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viagem pelas imagens e palavras do quotidiano
NDR


Jorge Campos
12 de jan. de 20242 min de leitura
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Jorge Campos
5 de jan. de 20243 min de leitura
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Jorge Campos
11 de nov. de 202327 min de leitura
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Jorge Campos
11 de nov. de 20233 min de leitura
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Jorge Campos
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"O mundo, mais do que a coisa em si, é a imagem que fazemos dele. A imagem é uma máscara. A máscara, construção. Nessa medida, ensinar é também desconstruir. E aprender."

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A Casada Infiel
(poema de Federico García Lorca, nascido no ano de 1898. detido e fuzilado pelos fascistas de Franco no dia 19 de agosto de 1936)
A Casada Infiel
Levei-a comigo ao rio,
pensando que era donzela,
porém já tinha marido.
Foi na noite de Santiago
e quase por compromisso.
Os lampiões se apagaram
e acenderam-se os grilos.
Nas derradeiras esquinas
toquei seus peitos dormidos
e pra mim logo se abriram
como ramos de jacintos.
A goma de sua anágua
soava no meu ouvido,
como uma peça de seda
lacerada por dez facas.
Sem luz de prata nas copas
as árvores têm crescido,
e um horizonte de cães
ladra mui longe do rio.
*
Passadas as sarçamoras
os juncos e os espinheiros,
por debaixo da folhagem
fiz um fojo sobre o limo.
Minha gravata tirei.
Tirou ela seu vestido.
Eu, o cinto com revólver.
Ela, seus quatro corpetes.
Nem nardos nem caracóis
têm uma cútis tão fina,
nem os cristais ao luar
resplandecem com tal brilho.
Suas coxas me fugiam
como peixes surpreendidos,
metade cheia de lume,
metade cheia de frio.
Percorri naquela noite
o mais belo dos caminhos,
montado em potra de nácar
sem bridas e sem estribos.
Dizer não quero, homem sendo,
as coisas que ela me disse.
A luz do entendimento
me faz ser mui comedido.
Suja de beijos e areia,
trouxe-a comigo do rio.
A aragem travava luta
com as espadas dos lírios.
Portei-me como quem sou.
Como um gitano legítimo.
Uma cesta de costura
dei-lhe de raso palhiço
e não quis enamorar-me
porque tendo ela marido
me disse que era donzela
quando a levava eu ao rio.
Federico García Lorca, in 'Romanceiro Gitano'
Levei-a comigo ao rio,
pensando que era donzela,
porém já tinha marido.
Foi na noite de Santiago
e quase por compromisso.
Os lampiões se apagaram
e acenderam-se os grilos.
Nas derradeiras esquinas
toquei seus peitos dormidos
e pra mim logo se abriram
como ramos de jacintos.
A goma de sua anágua
soava no meu ouvido,
como uma peça de seda
lacerada por dez facas.
Sem luz de prata nas copas
as árvores têm crescido,
e um horizonte de cães
ladra mui longe do rio.
*
Passadas as sarçamoras
os juncos e os espinheiros,
por debaixo da folhagem
fiz um fojo sobre o limo.
Minha gravata tirei.
Tirou ela seu vestido.
Eu, o cinto com revólver.
Ela, seus quatro corpetes.
Nem nardos nem caracóis
têm uma cútis tão fina,
nem os cristais ao luar
resplandecem com tal brilho.
Suas coxas me fugiam
como peixes surpreendidos,
metade cheia de lume,
metade cheia de frio.
Percorri naquela noite
o mais belo dos caminhos,
montado em potra de nácar
sem bridas e sem estribos.
Dizer não quero, homem sendo,
as coisas que ela me disse.
A luz do entendimento
me faz ser mui comedido.
Suja de beijos e areia,
trouxe-a comigo do rio.
A aragem travava luta
com as espadas dos lírios.
Portei-me como quem sou.
Como um gitano legítimo.
Uma cesta de costura
dei-lhe de raso palhiço
e não quis enamorar-me
porque tendo ela marido
me disse que era donzela
quando a levava eu ao rio.
Federico García Lorca, in 'Romanceiro Gitano'

