top of page

CULTURA

  • Foto do escritorJorge Campos

O Movimento Documentarista Britânico 3: narrativa poética e deriva jornalística

Atualizado: 22 de out. de 2023

É relativamente consensual entre os historiadores que muitos dos filmes mais importantes do movimento documentarista britânico foram realizados entre 1934 e 1936. As experiências poéticas de Coal Face ou Night Mail nunca teriam sido ultrapassadas. Talvez não. Mas a edição recente de um número significativo de filmes desse tempo permite descobrir ou redescobrir obras cuja relevância é inquestionável. Noutra altura, lá iremos. Para já, antecedida de um breve enquadramento teórico, fica a recensão crítica de duas obras exemplares no que respeita aos caminhos prosseguidos pelos cineastas do movimento. Os filmes são o já citado Night Mail (1936) de Basil Wright e Harry Watt e Housing Problems (1935) de Ruby Grierson, John Taylor e Edgar Anstey, para muitos uma narrativa próxima do que viria a ser reportagem de televisão.



Housing Problems (1935) de Ruby Grierson, John Taylor e Edgar Anstey.

Durante o período compreendido entre 1934 e 1936, Grierson e Cavalcanti, cada um à sua maneira, foram a grande inspiração do GPO (General Post Office) numa demonstração de como personalidades dificilmente compatíveis podiam, em função dos respetivos saberes, fomentar um ambiente favorável à melhor expressão dos talentos individuais dos seus discípulos. Mais remotamente poder-se-ia falar em Paul Rotha que não ficou no GPO. Cavalcanti detestava a palavra documentário. Vinha da vanguarda dos anos 20, trabalhara com alguns dos mais destacados cineastas franceses, era autor de Rien que les Heures (1926), uma das mais conhecidas sinfonias de cidades, e quando foi para Inglaterra andava entusiasmado com o potencial expressivo do som. Pelo contrário, Grierson suspeitava do cinema de estúdio, desacreditava do entretenimento e teorizava sobre o filme documentário. Fora do GPO, embora ligado ao movimento, Paul Rotha era o cineasta mais influente.


First Principles of Documentary, redigido entre 1932 e 1934, é uma obra no qual Grierson estabelece as premissas do documentário tal como as entendia. Coincide com um momento especialmente significativo da História dos media posto que não só é contemporânea da afirmação da rádio e do advento do cinema sonoro, mas também do desenvolvimento dos estudos científicos sobre comunicação social. É bom lembrar que enquanto escrevia os textos de First Principles of Documentary, Grierson estava empenhado na sua unidade de produção de filmes, no Empire Marketing Board (EMB), obedecendo a uma estratégia de propaganda imperial. Importa igualmente lembrar que sendo um observador atento dos media era sensível à sua função retórica, a mesma que viria a ser uma porta de passagem para abordagens do documentário de pendor mais jornalístico (1).


Nem sempre as relações entre os cineastas que se tinham repartido por diferentes companhias após a extinção do EMB terão sido as melhores. Harry Watt, por exemplo, dizia que no GPO todos acreditavam no que estavam a fazer e adoravam fazê-lo. Quanto às pequenas unidades de produção do exterior “eram desprezadas por nós”, uma afirmação cujo radicalismo é difícil de entender visto que, sob a figura tutelar de Grierson, os contactos nunca deixaram de existir, designadamente através do Film Centre. Seja como for, também a influência de Rotha se fez sentir. Em Documentary Film, ele sustentava a existência de quatro grandes tendências, alinhadas em diacronia, em torno das quais foi construindo a sua ideia de documentário de propósito social. Essas tendências - na verdade, ele chamou-lhes tradição - são a seguir sumariamente explicitadas (2).


A primeira é a tradição naturalista ou romântica e surgiu com os filmes de Robert Flaherty os quais estão associados aos avanços da antropologia. Contemporâneo de James Frazer, Malinowsky, Margaret Mead e Franz Boas, este último um defensor do reconhecimento e preservação de culturas em vias de extinção, Flaherty utilizava um método semelhante ao dos antropólogos assumindo como ponto de partida o levantamento do máximo de informação através do trabalho de campo. Nele a aproximação ao real exige a reconstrução e repetição de cenas até se atingir o momento da verdade, a qual, em última instância, é sempre a verdade do autor. Essa necessidade de busca das raízes profundas legitima a encenação, como sucede, por exemplo, em Nanook of the North (1929). Flaherty, como se sabe, foi a primeira grande influência do movimento documentarista britânico.


