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viagem pelas imagens e palavras do quotidiano
NDR
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Jorge Campos
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"O mundo, mais do que a coisa em si, é a imagem que fazemos dele. A imagem é uma máscara. A máscara, construção. Nessa medida, ensinar é também desconstruir. E aprender."

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Moravagine
Moravagine (1926) de Blaise Cendrars, é um dos meus livros preferidos. Moravagine é um monstro, um revolucionário, um viajante imparável, um louco, um cometa de mau feitio, um patife, um santo, contraditório e lúcido. em Moravagine pode ler-se: "Ça n'est pas possible, il doit y avoir autre chose dans ce pays que cette affreuse passion pour l'argent, balzacienne, démodée, odieuse, grandiloquente." traduzido em todo o mundo, eis uma passagem em inglês: “Modern man has a need for simplification that tends to find its expression one way or another. And this artificial monotony which he takes pains to create, this monotony which is slowly taking over the world, this monotony is the sign of our greatness. It bears the mark of a certain will-power, the will to utility; it is the expression of utility, a law that governs all our modern activity: the Law of Utility." há versões em português. é irreverente, provocador e inteligente. gostava de o recomendar sem malícia ao nossos belicistas, os do bloco central e os outros. faz bem.
P.S. nalguns casos, admito ser aconselhável uma leitura acompanhada.
P.S. nalguns casos, admito ser aconselhável uma leitura acompanhada.

Out of the Past
o filme é Out of the Past (1947) de jacques tourneur. ela é a fabulosa jane greer, femme fatale do film noir. uma das tais por quem o rapaz perde a cabeça até descobrir que ela, afinal, não é indefesa e está perfeitamente à vontade com um 38 nas mãos. enfim, perigo. gosto.

Official Secrets de Gavin Hood
quando há dois anos esteve nas salas, este filme (2019) passou-me ao lado. vi-o agora. é muito estimável. o autor, Gavin Hood, um cineasta sul-africano, saltou para a ribalta após ter feito Tsotsi (2005), vencedor do Oscar para melhor filme estrangeiro de 2006. Hood aborda com frequência questões político-sociais. em Tsotsi há um jovem delinquente da periferia de Joanesburgo, um filho das circunstâncias, que se vê envolvido em peripécias excepcionais. rouba um carro e descobre que há nele um bébé. toma conta dele e, nesse processo, ele próprio vai mudando. em Offcial Secrets, o ponto de partida é o caso verídico da whistleblower Katharine Gun, agente do MI6 - serviços de inteligência britânicos - cuja consciência a levou a libertar documentos secretos reveladores do embuste que haveria de justificar a invasão do Iraque. após aturada investigação, os documentos foram divulgados pelo The Observer, de Londres, através do jornalista Martin Bright, sendo reproduzidos por media de todo o mundo. Kun foi presa. seguiu-se uma batalha judicial que acabaria por ser resolvida a seu favor. o filme é extremamente eficaz a expor os bastidores da mentira, o cinismo do poder e a construção mediática da realidade. Keira Knightley é simplesmente fantástica no papel principal. quanto a Katharine Gun, fica uma citação: Governments change. I work for the British people. I gather intelligence so that the government can protect the British people. I do not gather intelligence so that the government can lie to the British people.

Scarface
desde a opa terrorista sobre a grécia, praticamente só tenho visto filmes de gangsters. na verdade, revisto, posto que são todos filmes de género, na sua maioria dos anos 30. esta noite foi Scarface (1932) de howard hawks. o olhar do cineasta é tão implacável que ninguém se aproveita no meio daquela tragédia. tal como sucede com o eurogrupo, uma agremiação informal onde os polícias são os ladrões que protegem os interesses dos bancos. se não viram o filme, vejam. é um clássico do género e tem um grande paul muni.

Water Babies
este é dos meus álbuns favoritos de Miles Davis e o tema que lhe dá o título é simplesmente uma aventura luminosa da chamada fase de transição. isto não serve para embalar. isto é a imaginação à solta a criar novos mundos num paleta sonora que, parecendo minimal, abre porta atrás de porta com o infinito por horizonte. no lado 1 do álbum, gravado por volta de 1968, Miles tem por companhia Wayne Shorter, Herbie Hancock, Ron Carter, Tony Williams.

