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CULTURA

  • Foto do escritorJorge Campos

Pare Lorentz, cineasta de Roosevelt: The River (1938)

Atualizado: 22 de out. de 2023


The River (1938) de Pare Lorentz é um daqueles documentários de que já quase ninguém se lembra. É pena. Há muito a dizer sobre ele. E a aprender. Até porque sendo o tema bastante prosaico, a recuperação do vale do Mississipi no quadro do New Deal, o filme acaba por se revelar a vários títulos exemplar, designadamente, por permitir recuperar uma época em que a América progressista se confrontou com uma outra América conservadora e violentamente encarniçada contra a política do Presidente Roosevelt. A tal ponto que partidários do New Deal viriam a ser acossados anos a fio até ao culminar persecutório daquilo que foi a infame caça à bruxas do senador Joseph McCarthy. Mas, para além da questão política e social, cuja atualidade viria a ser estrondosamente confirmada, por exemplo, através das incidências resultantes da administração Trump, The River é, por si só, um objecto singularíssimo, na verdade, um desafio à teoria do documentário como adiante se verá.


Pare Lorentz

O então jovem Pare Lorentz, escritor, jornalista e crítico de cinema, era um entusiasta do New Deal e uma daquelas pessoas com acesso directo a um Presidente cujas preocupações políticas eram indissociáveis de uma aguda sensibilidade cultural. É bom lembrar que Roosevelt não estava apenas empenhado em recuperar o país da devastação causada pela Grande Depressão de 1929. Era também confrontado com uma fortíssima corrente isolacionista, na qual se alinhava, além da maioria dos republicanos e até alguns democratas, uma extrema-direita onde tanto cabiam os surpremacistas brancos do Ku Klux Klan quanto simpatizantes de Hitler como o famoso aviador Charles Lindbergh.


Daí a importância atribuída ao combate simbólico levando, inclusivamente, o estado a intervir em áreas onde habitualmente não tinha presença como o cinema. Quando hoje somos confrontados com objetos como os filmes de Pare Lorentz, Joris Ivens ou Robert Flaherty feitos nesse contexto ou com as extraordinárias fotografias daqueles que registaram os sinais do tempo nessa América de Grapes of Wrath de John Steinbeck, percebemos a razão pela qual a uma estética corresponde sempre uma ética, um código de conduta, em suma, uma opção política.


Pare Lorentz

Pare Lorentz e o Dust Bowl


O filme documentário americano financiado pelo Estado começou com um atraso de sete anos em relação ao Reino Unido tendo sido sempre condicionado por uma conjuntura diferente. No Reino Unido, a produção estava centralizada em Londres de onde saíam numerosos filmes destinados à exibição quer nas salas quer nos circuitos alternativos impulsionados por John Grierson. Na América, quando por volta de 1937 começaram a fazer-se filmes no âmbito das políticas do New Deal, havia três centros de produção cinematográfica cujas lógicas eram antagónicas. Em Los Angeles, a produção centrada em Hollywood nada tinha a ver com o documentário. Em Nova Iorque encontravam-se os cineastas mais radicais que faziam newsreels e fitas independentes concebidas para a luta política anti-fascista. E em Washington havia os documentários governamentais sob a tutela de Pare Lorentz.


Neste último caso, a produção fazia parte de uma campanha de relações públicas posta em marcha pelo governo com o intuito de manter o povo americano informado sobre os programas do New Deal através dos quais procurava responder à crise económica e ao desemprego resultantes da Grande Depressão. Para o efeito, o governo começou por patrocinar campanhas na rádio e apelar à colaboração de alguns dos mais importantes fotógrafos americanos, entre os quais Walker Evans, Dorothea Lange, Russel Lee, Carl Mydans e Ben Shahn, que produziram uma impressionante galeria de imagens associada à questão social. Um pouco mais tarde, inspirado pelo movimento documentarista britânico, numa tentativa de atingir um público mais vasto, o governo decidiu apoiar a produção de filmes.