Rien que les Heures (1926) de Alberto Cavalcanti, a sinfonia de uma cidade - Paris - de um cineasta que viria a ter uma influência determinante no General Post Office.

A segunda tradição está relacionada com as vanguardas artísticas europeias dos anos 20. Rotha chama-lhe tradição realista ou continental visto afirmar-se essencialmente no continente e não nas ilhas britânicas. Cabem nela filmes como Rien que les Heures (1926) de Alberto Cavalcanti, Berlim (1927) de Walther Ruttmann e A Ponte (1928) de Joris Ivens. A designação desta tendência não deixa de ser contraditória. Se estes filmes remetem para o quotidiano e, nesse sentido, são realistas, nem por isso, segundo Rotha, deixam de ser exemplos de arte pela arte e, portanto, sem relevância social. Ressalva, no entanto, a presença de alguns dos pressupostos do filme documentário no que ele tem de marginal face à produção, métodos e objetivos do cinema de estúdio.


A terceira tradição está associada aos cine-jornais ou newsreels, os quais, sendo uma consequência da extraordinária difusão do jornalismo no século XX, já eram regularmente exibidos com agrado do público desde 1908. Nesta linha cabem muitos dos chamados documentaire e travelogue das primeiras duas décadas do cinema. Mas, é a partir do trabalho de Dziga Vertov e do seu Kino-Pravda, no princípio dos anos 20, que melhor podem identificar-se vias de compromisso com o desenvolvimento do filme documentário (3). Esta terceira tendência valoriza a função informativa e confunde-se, por vezes, com o jornalismo. Sobre March of Time Paul Rotha diz haver finalmente “o reconhecimento das possibilidades do cinema informativo”. Adverte, no entanto, que newsreels e documentários são coisas diferentes embora admita que os trabalhos jornalísticos bem executados possam resultar em reportagens com lugar no quadro da identificação do documentário .


Turksib (1929) de Viktor A. Turin, sobre a construção do caminho de ferro entre o Turquestão e a Sibéria. O movimento documentarista britânico foi fortemente influenciado pelo cinema soviético dos anos 20. Turksib é um dos filmes editados pelo British Film Institute nas colecções do GPO.

A quarta tendência resulta da convivência do cinema com a propaganda. Utilizada para fins exclusivamente eclesiásticos e religiosos até ao século XIX a propaganda passou depois, sobretudo com o pensamento marxista, a ser sinónimo de disseminação política e ideológica. Foi a partir do contexto da Revolução de Outubro de 1917 que, segundo Rotha, se fizeram os avanços mais significativos quanto à evolução do documentário. Diz ele: “… onde quer que o cinema se encontre ao serviço do lucro tem tendência para se situar na esfera da tradição do estúdio, ao passo que o cinema ao serviço da propaganda e da persuasão tem sido largamente responsável pelo método do documentário”.


Em suma, as ideias de Grierson, Cavalcanti e Rotha, por esta ordem, e tantas vezes contraditórias, acabaram por funcionar como uma espécie de tela de fundo conceptual dos documentaristas britânicos. A par de incursões mais ou menos marcadamente institucionais, também procuraram expor os problemas das classes trabalhadoras. Um dos filmes que melhor expressa essa inclinação no GPO é Housing Problems (1935), por sinal uma encomenda da British Commercial Gas Association. Em contraponto surge Night Mail (1936).


Night Mail (1936) de Harry Watt e Basil Wright esteve meses em cartaz. Pat Jackson, um dos documentaristas de Grierson, afirmou que o filme conseguira vencer as expectativas negativas e a razão parecia-lhe evidente, como se depreende do seguinte desabafo: “Para o diabo com o comentário antiquado e a informação aborrecida. A ideia de enunciar factos é uma velharia. Não, não vamos enunciar factos, vamos disseminar situações. Vamos dizer o que temos para dizer através de sentimentos, expressões dos rostos das pessoas, risos, etc. ”.