A Complete Unknown (2024) de James Mangold
eis um filme simpático sobre um dos maiores ícones da música contemporânea, Bob Dylan. não se trata de uma biografia. o foco está nos anos de afirmação, aqueles durante os quais o artista e a respetiva persona ganharam corpo. vão do início da década de 60 até 1967, quando D. A. Pennebaker estreou o documentário Bob Dylan: Dont Look Back, um dos monumentos do cinema direto, cuja estética, de resto, está presente no filme de James Mangold, tal como, acrescente-se, o texto do volume I de Chronicles, no qual Dylan reporta a sua chegada a NY em demanda do mundo da folk music. já agora, Chronicles, é uma espécie de equivalente em prosa de uma poesia cujas raízes mergulham nessa cultura popular americana habitada por gente como Woody Guthry e Pete Seeger, por Leadbelly, pelos blues do delta do Mississipi, aqui e ali, também pela geração Beat, pelo gospel, o jazz e, claro, pelo o rock’ n roll. o maior mérito de A Complete Unknown talvez releve do modo como Mangold articulou os anos da brasa americanos, as suas lutas sociais, o movimento cívico, o Vietname, com as canções que Dylan foi escrevendo a um ritmo obsessivo, cada vez mais contundentes no protesto, exigentes na forma e inseparáveis da rebeldia do criador. quanto ao mais, lá estão os apontamentos sobre Guthrie e Seeger, bem como sobre as duas mulheres que mais marcaram a vida do cantautor nessa fase, Joan (Baez) e Sylvie (Russo). grandes interpretações de Timothée Chalamet, Edward Norton, Elle Fanning e Monica Barbaro. é ver que vê-se bem. e quem quiser saber um pouco mais da história é ver a recensão que fiz de Chrocles, aqui: https://www.narrativasdoreal.com/.../dylan-not-run-by-god...

A Estrada San Giovanni de Italo Calvino
este livrinho está traduzido em português. é muito curioso. foi publicado postumamente com um prefácio da mulher Esther - que tão bem cuidou da obra do marido - e tem cinco textos, um dos quais sobre a experiência do muito jovem Calvino a escapar-se de casa para ir ver filmes a San Giovanni. comecei por esse. é bom. mas o mais interessante é La poubelle agréée. foi sendo escrito em meados dos anos 70, em Paris, publicado em 77 e começa assim: "Das tarefas domésticas, a única que desempenho com alguma competência e satisfação é a de ir pôr o lixo lá fora". sim, é sobre o lixo. o lixo diário, acumulado, revelador do consumismo ao qual o lixeiro de pele escura que o recolhe, vindo do norte de África, não tem acesso, embora fazendo parte da mesma sociedade onde cada um cumpre as suas rotinas de modo a haver cada vez mais supérfluos, mais consumismo, em suma, mais lixo. diz Calvino, a propósito de ir pôr o lixo lá fora: "... a satisfação que sinto é análoga à da defecação, do sentir despejar-se as vísceras, a sensação pelo menos por um momento que o meu corpo não contém mais nada senão eu mesmo, e não há confusão possível entre o que sou e o que me é irrefutavelmente estraho." é uma reflexão muito adequada a estes dias quando nos pomos a pensar sobre como chegamos até aqui.

A Guerra Não Tem Nome de Mulher
20 milhões de soviéticos morreram a combater o nazi-fascismo. as mulheres tiveram um papel determinante. cerca de um milhão alistou-se no exército vermelho, muitas iludindo as autoridades sobre a idade para poderem ser enviadas para a frente de combate. prestaram serviço nas diversas armas. foram snipers, batedoras, médicas e enfermeiras, aviadoras, cozinheiras, em suma, fizeram de tudo. A Guerra não Tem Rosto de Mulher, obra de estreia de Svetlana Alexievich, é uma impressionante recolha de testemunhos sobre as motivações dessas mulheres e a sorte que o pós-guerra lhes trouxe. não é um panegírico sobre o heroísmo, são relatos pungentes de pessoas que viveram a barbárie no feminino e cujo reconhecimento, muitas vezes, se ficou pelas medalhas que orgulhosamente ostentavam no peito. foi este livro de pesadelos e assombrações, todavia belo, que inspirou Violeta, o filme do russo Kantemir Balagov que está por aí em sala. o livro é bem mais interessante do que o filme. é apenas uma opinião.

A História da Pide
no brasil não houve ditadura, em portugal não houve fascismo. deixemos o brasil de lado, só para aqui chamado por ser um exemplo sinistro da inversão da história em curso. então, portugal. por cá há quem diga que houve um regime autoritário de direita, mas fascismo, não. rui rio disse-o. alguns historiadores, sugerem-no. uma parte das novas gerações desconhece o assunto, aliás, convenientemente ignorado por outra parte das gerações mais velhas. de modo que a todos sugiro a leitura deste livro de Irene Flunser Pimentel. é sobre a PIDE, a polícia política de salazar e caetano. está lá tudo explicado ao detalhe. estão lá os nomes dos facínoras que a integraram, os seus métodos, a tortura, a perseguição política, os assassínios. a autora tem, aliás, um conjunto notável de obras sobre essa simpática instituição cujos chefes despachavam directamente com o chefe máximo. pode ser que esta história motive para a leitura de outras obras sobre o fascismo português. o qual, sim, existiu.