A campanha foi tutelada pela Resettlement Administration à frente da qual estava o sub-secretário da Agricultura, Rexford Guy Tugwell. Criada para desenvolver projectos de índole social a favor dos pobres do campo e das cidades, a Resettlement Administrativa pretendia, designadamente, fundar novas comunidades com base na utilização racional dos recursos. Tugwell escolheu Pare Lorentz para consultor da produção cinematográfica associada a esta causa. Sendo um indefectível de Roosevelt, Lorentz entendia que o governo tinha o direito de utilizar o filme para informar e educar de um modo que, a seu ver, nem o cinema comercial nem newsreels como March of Time podiam fazer. (Nota: Ver neste blogue em Cinema Newsreels, documentário e Buster Keaton: os anos de ouro das atualidades cinematográficas)


The Plow That Broke the Plains (1936) de Pare Lorentz

Numa altura em que entre os documentaristas britânicos se acentuavam as clivagens entre quem se repartia por abordagens mais jornalísticas ou abordagens mais poéticas, Lorentz, apesar de ser ele próprio um jornalista, inclinava-se para um tipo de trabalho próximo destas últimas tomando como referência os filmes de Flaherty e documentários como Night Mail (1935) de Harry Watt e Basil Wright.


O seu primeiro filme The Plow That Broke the Plains (1936) resultou de uma ideia que tentara vender aos estúdios de Hollywood no ano anterior. Mas Hollywood não parecia ter interesse em afastar-se da lógica do entretenimento, apesar de cultivar um género relativamente marginal como o film noir onde os problemas sociais da América serviam muitas vezes de pano de fundo. Lorentz ganhara reputação como crítico de cinema em revistas como a Vanity Fair, Fortune, Harper’s, Forum e Scribner’s mostrando-se particularmente sensível ao papel da música nos filmes.


Em 1930, em colaboração com Morris Ernst, publicara Censored: The Private Life of the Movies, livro no qual atacava Will Hays – o autor do código Hays que introduzira a censura propondo-se zelar pela moral puritana – ao divulgar uma extensa lista de cenas cortadas em películas exibidas nos Estados Unidos. O livro terá certamente contribuído para a relação de conflito que ao longo da vida iria manteve com Hollywood. Publicou depois outras obras, mas a verdade é que, apesar de um currículo respeitável, quando deu início ao seu primeiro filme The Plow That Broke the Plains não tinha qualquer experiência de realização cinematográfica.


Willard Van Dyke, um dos directores de fotografia contratados por Pare Lorentz, que mais tarde faria o extraordinário The City (1939), um filme socialista.

Para a rodagem Lorentz contratou algumas das figuras mais importantes da esquerda cultural de Nova Iorque tais como Paul Strand, Ralph Steiner e Leo Hurwitz. Todos eles tinham tido ligações à Film and Photo League, cujo alinhamento ideológico à esquerda era sobejamente conhecido. O filme deveria tratar do problema da desertificação de uma vasta região afectada por tempestades de areia na zona central dos Estados Unidos, do Alasca ao Texas, conhecida por Dust Bowl. Os três fotógrafos, alegando falta de indicações de Lorentz, que permanecera em Washington, fizeram uma interpretação do assunto segundo a qual os problemas sociais e a devastação da terra eram devidos à exploração capitalista, um ponto de vista incompatível com o intuito de Lorentz e do governo americano.


De qualquer modo, com o apoio do montador Leo Zochling, Lorentz começou a reunir as imagens e a redigir o que viria a ser o comentário de The Plow That Broke the Plains, entregando a composição musical a Virgil Thompson. Elogiado pela crítica o filme viria a transformar-se numa espécie de bandeira do novo documentário americano, embora tivesse sido visto por um público relativamente reduzido. Ao contrário de Grierson, que tinha o hábito de acautelar a distribuição, Lorentz supunha poder assegurá-la caso a qualidade da obra se impusesse. Do ponto de vista institucional, porém, não fazia parte da tradição americana a produção de documentários financiados pelo estado e dirigidos ao público em geral. Os ministérios, sobretudo os que lidavam com os problemas mais complexos, como eram os casos da Agricultura, Interior e Guerra, tinham produção própria, mas os seus filmes não eram destinados ao grande público e muito menos era suposto serem exibidos nas salas comerciais.



New Deal e Cinema


De 1920 a 1935 foram produzidos por 22 agências governamentais mais de 400 filmes, na sua maioria de carácter educativo. Quando se faz o balanço dessa produção, apesar do inequívoco interesse histórico-documental, a verdade é que em termos de qualidade cinematográfica raramente é citado outro filme para além de Hands (1934), um documentário de apenas 4’00” de Ralph Steiner e Willard Van Dyke. Lorentz entendia ser necessário inverter essa tendência recomendando à tutela que fizesse filmes a pensar numa exibição alargada. Segundo ele, “os filmes governamentais deviam ter qualidade técnica e capacidade de atracção de público semelhantes aos filmes comerciais”. O lobby de Hollywood não gostou. Cerrou fileiras e encarou a recomendação como um atentado às regras da concorrência o que, associado ao episódio Hays, poderá explicar o boicote mais ou menos dissimulado à exibição nas salas The Plow That Broke the Plains.