The Putin Interviews de Oliver Stone
vi os quatro episódios deste documentário (2017) aquando da sua saída há cinco anos. são interessantes e muito bem feitos. agora, a RTP 3 resolveu exibi-los. fez bem. é claro que o nome de Putin é um nome maldito. em qualquer guerra é preciso levar as pessoas a odiarem o inimigo de modo a que este possa ser exterminado sem remorso. e, neste caso, em boa verdade, a campanha tem conhecido um sucesso sem precedentes. como é óbvio, as Entrevistas de Putin não irão mudar nada nem é essa a intenção. quando muito, à semelhança do que está a acontecer noutros países onde a série foi reposta, poderão suscitar mais uma quantas indignações. quanto ao mais, les jeux sont faits. em todo o caso, eu sempre diria: Know your Enemy. até para fazer a Paz.

Um Fascinante Jogo de Máscaras
Sorge, de um fôlego: combate pelo exército imperial alemão na I Guerra Mundial, fica gravemente ferido, é condecorado com uma Cruz de Guerra, torna-se marxista e adere ao Partido Comunista na Alemanha, faz um doutoramento em Ciência Política, entra para o Comintern, é enviado para instigar a Revolução em diversos países, consegue infiltrar-se e obter o cartão de membro do partido nazi em Berlim, vai viver para Moscovo, é enviado pela União Soviética para Xangai onde cria uma tremenda rede de espionagem, segue depois para o Japão, fazendo-se passar por especialista dos assuntos da região, torna-se íntimo do embaixador do III Reich em Tóquio - e amante da sua mulher - tem acesso a informação ultra secreta que durante anos transmite ao Centro, avisa Estaline da Operação Barbarossa, nome de código da invasão da URSS pela Wehrmacht e seus aliados do Eixo, em suma, um tipo com uma vida tão assombrosa tinha de ficar para a História como o mais formidável espião de todos os tempos. Richard Sorge ou Ramsey, o mais conhecido dos seus nomes de código, tinha, obviamente, características pessoais singularíssimas: bebedor incorrigível, amante insaciável, viciado na velocidade das suas motos e automóveis, orador brilhante, intelectual de altíssima craveira, jornalista respeitado, indefectível comunista: sentia-se na vertigem do perigo como peixe na água. de tal modo que no jogo do gato e do rato iniciado com os processos de Moscovo, na sequência dos quais foram executados sucessivamente seis diretores do seu Comando - os seus superiores - Sorge conseguiu escapar à purga. não escapou foi à polícia japonesa. preso no final de 1941, seria enforcado em 1944. pensou até ao fim que a URRS acabaria por resgatá-lo. nunca soube, embora suspeitasse, que Estaline o considerava um agente duplo, mandando para o cesto do lixo as suas informações. subiu ao patíbulo com vivas à Revolução. foi reabilitado após o XX Congresso do PCUS e considerado herói da União Soviética. a história de Sorge tem sido contada de muitas maneiras ao longo dos anos. em ensaios, no cinema, na literatura. este livro de Owem Matthews, porém, recolhe informações só há pouco tornadas públicas, designadamente dos arquivos da polícia secreta russa. por vezes, apresenta dados contraditórios. eu diria que, tratando-se de espionagem, isso é natural. vale a pena lê-lo pelo que revela sobre os meandros da política, sobretudo agora quando a invasão da Ucrânia é representada de modo simplificadamente maniqueísta. já agora, este leitor leu muito sobre espiões. adora o tema. o que de mais fascinante encontrou neste livro foi o jogo de máscaras, sempre uma chave para ler a guerra e o mundo.

Les Misérables de Ladj Ly
há neste filme um momento arrepiante. não tem violência explícita, sangue, cargas policiais, tiros ou lutas de gangues. aliás, não há nele vestígio da presença física de um ser humano. trata-se da imagem feita por um drone das colmeias de betão a perder de vista na periferia de Paris onde habitam dezenas de milhar de pessoas - os outros, os de pele escura, os de rituais estranhos - a quem são assacadas responsabilidades pelos males da sociedade. por sinal, a mesma sociedade que dizendo-se inclusiva expulsa os pobres e prefere vê-los longe porque olha para eles como uma ameaça. Les Misérables (2019) de Ladj Ly é um sinal dos tempos, explica sem retórica moralista a razão pela qual as sucessivas cedências à extrema-direita - a França sabe bem o que isso é - acabam por normalizar o racismo e a xenofobia criando gigantescos conglomerados de excluídos onde as circunstâncias promovem a educação de crianças e jovens para a revolta. se não viram, vejam. vale a pena. e se quiserem um quadro mais completo podem recuar um pouco no tempo e ver ou rever O Ódio (1995) de Mathieu Kassovitz. é fácil encontrar estes filmes nas múltiplas plataformas disponíveis.