This is the night mail crossing the border


A estreia de Night Mail de Harry Watt e Basil Wright no Arts Theatre de Cambridge, em 1936, foi um acontecimento invulgar. Já nessa altura, com a introdução do texto off influenciada pelos jornais cinematográficos, os documentários eram encarados como peças enfadonhas e pesadamente explicativas. Passavam nas salas em complemento do filme principal e não era incomum o público manifestar o seu descontentamento. Com Night Mail sucedeu o contrário.


O filme apresenta diversas inovações e não apenas no tratamento do som. A este nível, o do som, a sua eficácia reside na articulação de diferentes elementos: a música do famoso compositor Benjamin Britten, curtos diálogos, o som do comboio em andamento e, na parte final, o ritmo verbal e a sonoridade musical do poema de W. H. Auden que dá o título ao documentário e começa assim:


This is the night mail crossing the Border,

Bringing the cheque and the postal order,

Letters for the rich, letters for the poor,

The shop at the corner, the girl next door.

Pulling up Beattock, a steady climb:

The gradient's against her, but she's on time.

Past cotton-grass and moorland boulder

Shovelling white steam over her shoulder,

Snorting noisily as she passes

Silent miles of wind-bent grasses.

Birds turn their heads as she approaches,

Stare from bushes at her blank-faced coaches.

Sheep-dogs cannot turn her course;

They slumber on with paws across.

In the farm she passes no one wakes,

But a jug in a bedroom gently shakes.



Utilizado como contraponto do discurso visual o som favorece as mudanças de cena e sugere subtis inflexões no plano da narrativa, acentuando progressivamente a vertente poética. Não é explicada ao público através de uma voz off omnisciente, como já era hábito, nem a importância do comboio nem a relevância das tarefas desempenhadas pelos trabalhadores dos caminhos de ferro. A informação solicita a experiência estética, o olhar.


Para os teóricos formalistas russos contemporâneos do movimento documentarista britânico, a percepção estética era autotélica, ou seja, um fim em si mesma. Talvez isso possa explicar, pelo menos em parte, o êxito de Night Mail. Yuri N. Tynyanov, na linha de Saussure, entendia que o mundo visível é apresentado no cinema não como tal, mas na sua relação semântica, ou seja, como signo. Em Poetica Kino, que contou com a colaboração, entre outros, do próprio Tynyanov, Eikhenbaum e Shklovsky, essa tese é desenvolvida em termos da analogia entre a linguagem do filme e a linguagem da literatura .


O tema do filme é aparentemente prosaico: o comboio correio que unia Londres a Glasgow e as tarefas desempenhados pelos seus trabalhadores. Trata-se, porém, de um dos filmes mais complexos e interessantes do GPO. Este é o selo comemorativo do GPO. Fonte: Filatelia Temática

Tynyanov comparava a montagem à prosódia e via nela, bem como na iluminação e demais artifícios do cinema, a possibilidade de aceder à visibilidade do mundo real enquanto signo. Para ele, a sintaxe do filme tinha na poesia o seu modelo mais apropriado. Boris Eikhenbaum via esse modelo na prosa narrativa e remetia o cinema para uma espécie de discurso interior a si mesmo com potencialidades latentes de significação apenas concretizadas na esfera da percepção. Por esse motivo, foi sensível àquilo a que poderia chamar-se uma fenomenologia do espectador, mais tarde declinada em vários tons nos estudos comparados dos media, na metáfora do filme enquanto sonho, nas teorias cognitivas e na meta-psicologia do destinatário desenvolvida por Christian Metz.