Em contrapartida, sessões privadas convocadas por Pare Lorentz, Virgil Thomson e outros colaboradores com o apoio da imprensa progressista permitiram criar um movimento de opinião que levou o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque ( MoMA) a patrocinar uma programação de documentários no Mayflower Hotel, em Washington, da qual constavam, a par de diversos filmes europeus, The Plow That Broke the Plains. Entre os convidados encontravam-se membros do corpo diplomático e elementos do staff da Casa Branca. Uma parte significativa da crítica acabou por elogiar o filme, chamando a atenção, inclusivamente, para a importância de um tipo de cinema praticamente desconhecido do grande público.


Hands (1934) de Ralph Steiner e Willard Van Dyke

De nada valeu. A maioria dos distribuidores reincidiu na recusa de exibição alegando tratar-se de propaganda governamental. Na antecâmara da campanha presidencial de 1936 dirimida entre Roosevelt e o governador do Kansas Alf Landom, que se antevia particularmente agreste, os republicanos, bem como a extrema-direita, argumentaram que The Plow That Broke the Plains era apenas uma peça eleitoral dos partidários do New Deal. O filme entrou, assim, na luta política desencadeando reacções tão apaixonadas quanto absurdas. Em Pare Lorentz and the Documentary Film, Robert S. Snyder cita um distribuidor: “Este filme se tivesse sido feito por uma companhia privada era um documentário. Tendo sido feito pelo governo é propaganda”.


Desiludido com o rumo dos acontecimentos, obrigado a pagar do seu bolso a maior parte do investimento feito – no desconhecimento das condições de produção pedira apenas seis mil dólares para fazer um filme que viria a custar 20 mil –, Lorentz preparava-se para se demitir das suas funções quando Tugwell lhe propôs a realização de um projecto sobre a história do rio Mississipi e o trabalho da Tennessee Valley Authority.


Roosevelt fora, entretanto, reeleito com margem esmagadora e a Resettlement Administration dera lugar à Farm Security Administration. A Casa Branca, apesar da resistência de alguns ministérios, estava convencida da importância de prosseguir a política de cinema público e reservara uma verba de 50 mil dólares para fazer The River, aconselhando a contratação de um gestor financeiro…


The River de Pare Lorentz estreou no Strand Theatre de New Orleans a 29 de Outubro de 1937. Lorentz receava a reacção do público do sul. Uns dias depois recebeu um telegrama do director da sala, no qual se afirmava: “Reaction was wonderful. I personally contacted several hundred of those people after premiere. They congratulated me for being able to bring film of that nature to my screen. Nineteen schools of the city had a representative from their history class to see River. Also showed Rivers (sic) to some 20,000 patrons. Audience reaction great. The public needs more history shorts like The River”.

The River (1938) viria a ser um dos filmes mais influentes na história do cinema documental americano, cuja tradição, até então, se limitava a Robert Flaherty, à dupla Merian C. Cooper e Ernest Shoedsack e a incursões mais experimentais, essas, sim, em número razoável, envolvendo nomes como Ralph Steinar e Paul Strand. Em contrapartida, o documentário aparecia indevidamente associado a newsreels como March of Time, mas pertinentemente associado à fotografia, à rádio e até ao teatro, nomeadamente pela mão de Joseph Losey.


Films of Merit


Lorentz defendia um tipo de filme simultaneamente dramático, informativo e persuasivo, mas distanciara-se já das posições de Grierson, cujos pressupostos considerava demasiado escolares. Por isso, e também devido à imprecisão do valor de uso da palavra documentário no campo dos media, passou a designar por filmes de mérito - Films of Merit - os trabalhos levados a cabo no âmbito das suas funções à frente do United States Film Service criado em 1938.


The River foi realizado em circunstâncias peculiares. Com a rodagem em curso, o plano inicial foi sendo alterado devido a situações imprevistas, como as grandes cheias do Mississipi, que obrigaram os operadores de câmara Floyd Crosby, Stacey Woodard e Willard Van Dyke a desdobrarem-se em múltiplas novas iniciativas. Ao mesmo tempo, em Washington, à medida que o material ia chegando, sob a supervisão de Lorentz, eram editados blocos de sequências cotejados com arranjos da partitura musical de Virgil Thomson executados ao piano.


