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CULTURA

  • Foto do escritorJorge Campos

Comunicação: O Glocal

Cimeira Ibero-Americana, 1998. Procura, oferta e entropia na comunicação.

Os desafios para uma informação livre, plural e verdadeira.


É inevitável que num encontro como este se venha falar, uma vez mais, da Aldeia Global. Também eu irei fazê-lo, ainda que a contra gosto e, desde já me penitencio do facto.


Não gosto especialmente da expressão, apesar de lhe reconhecer valor instrumental. Serve ela para dar conta de uma particular realidade resultante da explosão das tecnologias da comunicação, em função das quais o mundo se tornou mais pequeno, posto que, agora, pelo menos no campo das hipóteses, os povos da Terra recuperam ou estão em vias de recuperar a tradição da tribo primitiva. Essa oralidade imediata, bem com a visão em permanência a ela associada do que vai pelos quatro cantos do mundo, facultadas, uma e outra, pela electrónica, pelo digital e pelas plataformas geo-estacionários, parece exprimir, em si mesma, um universo de comunicação global capaz de promover consensos à escala planetária.


Sabemos que não é assim. Tinha razão MacLuhan ao sugerir a capacidade das novas tecnologias da comunicação de promoverem mutações civilizacionais, em profundidade, e não se enganou ao proclamar novas modalidades de percepção induzidas pelos media electrónicos. Mas não lhe ocorreu, porque não pôde ou porque não quis, que os media são portadores de discursos e que todo o discurso é construído em função de estratégias de persuasão. Por isso, a lógica da comunicação é, em si mesma, uma lógica de domínio. Por isso, também, as comunicações e os sectores a elas associadas são áreas de intervenção estratégica por parte dos governos dos diferentes países.


Em 1979, no relatório McBride elaborado para a Unesco, afirmava-se:


“No campo da comunicação, o problema de hoje e do futuro imediato, é utilizar as possibilidades realmente existentes, mas que, todavia, são negadas à maioria da população do mundo. Os sectores produtivos da sociedade dependerão cada vez mais de uma organização do trabalho inteligentemente programada, da compreensão, da experiência e da utilização da informação, onde e quando for necessária. Se a penúria dos recursos alimentares, da energia e das numerosas matérias primas é um tema que suscita inquietação, já os recursos da informação aumentam constantemente; à escassez que caracterizou a história precedente, sucede a abundância. O mundo dos anos 80 em diante será o da oportunidade de apreendê-los”.


É sabida a controvérsia aberta pelo relatório McBride e a oposição que suscitou junto das nações mais poderosas, e em particular dos Estados Unidos. Contudo, o relatório contribuiu para agitar as consciências, deixando claro que forjar um futuro melhor para os homens e mulheres do planeta não depende essencialmente do progresso técnico, mas sim das respostas que cada sociedade for capaz de dar sobre o que, política e conceptualmente, fundamenta o desenvolvimento. Hoje, sabemos mais. Sabemos que saber utilizar a informação a partir do universo de entropia entretanto generalizado é fundamental para o desenvolvimento


Na Europa, entendemos hoje o desenvolvimento como um percurso para formas avançadas de democracia. Esse percurso, porém, é sinuoso e contraditório. Acreditamos que os desafios de uma informação que se pretende livre, plural e verdadeira vão no sentido de contribuir para o debate e o esclarecimento das questões fundamentais do nosso tempo. Sustentamos a vigilância crítica dos nossos meios de comunicação enquanto elementos correctores de abusos e disfuncionalidades. Mas sabemos dos abismos por vezes existentes entre a realidade e os propósitos enunciados. Não desconhecemos a lógica dos lobbies. Nem sempre conseguimos evitar cair na armadilha dos pseudo eventos . Voluntária ou involuntariamente cedemos perante grupos de pressão. Eventualmente, contribuímos para vedetizar a vida política, banalizando as ideias e promovendo o espectáculo. Em nome da eficácia administrativa, do número de vendas ou das tabelas de audiências conferimos notoriedade ao fait-divers e aos seus actores. Nem sempre resistimos à revelação das dimensões de um pénis presidencial…


Ao dizer isto, digo-o naturalmente a pensar naqueles que estão preocupados com o bom jornalismo e que no complexo mundo mediático dos nossos dias procuram encontrar soluções para problemas com os quais nos defrontamos todos os dias. No meu caso, é natural que preste alguma atenção à televisão.