A Imagem que Falta
A Imagem que Falta (2014), um notável documentário de Rithy Panh, faz a reconstituição do puzzle do extermínio da sua família - que é o puzzle do extermínio de um povo - no cambodja dos khmers vermelhos. nascido em Phnom Penh, o cineasta conseguiu fugir e fixou-se em Paris onde viria a tornar-se um dos grandes documentaristas do nosso tempo. os seus filmes, multi-premiados, centram-se nas sequelas da barbárie de Pol Pot no seu pequeno país de 7 milhões de habitantes e recuperam a memória desses tempos sinistros. Ruthy Pan não é um panfletário. a força da sua denúncia reside no esforço de entendimento do que se passou. em S-21: The Khmer Rouge Killing Machine (2003), sobre a prisão de Tuol Sleng, junta vítimas e carrascos para os confrontar com o horror vivido. a Imagem que Falta tem edição portuguesa e foi nomeado para os óscares. para quem estiver interessado.

A Lei de Teerão de Saeed Roustayi
se querem ver um grande filme, esta é uma excelente opção. o cinema iraniano tem revelado autores de enorme talento. de Saeed Roustayi nunca tinha visto nada. com a Lei de Teerão (2019) sinto-me autorizado a dizer que também nunca tinha visto nada assim. é uma obra vertiginosa sobre o mundo da droga e a acção policial num país com 6,5 milhões de viciados. mas é mais do que isso, posto que tem de ser lida em função das múltiplas camadas a partir das quais Roustayi constrói a narrativa. implacável, sem regras claras, a investigação corre paredes meias com a revelação de um sistema prisional tão arrepiante quanto o meio social onde se arrastam, na mais profunda miséria, os milhares de desgraçados que caem sob a alçada da lei. há, também, as engrenagens de um poder ambíguo e de uma justiça aleatória. e, finalmente, o virtuosismo do cineasta e dos actores, sobretudo de Payman Maadi (o polícia) e Navid Mohammadzadeh (o bandido), que, ao cabo de mais de duas horas, nos deixa asfixiados. talvez por isso só estivéssemos duas pessoas na sala. mas repito: a A Lei de Teerão é um grande filme.

A Origem
Consumara-se o prazer ilícito.
Ergueram-se ambos do catre humilde.
À pressa se vestiram, sem falar.
Saíram separados, furtivamente;
e, ao caminhar inquietos pela rua,
como que receavam que algo neles traísse
em que espécie de amor há pouco se deitavam.
Mas quanto assim ganhou a vida do poeta!
Amanhã, depois, anos depois, serão
escritos os versos de que é esta a origem.
Constantino Cavafys (1921)
Ergueram-se ambos do catre humilde.
À pressa se vestiram, sem falar.
Saíram separados, furtivamente;
e, ao caminhar inquietos pela rua,
como que receavam que algo neles traísse
em que espécie de amor há pouco se deitavam.
Mas quanto assim ganhou a vida do poeta!
Amanhã, depois, anos depois, serão
escritos os versos de que é esta a origem.
Constantino Cavafys (1921)

A paranoid
"A paranoid is someone who knows a little of what's going on."
William S. Burroughs
na imagem: Allen Ginsberg, William Burroughs e Phillip Whalen, 1975.
Foto: Rachel Homer
William S. Burroughs
na imagem: Allen Ginsberg, William Burroughs e Phillip Whalen, 1975.
Foto: Rachel Homer

A Queda de Salazar
a maioria das vezes o jornalismo em portugal merece bem ser tratado como uma actividade metafórica. andei por lá tantos anos, conheço tão bem os meandros, que cheguei a essa conclusão. mas gosto muito, muito, do bom jornalismo. e é por isso que quero fazer menção a este livro do José Pedro Castanheira, da Natal Vaz e do António Caeiro. foi lançado no final do ano passado, li-o há pouco de um só lanço e quero saudar os autores pela excelência do trabalho. aqui, sim, há jornalismo a sério, investigação a sério e rigor histórico a sério. numa altura em que os sinais do tempo suscitam tantas preocupações, é bom verificar que se multiplicam os trabalhos sobre o fascismo português. aqui contam-se os dias da queda da cadeira do fantoche lusitano e a luta pelo poder que se lhe seguiu. é ler. vale bem a pena.