Virgil Thomson, o criador das partituras musicais para The Plow That Broke The Plains e The River. Foto: Carl Van Vechten

The River foi assim ganhando expressão num registo de work in progress. Gilbert Seldes, que assistiu a uma das primeiras exibições, escreveu na Scribner’s de Janeiro de 1938 que Lorentz teria organizado as componentes do filme (imagem, voz e música) à semelhança do que Walt Dysney fazia com os seus cartoons, esclarecendo: “A narração foi gravada sem ver a fita; o mesmo aconteceu com a música; então, Lorentz juntou tudo e ajustou os níveis da música e da voz. O resultado é magnífico”. De facto, o filme – apesar da sua estrutura atípica marcada pela predominância de sintagmas em chaveta, o que faz depender a narrativa fundamentalmente do ritmo musical do texto poético associado à utilização simultaneamente descritiva e impressionista da música – é um marco na história do cinema americano. Os procedimentos, porém, foram bastante mais complexos do que Seldes deixa entender.


Virgil Thompson foi, na realidade, muito interactivo com Lorentz na superação dos sucessivos imprevistos. A singularidade de The River resulta em grande parte das soluções que ambos foram encontrando. Mas o argumento, superiormente elaborado - na verdade.o script era o poema -, acabaria por ser quase integralmente vertido em voice over o que colocou problemas complexos à montagem para escapar à lógica da mera ilustração.


Thomas Hardie Chalmers, ex-primeiro barítono da Boston National Opera Company e da Century Opera Company, a voz de The Plow That Broke The Plains e The River

No prólogo pode ler-se: "This is the story of a river, a record of the Mississippi, where it comes from, wheee it goes, what it has meant to us and what it nas cost us”. O filme começa com imagens impressivas de nuvens, montanhas e neblinas para depois mostrar a água dos picos gelados da montanha. A presença da água vai sendo cada vez mais evidente à medida que aumenta a escala dos planos e vamos tendo a noção da imensidão do Mississipi. Essa imensidão é sublinhada pela recitação de Chalmers. Veja-se a construção do texto, a qual permite entrar na atmosfera do filme. O início:


From as far West as Idaho,

Down from the glacier peaks of the Rockies;

From as far East as Pennsylvania,

Down from the turkey ridges of the Alleghanies;

Down from Minnesota, twenty-five hundred miles,

The Mississippi River runs to the Gulf.

Carrying every drop of water that flows down two-thirds of the continent;

Carrying every brook and rill, Rivulet and creek—

Carrying all the rivers that run down two-thirds of the continent—

The Mississippi runs to the Gulf of Mexico.

Down the Yellowstone, the Milk, the White and the Cheyenne;

The Cannonball, the Musselshell, the James and the Sioux;

Down the Judity, the Grand, the Osage and the Platte;

The Skunk, the Salt, the Black and Minnesota;

Down the Rock, the Illinois and the Kankakee,

The Allegheny, the Monongahela, Kanawha and Muskingum;

Down the Miami, the Wabash, the Licking and the Green,

The Cumberland, the Kentucky and the Tennessee;

Down the Ouchita, the Wichita, the Red and Yazoo;

Down the Missouri three thousand miles from the Rockies;

Down the Ohio a thousand miles from the the Alleghenies;

Down the Arkansas fifteen hundred miles from the Great Divide;

Down the Red, a thousand miles from Texas;

Down the great Valley, twenty-five hundred miles from Minnesota;

Carrying every rivulet and brook, creek and rill,

Carrying all the rivers that run down two-thirds of the continent,

The Mississippi runs to the Gulf.


Fonte: Pare Lorentz, The River - Photography Books

A citação é longa mas este filme não existiria sem a palavra, ora lenta ora acelerada, numa cadência rítmica por vezes avassaladora tal como a corrente do rio em direcção ao estuário onde no final irá desaguar em forma de conclusão. quando a voz de Thomas Chalmers se espraia nos últimos versos.


Um fade out a negro abre para uma poderosa imagem em contra-picado, um lavrador em contra-luz com o seu arado recortado num céu carregado de nuvens a perder de vista. O plano é longo. Multiplicam-se as imagens de homens e animais a lavrar a terra como se de um ritual sem tempo se tratasse. O homem e a paisagem, a paisagem e o homem. Simbiose, assim deveria ser. Mas não é. Porque a história da ocupação do Mississipi é simultaneamente a epopeia do esforço do homem e a devastação de recursos a que essa mesma ocupação deu lugar. Os dados convergem sempre no sentido de deles se extrair uma ideia chave. O texto é circular, reiterativo. A intervenção humana, levada a cabo durante períodos dilatados de tempos, é recorrentemente destruidora. Os seus efeitos fazem sentir-se mesmo em áreas geográficas distantes. No Vale do Mississipi foram construídos diques ao longo de séculos mas as águas do rio amiúde transbordam muito para além do limite das margens dando origem a infindáveis lamaçais como aquele que vai do Golfo do México até à boca do Ohio.