Se os anos 80, na Europa, foram, de um modo geral, anos de desregulamentação e da abertura da televisão aos operadores privados, a verdade é que, por essa altura, se começaram, também a fazer sentir os efeitos de uma nova revolução no âmbito do audiovisual. Os sinais dessa revolução chegavam dos Estados Unidos embora, de início, não se lhes prestasse grande atenção.


Em 1979, por sinal o ano da divulgação do relatório McBride, as três majors americanas – CBS, ABC e NBC – concentravam, em conjunto, 91% da audiência televisiva. Dois anos mais tarde, esse indicador caía para 85% e em 1983 para 81%. Em 1990, CBS, ABC e NBC, em conjunto, já estavam abaixo da fasquia dos 60% de audiência. Ou seja, em pouco mais de dez anos, verificava-se uma profunda mudança de hábitos do público americano, impensável para quem tinha concepções imobilistas associadas às performances das televisões generalistas. As razões para esta quebra, que, de resto, continua a verificar-se um pouco por todo o lado, prendem-se, naturalmente, com a evolução das tecnologias da informação, da comunicação e das telecomunicações.


Se a tendência para a retracção das televisões generalistas parece universal, não quero com isto dizer, no entanto, que elas estejam em vias de extinção. Não estão. Contudo, é evidente que a disseminação do cabo, frequentemente interagindo com os satélites geoestacionários e com as plataformas digitais, está a fazer crescer exponencialmente uma oferta televisiva segmentada, temática, especializada e interactiva. Estamos, portanto, num mundo em mutação acelerada, no qual os diversos actores são obrigados a promover parcerias estratégicas conducentes às indispensáveis actualizações e ajustamentos. A começar pelo serviço público.


Sabemos da crise que atravessa a maioria dos serviços públicos de televisão europeus. Todos eles procederam e procedem a revisões em termos de objectivos de modo a procurar acompanhar os novos tempos. Uns mais, outros menos. Mas todos eles, em maior ou menor grau, convocam a sensação estranha de estarem a olhar o mundo pelo retrovisor. A expressão, uma vez mais é de MacLhuan. Utilizou-a ele para evidenciar a incompatibilidade da aplicação dos critérios da Galáxia de Guttemberg à Galáxia de Marconi. A metáfora, naturalmente, é tão controversa quanto o é o MacLuhanismo no seu conjunto. Mas nem por isso deixa de fazer sentido quando, confrontados com uma nova revolução tecnológica, os serviços públicos reagem conservadoramente, amarrados, em maior ou menor grau, à tradição dos primeiros 40 anos da televisão, durante os quais se foram transformando numa espécie de aparelhos ideológicos do estado, aparentemente incapazes de encarar o futuro.


Ora, a verdade é que os dias do monopólio acabaram. Como se sabe, numa primeira fase a luta pelas audiências promoveu situações de mimetismo entre estações públicas e privadas. Os géneros esgotaram-se em meia dúzia de receitas. Aqui e ali, a Informação não desdenhou nem a dramatização gratuita, nem o espectáculo pelo espectáculo. O nivelamento fez-se por baixo. Mas, numa segunda fase, que é aquela que agora estamos a encetar, persistir nas rotinas do passado, ou seja ver o mundo pelo retrovisor, é pouco menos do que um suícidio anunciado.


Porque afinal, a aldeia global, que parecia ter tornado o mundo mais pequeno, promoveu dentro de si própria uma inversão de rumo e, agora, o mundo está cada vez maior, nunca foi tão grande porque há cada vez mais para dizer e cada vez mais gente a reclamar fazer-se ouvir. A multiplicação da oferta televisiva, a sua diversidade e crescente especialização, indiciam, por outro lado, um novo tipo de espectador, um espectador selectivo, distante do heavy-viewer da televisão generalista. Esse novo espectador tenderá a ser, também, cada vez mais interactivo. E a segmentação vai promover, inevitavelmente, uma revolução nas linguagens.