Considerando o cinema como um sistema particular de linguagem figurativa, Eikhenbaum atribuía um papel determinante ao estilo na ligação dos planos em unidades de significação mais complexas - cine-frases -, podendo integrar figuras como a elipse, a metáfora e outras e, nessa medida, proporcionar uma experiência estética. Acreditando nas “inescapáveis convenções da arte” as teses formalistas eram, no entanto, antigramaticais visto não se preocuparem tanto com a observância das regras de articulação dos significantes quanto com a transgressão criadora na linha dos movimentos de avant-garde. Night Mail evita a ruptura discursiva, mas tem algo dessa atitude de vanguarda combinada com a presença de elementos da narrativa clássica, permitindo ao público reconhecer códigos familiares. Muitas cenas são, inclusivamente, recriadas a partir do estúdio, uma prática recorrente no documentário britânico.


Legenda: Boris Eikhenbaum, cujos trabalhos linguísticos iriam servir de modelo a estudos de semiótica do cinema. Fonte: WorldPress.com

Embora realizado por Harry Watt e Basil Wright, Night Mail parece um filme feito à medida de Cavalcanti como sugere a presença recorrente de sintagmas habituais nos filmes de ficção. Excluindo planos autónomos e inserts, nos 24 segmentos do filme há 16 sequências simples e quatro cenas, indício do predomínio da estrutura narrativa clássica e, portanto, da dominância do nível diegético. É neste contexto que o som, de um modo geral, e o comentário, em particular, servem de suporte à representação visual. Neste ponto poderia residir uma nota dissonante, posto que o comentário introduz habitualmente uma pluralidade textual que os filmes de ficção tendem a evitar. Mas tal não acontece em Night Mail, cujo comentário, como sublinha William Guynn, prima pela discrição. Desde logo, discrição quantitativa:


“Dos 240 planos que precedem a coda poética de W. H. Auden, apenas 33 comportam a palavra extra-diegética. Nos segmentos onde aparece, o comentário não substitui os elementos diegéticos. Nunca prevalece, salvo quando a imagem denota menor quantidade de informação, ou seja, nas sequências que representam a passagem do comboio pelas paisagens nocturnas (...). Mesmo aí o comentário nunca ocupa a totalidade do campo auditivo (...) convivendo na pista sonora com uma multiplicidade de outros sons que complementam a imagem de forma sistemática. A instância diegética obedece, portanto, ao princípio da continuidade, ainda que a instância discursiva seja intermitente”.


Basicamente, o comentário cumpre aqui três funções cuja complementaridade o afastam do comentário jornalístico. É narrativo, na medida em que faz avançar a acção, suprindo, por outro lado, a ocasional falta de informação da imagem. É exegético visto que usa a autoridade do saber para identificar elementos de cena presentes na imagem, mas insuficientemente inteligíveis. É iterativo, na expressão de Guynn, porque transcende, por via da repetição, a mera linearidade narrativa – a viagem do comboio – convocando uma conjuntura mais geral e abstrata, mais histórica, na medida em que o factual quotidiano surge como metáfora de um horizonte temporal mais alargado. Assim sendo, prevalece sempre a instância diegética, aliás, enfatizada através de sucessivas modulações do estatuto da palavra: os diálogos contemplam as subtilezas dialectais em contraste com a voz neutra do comentário adequada “à vacuidade que é o símbolo da autoridade e da verdade” e no final surge uma voz modulada para dizer o texto de Auden, que acentua a dimensão poética, afinal, dominante.



Rodagem de Night Mail. Fonte: Pinterest

And now, for the people who live in the slums


Igual impacto, não apenas junto do público, mas também entre os jornalistas e na classe política, teve Housing Problems. O filme, para a época, constituiu uma novidade. Segundo Arthur Elton, Housing Problems “é como uma reportagem televisiva, só que anterior à televisão, um filme pioneiro no uso da entrevista”. Basil Wright afirmou que os procedimentos de Ruby Grierson, John Taylor e Edgar Anstey, ao deslocarem para East London os seus equipamentos de captação de som e ao entrevistarem as pessoas que ali viviam, anteciparam o cinema-vérité. Anstey, um dos autores, argumentou que nunca ninguém até essa altura tinha exposto perante o público de uma forma tão crua a vida de pessoas segregadas cujos testemunhos, na primeira pessoa, permitiam que o filme se fosse fazendo por si próprio.