Vemos imagens do rio, das grandes barcaças que aportam junto das plantações para carregarem o algodão com destino à Europa, a todas as partes do mundo. Nos campos há trabalhadores rurais vergados ao peso das tarefas quotidianas. Não há vestígios de uma crítica social explícita. Apenas a constatação de que, ao contrário do que seria desejável, nem o homem revertera em paisagem nem a paisagem se fizera mais humana. Pelo contrário. Pare Lorentz vai dando sinais desse divórcio cujas consequências se adivinham catastróficas. E, contudo, o rio e os seus recursos, apesar de mal explorados, são praticamente inesgotáveis.


"Ten million bales down to the Gulf - Cotton for the spools of England and France./ Fifteen million bales down to the Gulf - Cotton for the spools of Italy and Germany." Fonte: Pare Lorentz, The River - Photography Books

Na verdade, o Mississipi é a metáfora de uma América a tentar sair da Grande Depressão, confrontada com uma tarefa gigantesca, animada do desejo patriótico de superar as dificuldades que encontrou no New Deal a melhor resposta. Da recitação do texto, cuja musicalidade amplia a ressonância poética das imagens, desprende-se um sentido de missão ao qual Pare Lorentz não seria certamente alheio. As marcas de enunciação tornam-se progressivamente mais complexas. A montagem ganha dinamismo jogando com o movimento dentro do quadro, tirando partido das linhas de perspectiva sugeridas pelas formas e engrenagens dos navios que sulcam o rio e acostam nas suas margens de modo a criar a ilusão de uma espécie de ballet mecânico.


A música de Thompson é fundamental. Épica quando glorifica e dramatiza a natureza, como um rumor, evocando o folk tradicional, quando trata da paisagem humana na sua vulnerabilidade face a forças que não controla. O pêndulo da narrativa balança entre contrários. Como foi possível tamanha riqueza ter sido tão sistematicamente delapidada? Tanto algodão cultivado até à exaustão do solo, porquê? E, para mais, houve uma guerra que deixou marcas, a Guerra da Secessão:


We fought a war.

We fought a war and kept the west bank

of the river free of slavery forever.

But we left the old South impoverished

and stricken.

Doubly stricken, because, beyond the tragedy of

war, already the frenzied cotton cultivation of a quarter of a century

had taken toll of the land.

We mined the soil for cotton until it would

yield no more, and then moved west.

We fought a war, but there was a

tragedy - the tragedy of land twice

impoverished.


Atente-se: “We fought a war, but there was a double tragedy…the tragedy of land twice impoverished”.


Imaginário da Grande Depressão, Walker Evans

Imaginário da Grande Depressão, Dorothea Lange

Por alguma razão o texto de Lorentz faz lembrar a poesia de Walt Whitman. Está longe da prática de newsreels como March of Time. De tal forma que o script de The River foi proposto para o Prémio Pulitzer de Poesia de 1938. Ao dele tomar conhecimento, James Joyce disse ser do melhor que lera nos últimos 10 anos. Até então, apenas as experiências de som de Alberto Cavalcanti em colaboração com W. H. Auden e Benjamin Britten no movimento documentarista britânico tinham prosseguido uma via semelhante. Lorentz, porém, criou um dispositivo diferenciado. Nos seus filmes se há a influência de Flaherty pouco resta das vanguardas artísticas da Europa. Tão pouco há o recurso à gravação de som directo nem à entrevista como em Housing Problems (1935) de Edgar Anstley e Arthur Elton.


É, de resto, significativo que Lorentz tenha mostrado a Paul Rotha, então na América, um rough cut de The River a pretexto de recolher sugestões que eventualmente pudessem ter cabimento na versão final. Embora mostrando o seu apreço por The River, Rotha terá feito notar haver falta de presença sonora para efeito da caracterização do elemento humano mas que isso poderia ser facilmente ultrapassado com uma nova gravação. Nenhum dos comentários do cineasta britânico foi tido em consideração. (Nota: ver neste blogue no segmento de Cinema os artigos sobre o movimento documentarista britânico)


Mais à frente, aparecem imagens impressionantes da exploração florestal no Mississipi, árvores gigantescas abatidas, milhares de troncos levados pelo caudal para serem recuperados junto das cidades ribeirinhas onde prospera a indústria da madeira. Diz Lorentz:


We built a hundred cities and a thousand towns:

St. Paul and Minneapolis,

Davenport and Keokuk,

Moline and Quincy,

Cincinnati and St. Louis,

Omaha and Kansas City . . .