Por outro lado, a televisão segmentada permite alargar os caminhos da democracia no sentido em que pode e vai, inevitavelmente, promover a visibilidade do local e do regional. Mas o local e o regional que se cuidem com as fórmulas folcloristas exibidas com demasiada frequência quando tuteladss por poderes centralizadores. Durante anos, é bom lembrá-lo, a televisão integrou de forma corporativa as culturas regionais espartilhando-as nos seus módulos estabelecidos e reconvertendo-as à exigências discursivas supostamente exigidas pelo medium. Os prejuízos culturais, estéticos, sociais ou de tudo aquilo que era genuinamente autêntico, foram incalculáveis. Portanto, será de elementar prudência procurar evitar transferir procedimentos obsoletos e figurinos caducados das televisões de broadcast, para as novas modalidades televisivas. Importa, sim, explorar fórmulas, porventura experimentais, ajustadas à revelação de realidades cuja autenticidade permite reconhcer o universal naquilo que é local e regional. A meu ver, aliás, se a superação da crise de identidade que um pouco por todo o lado, atinge o serviço público passa pela substituição de uma pedagogia dos consumos por uma pedagogia da cidadania, passa, igualmente, pela revalorização da sua componente regional. De resto, no âmbito das tendências europeias para o audiovisual privilegia-se, hoje, uma diversidade que valoriza o regional, exige a excelência do discurso e prossegue a via da internacionalização


Eu creio que este é um dos grandes desafios que se põem, hoje, aos jornalistas, ou seja, serem capazes de reflectir sobre um mundo em mudança vertigionosa, de modo a adequarem os seus procedimentos aos novos tempos. Para tanto, parece-me indispensável dar prioriodade à Educação, de modo a preparar quadros altamente qualificados, bem como reforçar a ligação das empresas de Comunicação Social às Universidades. A aprendizagem de um jornalista é, aliás, um processo permanente e bom seria, por outro lado, que nas escolas, desde muito cedo, as crianças começassem a aprender a relacionar-se com toda a panóplia de media e multimedia. Importa, por outro lado, desenvolver a pesquisa sobre os mass-media, de forma a que os dados apurados possam beneficiar quer as empresas, quer todos aqueles a quem compete a definição de políticas de comunicação social. Importa finalmente, incentivar junto dos jornalistas ou candidatos a jornalistas, uma cultura dos media exigente no domínio das respectivas linguagens e inflexível no que ao código de conduta diz respeito.



Termino regressando à televisão. Todos os países desenvolvidos reconhecem o papel da televisão nas suas relações com a indústria electrónica, bem como o papel decisivo desta última no progresso das novas tecnologias. Por isso, a maioria dos países desenvolve projectos de televisão em correspondência com planos de expansão das suas indústrias electrónica e das comunicações. Neste contexto, o serviço público prescinde de muitas das prerrogativas do passado, mas assume outras, nomeadamente aquelas que, no âmbito das políticas definidas lhe confere um papel estruturador do sector do audiovisual. Como vimos, o relatório McBride ao interrogar-se, política e conceptualmente, sobre o significado do desenvolvimento, adiantava que a partir dos anos 80 o mundo teria oportunidade de se apropriar das novas Tecnologias da comunicação para as usar em benefício próprio. MacLuhan, apesar das suas intuições notáveis e dos seus aforismos argutos, enganou-se muitas vezes nas suas profecias a respeito da Aldeia Global. O meio não é a mensagem. Pode ser que McBride tenha sorte diferente e a humanidade cumpra com a sua obrigação de utilizar os meios disponíveis de modo a ser ela mesma a determinar o seu próprio destino. Se assim não for, e pode não ser, apesar das possibilidades em aberto, não é impossível que venha a constituir-se um imenso proletariado cultural, como lhe chamou Eco, consequente da divisão dos homens em duas categorias: com ou sem acesso à informação.


Porto, 14 de Outubro de 1998


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