Sendo isto verdade, não é menos certo que Housing Problems tem um ponto de vista de compromisso. Patrocinado por uma companhia de gás desejosa de expandir o seu negócio contrapõe aos testemunhos dos habitantes das áreas degradadas depoimentos de pessoas realojadas no bairro modelo Lea View House, em Hackney, como que apontando um percurso exemplar, do desespero à esperança, com acesso às comodidades da vida moderna, gás incluído, naturalmente. Integrando imagens de arquivo de 1928 do Health Department de Bermondsey, em Londres, que lhe permitem fazer a ponte entre o antes e o depois, o filme faz passar, ainda assim, uma nota crítica ao associar a pobreza às condições sanitárias das populações e à responsabilidade dos poderes públicos.


O efeito de Housing Problems sobre os seus próprios protagonistas, alguns dos quais, como a senhora Gray, foram ao centro de Londres pela primeira vez nas suas vidas para a estreia do filme, parece ter sido o de lhes ter permitido adquirir maior consciência da sua situação, embora autores como Brian Winston contrariem esta ideia. Em todo o caso, a denúncia levada a cabo terá fomentado uma maior atenção aos problemas da habitação, inclusivamente através do apoio à realização de novos documentários sobre temas relacionadas com cidades, ordenamento e ambiente. Entre outros, são relevantes The Great Crusade: the story of a million homes (1937), feito pela Pathé por encomenda do Ministério da Saúde, uma produção de John Grierson intitulada The Smoke Menace (1937), Kensal House (1937) de Frank Sainsbury e um documentário de Paul Rotha, New Worlds for Old (1938).


Housing Problems (1935) de Ruby Grierson, John Taylor e Edgar Anstey. Fonte: MUBI

À semelhança de Night Mail, também Housing Problems adopta uma estrutura narrativa em três actos, neste caso antecedidos de uma introdução com imagens de habitações de bairros degradados acompanhadas de um comentário em voz off: “A great deal these days is written about the slums. This film is going to introduce to you to some of the people concerned. First, Councillor Lauder, Chairman of the Stepney Housing Committee, will tell you something of the problem of slum clearance”. Pela voz do especialista segue-se o retrato dos bairros degradados ilustrado com imagens de casas miseráveis.


O primeiro acto, que coloca o problema, vem depois. É constituído por um bloco de seis minutos – cerca de um terço do tempo total do filme – com testemunhos dos habitantes, todos eles introduzido em off pelo narrador: “And now, for the people who live in the slums. Here is Mr Norwwod”. E assim sucessivamente. Os moradores olham directamente para a câmara.


O segundo acto é institucional, do domínio da propaganda. O narrador contrapõe a descrição dos novos bairros às queixas ouvidas antes e o especialista regressa para legitimar a justeza das medidas preconizadas: “When a public authority embarks on slum clearance work, it must take people as they are. It is, however, our experience that if you provide people from the slums with decent homes they quickly respond to the improved conditions and keep their homes clean and tidy”.


O terceiro acto apresenta a solução do problema através de testemunhos de moradores realojados em habitações condignas, com o especialista a fazer notar, ainda assim, que o trabalho estava apenas iniciado. No final, vozes não identificadas falam sobre as más condições de habitação sobre imagens do quotidiano nas áreas degradadas, conferindo assim ao filme uma estrutura circular.




Apesar de ter sido a principal animadora de Housing Problems, Ruby Grierson não aparece nos créditos do filme, uma situação reveladora da subalternidade das mulheres. Nao foi caso único. Fonte: Girls on Top

Excerto de um texto de John Grierson sobre a irmã.

Ao contrário de Night Mail, essencialmente poético, Housing Problems é predominantemente jornalístico. Inspirado em March of Time, tem um texto off informativo, no qual a função fática da linguagem é recorrente nos depoimentos especializados. Tratando-se de um filme patrocinado e sendo a mensagem do patrocinador explícita houve quem, ironicamente, sugerisse a mudança do título para Housing Solutions. Visto agora este documentário poderá parecer datado. E está. Mas visto em contexto é revelador não só dos diferentes rumos do movimento documentarista britânico mas também das contradições que o marcaram. Referindo-se à figura tutelar de John Grierson, Edgar Anstey resumia assim esse universo contraditório:


“Suponho poder dizer que Grierson era basicamente um professor, um educador (...), ainda que fosse simultaneamente algo esquizofrénico quanto à separação do propósito social do documentário de uma qualquer declaração apaixonada sobre arte, palavra que ele nunca nos permitia pronunciar. Mas, por outro lado, se algum de nós fizesse alguma coisa que pudesse ser encarada fora do contexto artístico (...) fazia desabar toda a sua ira sobre o visado porque acreditava, como eu acredito, que apenas se pode comunicar através da arte ”.