Across to the rockies and down from Minnesota,

Twenty-five hundred miles to New Orleans,

We built a new continent.


Fonte: Pare Lorentz, The River - Photography Books

A vertente conotativa do texto estimula imagens mentais que complementam a imagem no ecrã. Em determinadas situações o dispositivo funciona até ser atingido um clima emocional a partir do qual é operado um ponto de viragem na narrativa. Quando, depois de falar das árvores abatidas, Lorentz conclui “We built a hundred cities and a thousand towns.../But at what a cost!” a imagem no ecrã da destruição levada a cabo contrasta com sequências anteriores das grandes cidades construídas ao longo do Mississipi, o que permite amplificar e dramatizar o conteúdo da mensagem: “We built a new continent”. É certo. Mas a que custo. Porque o desastre ambiental traz consigo as terríveis cheias que ano após ano ceifam centenas de vidas e deixam milhares de pessoas na miséria:

The water comes downhill, spring and fall

Down from the cut-over mountains,

Down from the ploughed-off slopes

Down every brook and rill, rivulet and creek,

Carrying every drop of water that flows down two-thirds the continent”,


e seguem-se as datas de inundações cujos efeitos catastróficos são plasmados no ecrã. Thomas Chalmers recita o texto pausadamente, valorizando cada palavra. A câmara faz panorâmicas lentas sobre terras calcinadas, lamaçais, raízes expostas e despojos de tudo o que outrora permitira o equilíbrio ambiental. As gotas de água vão dando lugar ao dilúvio enquanto o rio sobe em toda a imensa vastidão do seu leito. Ouvem-se sirenes de alerta. Apelos de urgência. A música anuncia já a catástrofe. A voz de Chalmers sobe de tom:


River rising.

Helena: river rising.

Memphis: river rising.

Cairo: River rising…


The River (1938) de Pare Lorentz

The River e a “expressão documentário”


Mobilizam-se os meios de apoio e socorro às vítimas. Se, por um lado, se deplora a falta de planeamento que conduziu a tal emergência, por outro, convoca-se a capacidade de realização dos concidadãos, o seu patriotismo, para efeito de encontrar não apenas as soluções para o momento, mas, também, as soluções para o futuro. O apelo patriótico exige a emoção. Em Documentary Expression and Thierties America, a obra clássica de William Stott, faz-se referência à “expressão documentário”. Diz Stott: “Há duas espécies de documentos, ou duas tendências no documentário. A primeira, a mais comum, fornece informação ao intelecto. A segunda apela às emoções”. Ora, a emoção, neste caso, permite ver melhor: é inteligência. Daí que um dos artifícios literários do texto seja a utilização sistemática da repetição, a qual, no entanto, acrescenta sempre algo de novo:


Last time we held the levees,

But the old river claimed her valley…

She left stock drowned, houses torn loose,

Farms ruined”.


A “expressão documentário” de Stott tem ainda um outro elemento distintivo, a consciência social. Nos anos 30, conheceu diversas declinações. Por exemplo, Grapes of Wrath de John Steinbeck, no entender do escritor e crítico marxista Granville Hicks, sendo uma obra literária, poderia ser considerado um documentário em razão da importância que teve na consciencialização dos problemas dos trabalhadores atirados para a miséria pelo colapso bolsista. Por seu turno, o fotojornalista do New York Times Arthur Siegel disse que Lewis Hine definiu com clareza a atitude perante o documentário quando disse “querer mostrar as coisas que tinham de ser corrigidas”.


The River (1938) de Pare Lorentz

A iconografia de The Plow That Broke the Plains ou The River não será a mesma de Power and the Land (1940) de Joris Ivens ou Our Daily Bread (1934) de King Vidor. Tão pouco se aproxima das fotografias dos deserdados de Walker Evans, das figuras, paisagens e terras a perder de vista de Dorothea Lange, dos tipos humanos de Margaret Bourke-White ou Arthur Rothstein. Mas persegue igualmente o propósito de ajudar a resolver problemas. Na verdade, sente-se nos filmes de Lorentz a presença de um imaginário feito de múltiplos ecos que tanto atravessa obra de outros cineastas e fotógrafos quanto se alarga a Steinbeck, Erskine Caldwell ou John dos Passos, passando por vozes como a de Thomas Chalmers capazes de funcionar enquanto elemento de regulação dramática. Tudo isto faz de The River um filme tipicamente americano