Charlie Watts
este stone sempre me fez lembrar o stone face que dava pelo nome de Buster Keaton, o homem que nunca ria. não sei se ele, Charlie, também afinava pela mesma linha. mas lá que não o vimos sorrir muitas vezes, é verdade. pelos vistos era um stone diferenciado, pouco dado às excentricidades dos outros. só casou uma vez, criava cavalos de raça e colecionava carros de luxo embora nunca se tenha dado ao trabalho de tirar a carta de condução. foi também um excelente baterista. um gentleman, segundo os próximos. adoeceu há relativamente pouco tempo e, aos 80, fez a tal viagem sem regresso. já não segue com a banda para a milionésima - suponho - digressão. até sempre Charlie Watts.

Woody Allen
farto de ler a desgraça dos dias e, para mais, com um dia de chuva, fui tratar de lavar os olhos e a alma. no cinema. não me lembro de alguma vez ter ficado desapontado com uma fita de woody allen, apesar de volta e meia o nome dele aparecer no obituário da crítica. evidentemente, gosto mais de uns filmes do que de outros, mas encontro sempre, mesmo nos de que gosto menos, alguma coisa que me faz pensar, tantas vezes a rir. este roma será menos articulado que o anterior sobre paris, mas tem cenas hilariantes e um agudíssimo sentido crítico e autocrítico. fiquei muito bem disposto. sucede que ao chegr a casa, deparo com um tipo de fato cinzento na televisão a insultar-me. sugere que sou preguiçoso e malandro porque sou culpado de viver num país onde há muitas cigarras e poucas formigas. como estou farto de ser insultado, apeteceu-me obrigá-lo a ir ver o woody allen. depois caí em mim: dificilmente o tipo entenderia. marquei então encontro na rua.

Winter on Fire: Ukraine's Fight for Freedom de Evgeny Afineevsky
este filme (2015) é um relato dos 94 dias de ocupação da Praça Maidan, em Kiev, cuja consequência imediata foi a fuga do presidente eleito da Ucrânia Yanukovych para a Rússia. consiste de um conjunto alargado de testemunhos de manifestantes cruzado com uma notável montagem cronológica dos acontecimentos levada a cabo por Will Znidaric. Znidaric trabalhou com centenas de horas de imagens captadas através dos mais diversos dispositivos, designadamente telemóveis. obedecendo a uma eficaz estética televisiva, portanto, de fácil assimilação, deixa-nos perfeitamente elucidados sobre a bondade da revolta. por isso, recomendo-o vivamente a quem, perturbado pela entropia informativa que por aí anda, possa sentir vacilar as suas convicções democráticas. Winter on Fire não deixa dúvidas. até porque, inclusivamente, resulta de uma co-produção da Ucrãnia com os Estados Unidos e o Reino Unido, fez um bem sucedido circuito de festivais em 2015/16 e o seu realizador, o russo-israelita Evgeny Afineevsky, tornou-se - ou foi tornado - muito popular. está disponível na Netflix. só deixo mais um conselho. não se ponham a ler críticas antes de ver o filme. ele é flat o bastante para reforçar tudo aquilo que as televisões despejam diariamente. é do tipo zona de conforto. quem estiver necessitado, é aproveitar.

William S. Burroughs
"Happiness is a byproduct of function, purpose, and conflict; those who seek happiness for itself seek victory without war."
William S. Burroughs
Foto: Robert Mapplethorpe
William S. Burroughs
Foto: Robert Mapplethorpe

Dark Waters de Todd Haynes
Dark Waters (2019) de Todd Haynes, produzido e protagonizado por Mark Ruffolo, é um filme baseado na história real do advogado que transformou a vida da DuPont num inferno. a DuPont é uma mega corporação de produtos químicos que durante décadas, contando com cumplicidades ao mais alto nível, contaminou a água de populações em West Virginia, causando danos e doenças irreversíveis em pessoas e animais. Rob Billot, sendo um advogado ambiental das grandes corporações, acabou por se virar contra elas e tornar-se defensor das vítimas. o filme obedece a uma estrutura clássica em três actos e é conduzido com a segurança já revelada por Haynes em filmes anteriores. os ambientalistas não podem perdê-lo. e eu diria que os advogados também só ganhariam em vê-lo. no Trindade, claro.

