperar os territórios ocupados, como, com o prolongamento da guerra, Putin ficará numa posição insustentável e o regime da Federação Russa entrará em colapso. Imagem: Transcend Media Service

Historicamente, se líderes como Roman Shukhvych (comandante do Exército Insurgente Ucraniano que combateu pelo III Reich e participou no massacre de polacos em Volínia) e Yaroslav Stetsko (o ideólogo que chegou a ser presidente da efémera República da Ucrânia proclamada no início da invasão nazi) continuam a ser figuras de referência, a verdade é que o destaque como principal protagonista da linhagem nacionalista vai para Stepan Bandera. O seu culto, outrora exibido em marchas silenciosa à luz de tochas de inequívoco pendor nazi-fascista, sempre no primeiro dia de janeiro, em Kiev, é agora mais reservado. Contudo, a sua memória continua presente em dezenas de espaços e monumentos distribuídos pelo território, sobretudo a oeste, na antiga Galícia e em regiões adjacentes, ou seja, naquela a que alguns chamam a “Ucrânia ucraniana”.

 

O monumento mais importante fica no centro de Lviv. Criação do escultor Mykola Posikirae e do arquitecto Mykhailo Fedyk, maioritariamente financiado pelo município, foi construído em 2003. A estátua de bronze de Bandera tem sete metros de altura e é enquadrada por um arco do triunfo com quatro colunas de 30 metros. A primeira representa a Rússia de Kiev, considerada o primeiro estado eslavo, no qual, entre os séculos IX e XIII houve diferentes arranjos políticos; a segunda representa o Hetemanato Cossaco que se lhe seguiu; a terceira é o símbolo da República Popular da Ucrânia; a quarta corresponde à moderna Ucrânia Independente.

 


Homenagem a Stepan Bandera junto ao monumento de Lviv em 1 de janeiro de 2023. Em 2014, havia 46 estátuas e bustos de Bandera, 14 placas alusivas e perto de uma centena de ruas nomeadas a partir do seu nome. Entre 1990 e 2010, foram construídos cinco museus a ele dedicados em áreas onde viveu acontecimentos marcantes da vida. Imagem: El País
Homenagem a Stepan Bandera junto ao monumento de Lviv em 1 de janeiro de 2023. Em 2014, havia 46 estátuas e bustos de Bandera, 14 placas alusivas e perto de uma centena de ruas nomeadas a partir do seu nome. Entre 1990 e 2010, foram construídos cinco museus a ele dedicados em áreas onde viveu acontecimentos marcantes da vida. Imagem: El País

 

Mapa da localização dos 40 mais importantes monumentos erguidos em homenagem a Stepan Bandera para os quais, antes da guerra, havia, inclusivamente, oferta turística com visitas guiadas. Imagem: Ukrainian Research Institute, Harvard Institute.
Mapa da localização dos 40 mais importantes monumentos erguidos em homenagem a Stepan Bandera para os quais, antes da guerra, havia, inclusivamente, oferta turística com visitas guiadas. Imagem: Ukrainian Research Institute, Harvard Institute.


 

Continua com Parte II: O “nacionalismo moderado” de Plokhy, Yekelchyk e Matthews

 

 
 
 
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Textos avulsos de teor literário nunca publicados. Recuperados de arquivos há muito esquecidos. Nunca houve intenção de os dar à estampa e, o mais das vezes, são o reflexo de estados de espírito, cumplicidades ou desafios que por diversas vias me foram feitos.

Imagens do Real Imaginado (IRI) do Instituto Politécnico do Porto foi o ponto de partida para o primeiro Mestrado em Fotografia e Cinema Documental criado em Portugal. Teve início em 2006. A temática foi O Mundo. Inspirado no exemplo da Odisseia nas Imagens do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura estabeleceu numerosas parcerias, designadamente com os departamentos culturais das embaixadas francesa e alemã, festivais e diversas universidades estrangeiras. Fiz o IRI durante 10 anos contando sempre com a colaboração de excelentes colegas. Neste segmento da Programação cabe outro tipo de iniciativas, referências aos meus filmes, conferências e outras participações. Sem preocupações cronológicas. A Odisseia na Imagens, pela sua dimensão, tem uma caixa autónoma.

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