Power and the Land (1940) de Joris Ivens
Our Daily Bread (1934) de King Visor

Aliás, a própria história do script é reveladora. O script resultou de um artigo escrito para a McCall’s, onde, na altura, Lorentz fazia crítica de cinema. Tendo acompanhado parte das filmagens das cheias do Mississipi, Lorentz foi solicitado pelo editor da revista no sentido de escrever um artigo sobre aquilo a que assistira. Redigiu uma reportagem jornalística de cinco mil palavras, na qual, segundo ele próprio, havia informação e números a mais. Ocorreu-lhe então dar menos informação e mais dramatização, construindo um novo texto, lírico. Otis L. Wise, o editor da McCall’s, optou por publicar este segundo texto, escrito durante um fim de semana. O artigo deu origem a um pedido adicional de 150 mil cópias da revista por parte dos leitores. Lorentz ficou assim convencido a utilizá-lo, com algumas pequenas alterações, no seu filme.


Voltando ao texto. A parte final dos primeiros 25 minutos de The River resume todas as contradições da ocupação do vale:


For fifty years we dug for cotton and moved West when the land gave out.

For fifty years we plowed for corn, and moved on when the land gave out…

…we planted and plowed with no thought for the future…


A conclusão:

And poor land makes poor people.

Poor people make poor land”.


Em suma, como foi possível criar uma situação de pobreza tão gritante no maior e mais rico vale do mundo?


The End? Não.


The River (1938) de Pare Lorentz

The River tem 31’ 00” e os seis minutos finais parecem pertencer a outro filme. A má qualidade das imagens, muitas das quais recuperadas de arquivos, bem como a longa exposição de gráficos, contrastam com os primeiros vinte e cinco minutos. O texto perde a dimensão poética e mais parece um relatório oficial sobre as acções desenvolvidas pelo governo para recuperar o vale do Mississipi, realojar as populações em localidades modelo e restabelecer o equilíbrio ambiental. Um exemplo:


(…) Next came the Wheeler, first in a series of great barriers that will

transform the old Tennessee into a link of fresh water pools locked and

dammed, regulated and controlled, down six hundred fifty miles to Paducah. (…)

The CCC, working with the forest service and agricultural experts, have

started to put the worn fields and hillsides back together; black walnut and

pine for the worn out fields, and the gullied hillsides; black walnut and pine

for new forest preserves, roots for the cut-over and burned-out hillsides;

roots to hold water in the ground. (…) Today a million acres of land in the Tennessee Valley are being tilled

scientifically.


Reportando às funções da linguagem de Roman Jakobson dir-se-ia que a função expressiva da linguagem é substituída pela função referencial. A voz abandona a leitura encantatória do verso livre para assumir o tom protocolar da leitura de um boletim oficial. Há motivos para que tal tenha acontecido.


Um filme sem ficção do real, contudo, um documentário


Ao contrário do que sucedera com o seu filme anterior, desta vez Lorentz tomou medidas tendo em vista a distribuição. Não só beneficiou do apoio pessoal do Presidente Roosevelt, mas também de uma crítica favorável que ultrapassou qualquer reacção anterior a um documentário. The River tornou-se assim num foco de atenção, atraindo um público tão vasto quanto o dos filmes bem sucedidos de Hollywood. Para mais, premiado no Festival de Veneza em Agosto de 1938, onde esteve em competição com Olimpíada, de Leni Riefenstahl, viria a tornar-se num símbolo democrático no contexto de um mundo confrontado com o fascismo que se encaminhava inexoravelmente para a guerra. Este sucesso fez com que o filme fosse exibido com regularidade durante anos – ainda hoje faz parte dos programas de diversas escolas americanas sendo recorrentemente exibido e comentado. Mas, devido à circunstância que lhe deu origem, enquanto o programa da Tennessee Valley Authority foi sendo implementado, a parte final foi sendo regularmente alterada de modo a reflectir os progressos da reabilitação do vale do Mississipi.