William Hurt
William Hurt era um actor estupendo. tinha uma impressionante capacidade camaleónica que lhe permitia assumir as personagens mais complexas. um exemplo, talvez o mais óbvio, Kiss of the Spider Woman (1985). mas eu gosto especialmente dele como Tom Grunick, o anchorman de Broadcast News (1987) de James L. Brooks, filme no qual os dispositivos da televisão são expostos de forma implacável. Grunick (William Hurt) é o repórter medíocre, o semi-analfabeto bem parecido, que chega a pivot de um telejornal e se transforma em estrela. ele nem sequer é má pessoa, é apenas uma nulidade a quem o estrelado conferiu o chamado efeito de aura. o fillme faz agora 35 anos. o actor faleceu hoje aos 71. para mim, também será sempre uma espécie de Amigo de Alex.

Paraíso de Sérgio Tréfaut
peguei na filhota e fomos ao Trindade. foi a minha primeira sessão de cinema em sala pós-liberalização do confinamento. o filme era Paraíso (2021) do Sérgio Tréfaut, um documentário rodado no Rio de Janeiro que nos dá uma extraordinária visão do país assombroso que é o Brasil, apesar de Bolsonaro. na verdade, estamos perante uma obra sem stars, mas com estrelas que refulgem intensamente, sem efeitos especiais, antes com exemplar rigor narrativo, sem espetáculo pastilha elástica tipo cabecinha de vento, mas onde palpita o maior de todos os espetáculos que é o espetáculo da vida proporcionado pela inteligência ao serviço de um cinema do real. Tréfaut transforma os protagonistas, pessoas de idades acima dos 80 anos que se reunem no Palacete do Rio para cantar, em personagens de fascinante densidade dramática. não é um pequeno feito. tanto mais que o pano de fundo é a música popular, raiz de algo profundo, autêntico, a que costumamos chamar identidade. com tanta porcaria mais ou menos esperta que por aí vai, deste Paraíso sai-se de alma lavada. eu, pelo menos, saí.

Don't Look Up de Adam McKay
este é o filme de que toda a gente fala, Don't Look Up (2021) de Adam McKay. dois cientistas descobrem um cometa de 10km em rota de colisão com a Terra. o impacto, a verificar-se, significará a extinção da vida no planeta. há seis meses para tomar medidas que evitem a catástrofe. o que daqui decorre é uma comédia negra sobre o nosso tempo: governantes incompetentes, assessores irresponsáveis, negacionistas da ciência, desinformação, culto das celebridades, prioridade absoluta ao entretenimento, a lógica do efémero, a enxurrada de barrelas cerebrais despejadas nas redes sociais, multidões acéfalas e, sobretudo, a mercantilização de tudo em nome do lucro associado aos gurus dos conglomerados tecnológicos. em suma, os sintomas do colapso do capitalismo. com Leonardo Di Caprio e Jennifer Lawrence nos principais papeis, o filme conta também com Meryl Streep - uma presidente dos Estados Unidos à imagem de Trump - e uma fantástica Cate Blanchett no papel de pivot de televisão que expõe sem rodeios a natureza da coisa. vejam que vale a pena. não sei se está em sala, mas está na Netflix. a ironia é dar connosco a rir da tragédia que nos rodeia

Washington D.C.
nunca fui grande admirador de gore vidal enquanto romancista, embora sempre tenha reconhecido nele o interesse bastante para, de quando em vez, pegar num dos seus livros. entre estes, os que mais me agradam são os relacionados com a história da américa, habitualmente designados como Narrativas do Império. Washington, D.C. é o primeiro desse ciclo. li-o há muitíssimos anos, porventura no final dos anos 60, suponho que em joanesburgo. há dias, passando por uma banca de rua com livros à venda, dei com esta tradução portuguesa. desembolsei os 5 euros pedidos e voltei a lê-lo. vidal trata da sacanagem política em Washington D.C. num período que vai da Grande Depressão ao pós-guerra. o tempo de roosevelt, portanto. lá estão os interesses, as virtudes públicas e os vícios privados, o conúbio com os media, as facadas nas costas, os milionários nos bastidores, as alianças espúrias. observo há muito a política americana. no fundo, toca-nos a todos. e ultimamente, tenho seguido com atenção a campanha de bernie sanders, um político fenomenal, visto por muitos como um quixote, acossado dentro do seu próprio partido, mas que, contra tudo e contra todos, está a empolgar a juventude e a mobilizar muita gente. creio que foi por isso que, instintivamente, senti vontade de reler Washington D.C. - uma história de sacanagem, como disse.