Um debate que continua aberto


Este conflito, tipificado em torno de Night Mail e Housing Problems, é, afinal, um dos aspectos centrais do debate iniciado e aprofundado no movimento documentarista britânico, cujo eco continua presente. Rotha, sendo sensível a Night Mail, afirma que dele apenas guardou na memória a imagem do comboio ao longo do seu percurso. Tão pouco se recordava de qualquer outro protagonista que não o próprio comboio. Ora os tempos difíceis, segundo ele, apontavam para a urgência de mostrar a vida quotidiana de homens e mulheres na sociedade como ela era. É verdade que filmes como Housing Problems ou Smoking Menace procuravam fazê-lo. Faziam-no, porém, sob a influência de March of Time, sem atender ao rigor da forma nem cuidar da dimensão estética. Na segunda edição de Documentary Film, escreveu:


“Ao adoptar a exposição dos factos num estilo jornalístico, um filme como The Smoking Menace demonstrou negligenciar a importância visual do medium. Utilizou as imagens como mera ilustração do comentário, aqui e além alternando com entrevistas, o que nada tinha a ver com a beleza pictórica da fotografia habitualmente associada ao documentário. A fórmula, porque era disso que se tratava, acabou por limitar a intervenção do realizador e do seu estilo pessoal”.




(Continua)


Notas remissivas


1. Nota do Autor: sobre esta questão ver neste blogue artigos 1 e 2 sobre o Movimento Documentarista Britânico.

2. Nota do Autor: para um melhor conhecimento sobre a tradição do documentário segundo Paul Rotha ler no segmento de Cinema deste blogue: Cinema informativo, reportagem e documentário. Os primeiros anos: encontros, desencontros e derivas.

3. Nota do Autor: sobre esta questão há abundante informação neste blogue. Ver, por exemplo, Newsreels, documentário e Buster Keaton: os anos de ouro das atualidades cinematográficas e O Cine-Olho, o Cine-Punho e o Homem Novo (anos 20, séc. XX).


Bibliografia


AITKEN, Ian – The Documentary Film Movement - An Anthology, Edited and Introduced by Ian Aitken, Edinburgh University Press, Edinburgh, 1998.

ARNHEIM, Rudolf – Film as Art, Faber, London, 1957.

- A Arte do Cinema, Edições 70, Lisboa, 1989.

BARNOUW, Erik – El Documental – Historia y estilo, Editorial Gedisa, Barcelona, 1996.

BARSAM, Richard M. – Non-Fiction Film, a Critical History, Indiana University Press, Bloomington and Indianapolis, 1992.

ELLIS, Jack C. – John Grierson: A Guide to References and Resources, G. K. Hall, Boston, 1986.

- The Documentary Idea - A Critical History of English-Language Documentary Film and Video, Prentice Hall, New Jersey, 1989.

GRIERSON, John – Grierson on Documentary, Forsyth Hardy, University of California Press, Berkeley and Los Angeles, 1966.

Grierson on Documentary, ed. Forsyth Hardy, Faber and Faber, London and Boston, 1966.

LIPPMANN, Walter – Public Opinion, MacMillan, New York, 1921.

ROTHA, Paul – Documentary Film, Faber and Faber, London, 1952.

- Documentary Diary, Hill and Wang, New York, 1973.

- Television in the Making, edited by Paul Rotha, The Focal Press, London and New York, 1956.

SUSSEX, Elisabeth – The Rise and Fall of British Documentary, University of California Press, Berkeley, Los Angeles, London, 1975.





1.031 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page