Fonte: Pare Lorentz, The River - Photography Books

Na perspetiva da cadeia sintagmática, tal como foi pensada por Christian Metz, a estrutura de The River afasta-se em tudo da narrativa clássica. Nessa medida, afasta-se radicalmente de qualquer intuito de ficção do real. Metz distingue diversos tipos de elementos no filme enquanto tecido textual, um conjunto de unidades de significação - ou elementos linguísticos - aos quais chama sintagmas. Estes comportam diferentes graus de complexidade e como que encaixam uns nos outros de forma organizada até chegar à forma-filme, ou seja, o filme concluído. Assim sendo, o sintagma máximo que a linguagem cinematográfica permite será, afinal, o próprio filme. Pelo contrário, o sintagma em chaveta - acronológico, não-narrativo e desprovido de estrutura específica - é o de menor complexidade sendo muitas vezes utilizado como sutura ou mero recurso para resolver um problema narrativo. Raramente é utilizado no cinema clássico de ficção.


Dito isto, e sem entrar em detalhes, The River tem cinco sequências simples, três sintagmas descritivos, seis inserts, um sintagma alternado e treze sintagmas em chaveta, o que corresponde, neste último caso, a mais de metade do encadeamento fílmico. Não tem nem planos autónomos, nem sintagmas paralelos, nem cenas e sequências por episódios. Ora, obviamente, quando escasseiam os sintagmas narrativos - cruciais para o encadeamento lógico no cinema de ficção - tende a aumentar o número de sintagmas em chaveta. Como tal, ao nível da banda imagem, seria de esperar encontrar em The River ou os signos de uma desagregação textual ou os signos visíveis de uma outra ordem que suplanta a sequencialidade narrativa. Autor de The Cinema of Nonfiction, William Guynn sugere:


“Quando nos referimos a um filme como sendo ‘narrativo’, estamos a pensar antes de mais, na preponderância da narração aos níveis mais elevados do texto, ou seja, nas suas grandes unidades sintagmáticas. Os flmes documentários ‘narrativos’ assemelham-se aos filmes de ficção na medida em que os seus argumentos tomam a forma do desenrolar de uma história. Os filmes que identificamos como não-narrativos não são filmes sem narratividade; são antes filmes cujos elementos narrativos estão confinados às unidades sintagmáticas mais pequenas. Em tais filmes, uma outra voz, muitas vezes didáctica, afirma o seu poder sobre a organização do texto”.



É o que até certo ponto sucede em The River. Ainda que sendo difícil distinguir os sintagmas narrativos dos sintagmas em chaveta, a ideia prevalecente da análise dos diversos segmentos do filme torna evidente que a organização das imagens não obedece a uma lógica interna, só ganhando sentido em função do texto e da partitura musical. Contudo, é justamente esse dispositivo que torna The River um filme conceptual. Rompe com o que habitualmente se espera da linguagem cinematográfica, rejeita os termos de construção da narrativa clássica e propõe um modelo que teria continuidade, por exemplo, nos grandes documentários de propaganda feitos pelos cineastas de Hollywood durante a II Guerra Mundial, bem como em parte do documentário americano contemporâneo.


Conclusão


O êxito de The Plow That Broke de The Plains e The River convenceu Roosevelt a criar, em 1938, o United States Film Service, sob a tutela de Pare Lorentz. A vida deste organismo, em grande parte devido à oposição da maioria do Congresso, entretanto, conquistada pelo Partido Republicano, foi efémera. Extinto em 1940, ainda assim, durante o curto período da sua existência, produziu alguns dos melhores documentários alguma vez feitos na América. São os casos de Power and the Land de Joris Ivens, sobre a electrificação do mundo rural e The Land (1942) de Robert Flaherty, sobre o problema da terra, que nunca viria a ser objecto de distribuição comercial visto a sua conclusão ter coincidido com o fim do Film Service. Ironicamente, a sua extinção, pouco tempo antes do ataque japonês a Pearl Harbour e, portanto, na antecâmara da entrada dos Estados Unidos na II Guerra Mundial, aconteceu na altura em que mais se justificaria a sua existência.


The Plow That Broke de The Plains (1936) de Pare Lorentz


P.S.

Para os mais interessados, seguem algumas sugestões bibliográficas:


FIELDING, Raymond – The American Newsreel 1911-1967, University of

Oklahoma Press, 1980.

- The March of Time 1935-1951, Oxford University Press, New York, 1978

GUYNN, William – Un cinéma de Non-Fiction, Publications de l’Université de

Provence, Aix-en-Provence, 2001.

LORENTZ, Pare – FRDR’S Moviemaker - Memoirs and Scripts, University of

Nevada Press, Reno, Nevada, 1992

METZ, Christian – Linguagem e Cinema, Editora Perspectiva, São Paulo, 1980.

- Essais Sur La Signification Au Cinéma, Klincksieck, Paris, 2003

SNYDER, Robert L. - Pare Lorentz and the Documentary Film, University of

Oklahoma Press, 1968












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