Violeta
Violeta do russo Kantemir Balagov é um dos tais filmes que podia ter sido grande, mas que acabou por ficar a meio do caminho. extraviou-se. é o que dá quando um cineasta fica deslumbrado com o próprio virtuosismo e não percebe que ou a alegoria e transcendência nascem da respiração do filme ou simplesmente não acontecem. ou seja, por mais fascinante que seja a fotografia e deslumbrante a composição - é o caso -, há um ponto a partir do qual não há regresso. é quando o dispositivo, tomando o lugar do pulsar da vida na tela, instala o formalismo enquanto fim em si mesmo. por isso, a dada altura, as cenas arrastam-se numa espécie de auto-comprazimento que resulta em punição gratuita do público. Violeta tem ainda outros problemas. por exemplo, quer o pós-guerra em Leninegrado, quer a obra na qual se inspira, A Guerra não Tem Rosto de Mulher de Svetlana Alexievich, são radicalmente subvertidos na visão de Balagov. é essa a função do artista, dir-se-á. e é. o problema é quando a visão do artista escolhe um ponto de partida com o qual o ponto de chegada nada tem a ver. mas, sim, vão ver o filme. tenho lido tais maravilhas a propósito que o mais certo é eu estar enganado.

Vem e Vê
encham-se de coragem e não percam este filme assombroso. coragem porque nunca viram nada de semelhante. magoa até ao limite do humano. não percam porque é imensamente belo, terrivelmente lúcido. se virem, vão querer voltar a ver. eu já vi algumas. a primeira - lembro-me bem porque foi uma experiência inesquecível - foi na única projecção do filme em sala no porto, há muitos anos, era ainda o carlos alberto um cinema.

Velimir Khlebnikov
este é o poeta Velimir Khlebnikov tal como o viu o pintor Mikhail Larionov. ambos mergulharam no turbilhão das vanguardas artísticas russas das primeiras décadas do século XX. o linguista Roman Jakobson considerava Khlebnikov o poeta mais importante do século XX. Khlebnikov, que, por sinal, teve uma vida desgraçada, foi a grande influência de Maiakovski. eu gosto de todos eles, reencontrados, agora, nas tarefas de pôr alguma ordem nos acumulados
NÚMEROS
Eu vos contemplo, ó números!,
E vós me vedes, vestidos de animais, em suas peles,
As mãos sobre carvalhos destroçados,
Ofereceis a união entre o serpear
Da espinha dorsal do universo e a dança da balança.
Permitis a compreensão dos séculos, como os dentes numa breve gargalhada.
Meus olhos se arregalam intensamente.
Aprender o destino do Eu, se a unidade é seu dividendo.
trad. marco lucchesi.
NÚMEROS
Eu vos contemplo, ó números!,
E vós me vedes, vestidos de animais, em suas peles,
As mãos sobre carvalhos destroçados,
Ofereceis a união entre o serpear
Da espinha dorsal do universo e a dança da balança.
Permitis a compreensão dos séculos, como os dentes numa breve gargalhada.
Meus olhos se arregalam intensamente.
Aprender o destino do Eu, se a unidade é seu dividendo.
trad. marco lucchesi.

Um quadro de kazimir malevich e um poema de velimir khlebnikov
Bem pouco me basta!
A crosta de pão
a gota de leite.
E mais este céu,
com as suas nuvens!
trad. marco lucchesi
A crosta de pão
a gota de leite.
E mais este céu,
com as suas nuvens!
trad. marco lucchesi

As Thouhg I Had Wings
este livrinho tem pouco mais de cem páginas. é uma escrita caótica, notas avulsas autobiográficas sobre uma vida tão caótica quanto o estilo desalinhado e, talvez por isso, dilacerante. Chet fala das suas relações desgraçadas com as mulheres, da marginalidade do junkie sempre em busca de drogas, das repetidas prisões, da vida precária em Itália, do tocar em clubes a troco de cachês miseráveis. diz alguma coisa sobre Gerry Mullingan, mas os apontamentos sobre Jazz são breves, meras anotações de passagem como se houvesse pressa em chegar a um outro lugar, vá lá saber-se qual. enquanto literatura, As Thouhg I Had Wings não vai a lado nenhum. no entanto, para quem conhece a música superlativa de Chet Baker, e sabendo que era nela que ele encontrava sentido e transcendência, o livro acaba por ser revelador. justamente por ser o outro lado, por a música estar ausente.

Um Passado Perfeito
sempre gostei da literatura policial. volta e meia ressuscito o chandler, o hammet e mais uns tantos de uma galeria de favoritos cujas personagens me revelam muito daquilo que somos e dos lugares, reais ou simbólicos, onde nos movemos. o cubano leonardo padura está entre os favoritos. ele e o seu mário conde, um polícia cujo percurso de vida poderia ter sido outro, mas que acabou enredado na teia da marginalidade de havana, essa cidade fascinante que tanto prometera, todavia, distante de concretizar os seus melhores sonhos. conde é um polícia que gostaria de ter sido escritor, um homem que cumpre as suas funções sabendo que pisa terreno minado, alguém que apesar do cepticismo olha em volta e não se detém, sem heroísmo, e sabendo, porventura, que no fim da linha estará ainda mais só. estive em cuba em meados dos anos 90. andei por toda a ilha e não apenas por havana e pelas praias. o livro terá sido escrito por essa altura. lê-lo de novo foi um pouco como voltar a esse tempo. gosto de padura. gosto de havana. e gosto de cuba.

Trumbo de Jay Roach
Dalton Trumbo foi um dos grandes argumentistas de Hollywood. filmes como Férias em Roma, Spartacus ou Exodus têm a sua assinatura. ou melhor, nem sempre tiveram a sua assinatura, embora fosse ele o autor dos argumentos. porquê? porque o seu nome fez parte da famosa lista negra elaborada pelos anti-comunistas da indústria cinematográfica, entre os quais se destacava John Wayne, um actor de quem sempre gostei nos westerns de John Ford, todavia, um safado reaccionário do piorio na vida real. portanto, trumbo escrevia argumentos para sobreviver, mas outros davam a cara e o nome por ele. o filme (2015) é interessante a vários títulos, pese embora a inevitável tendência, muito americana, de deixar no ar, no final, a reconciliação das partes. o famoso processo dos 10 de Hollywood - é disso que o filme fala - foi construído numa altura em que o FBI era controlado pela extrema-direita e uma parte significativa da população acreditava em tudo quanto pudesse alimentar a paranoia anti-comunista criada pelas narrativas mediáticas. Madeleine Albright, no seu último livro, publicado pouco antes de falecer - nessa altura, é bom lembrar, à frente da Administração estava Trump - classificou a "caça às bruxas" do senador McCarthy como uma acção fascista e alertou para exemplos de derivas totalitárias na Europa, nomeadamente na Hungria e na Polónia, algo com que a UE, durante anos a fio, andou a fazer de conta. Trumbo, o filme, utiliza com critério imagens de arquivo, é rigoroso nas reconstituições, eficaz nas articulações dramáticas e tem grandes interpretações. é um bom filme para fazer um intervalo na enxurrada de propaganda que por aí vai. na foto está o verdadeiro Trumbo.

O Evangelho Segundo São Mateus de Pier Paolo Pasolini
Jesus Cristo, aliás, Enrique Irazoqui, com Pier Paolo Pasolini num intervalo da rodagem de O Evangelho Segundo São Mateus (1964). numa altura em que as plataformas de streaming e os canais generalistas de televisão impingem pastelões requentados ou novidades pop aberrantes sobre a morte e ressurreição de Cristo, o filme de Pasolini, no meu entendimento, continua a ser, de longe, o que mais justiça faz ao tempo da Páscoa. posteriormente dedicado ao Papa João XXIII, inteiramente rodado em cenários naturais e com actores amadores, O Evangelho Segundo São Mateus começou por ser recebido com severas reservas pelos meios católicos. na verdade, essa reservas chegaram à proscrição. contudo, 50 anos mais tarde, o Osservatore Romano, jornal oficioso do Vaticano, viria a considerá-lo o melhor alguma vez feito sobre Cristo. uma bela lição para os tempos que correm. Pasolini, como bem sabeis, era comunista e homossexual. percebe-se, assim, a razão pela qual houve críticos, na altura, que não se deram sequer ao trabalho de ver o filme antes de o exorcizar.
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C A T E G O R I A S
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