À Toi Mon Amour
Je suis allé au marché aux oiseaux
Et j'ai acheté des oiseaux
Pour toi
mon amour
Je suis allé au marché aux fleurs
Et j'ai acheté des fleurs
Pour toi
mon amour
Je suis allé au marché à la ferraille
Et j'ai acheté des chaînes
De lourdes chaînes
Pour toi
mon amour
Et puis je suis allé au marché aux esclaves
Et je t'ai cherchée
Mais je ne t'ai pas trouvée
mon amour.
Jacques Prévert
Et j'ai acheté des oiseaux
Pour toi
mon amour
Je suis allé au marché aux fleurs
Et j'ai acheté des fleurs
Pour toi
mon amour
Je suis allé au marché à la ferraille
Et j'ai acheté des chaînes
De lourdes chaînes
Pour toi
mon amour
Et puis je suis allé au marché aux esclaves
Et je t'ai cherchée
Mais je ne t'ai pas trouvée
mon amour.
Jacques Prévert

A verdade é de papel
eis um belo livro. acaba de sair e tem diversos ensaios em torno da figura desse português singular que foi o poeta Tiago Veiga. grato a Mário Cláudio por tê-lo dado a conhecer através da fascinante biografia que dele escreveu. grato a quem colaborou neste A Verdade é de Papel permitindo, desse modo, entrar mais a fundo no enigma do homem e do artista. já o li e muito aprendi. o livro acolhe um modesto artigo meu a propósito do documentário que fiz sobre Mário Cláudio. ao José Vieira, que esteve ao leme desta estupenda edição, parabéns!

A zona de interesse
Houve um tempo em que me foi relativamente frequente ver o mesmo filme duas vezes na mesma semana, embora raramente em dias seguidos. depois, o hábito foi-se diluindo, não sei se por não encontrar cinema que o justifique ou, simplesmente, porque a inexorável prova do tempo já não me permite reconhecê-lo. daí ter ficado atónito quando aqui há uns dias dei comigo a ver este Zona de Interesse de Jonathan Glazer duas vezes seguidas. compulsivamente. da primeira, saí de tal forma perturbado que não consegui pregar olho. da segunda, percebi porquê e o porquê não cabe em meia dúzia de linhas. em todo o caso, enquanto vou escrevendo um texto de reflexão para o meu blogue, adianto o seguinte. o filme anda à volta de Rudolph Höss, o SS chefe de Auschwitz, e da sua família. vivem uma vida banal numa moradia paredes meias com o campo de concentração. essa banalidade é arrepiante. Zona de Interesse ganhou um Oscar para o melhor filme internacional e, na sequência do discurso de Glazer na cerimónia da Academia, estalou a polémica. o cineasta, que, aliás, é judeu, aludiu à situação em Gaza, em certa medida estabelecendo um paralelo com o holocausto. dito isto, esteticamente o filme é de uma eficácia como há muito não via. nele, pouco é explícito, move-se no labirinto dos interditos, adopta uma estratégia de suspensão. não nomeia os monstros, mas fá-los sentir presentes. essa a razão pela qual, em rigor, não é um filme sobre o criminoso nazi que exterminou mais de um milhão pessoas em Auschwitz. é sobre as ameaças que pairam sobre o nosso tempo. percebi isso quando o vi pela segunda vez. aterrador.

Ainda estou aqui (2024) de Walter Salles
quando o filme saiu em França, Jacques Mandelbaum, crítico de cinema do Le Monde, tratou de o desancar. achou-o convencional e considerou a interpretação de Fernanda Torres, no papel de Eunice, "monocórdica". uma avalanche de protestos de cidadãos brasileiros inundou a caixa de comentários do jornal que se viu na necessidade de a fechar. a razão da indignação parece ser tão simples quanto isto: por um lado, milhões de pessoas enchem as salas de cinema do Brasil para ver o desempenho de Fernanda Torres; por outro, depois do pesadelo de Bolsonaro, o filme, que visa a ditadura militar, gerou uma onda de simpatia acima de todas as expectativas. Ainda estou aqui é baseado na obra homónima de Marcelo Rubens Paiva, filho do resistente com o mesmo apelido dado como desaparecido pelos militares e nunca encontrado. a viúva, Eunice, levou toda a vida a tentar saber o que efectivamente aconteceu. a partir daí, Walter Salles constrói, com sensibilidade e equilíbrio, uma narrativa escorreita, sendo que a interpretação de Fernanda Torres nada tem de monocórdico. pelo contrário, é fenomenal. Salles, um cineasta detestado pelos reacionários do seu país por sendo milionário estar do outro lado, faz uma estupenda recriação de época adoptando para tal a estética dos 8 mm. navega com igual segurança através dos diversos tempos do texto fílmico. Ainda estou aqui não será especialmente arrojado, mas teria de o ser? eficaz, útil, por vezes, plasticamente muito belo, é certamente. isso, só por si, justifica os prémios que já ganhou, bem como a nomeação para os Óscares da academia nas categorias de melhor atriz e melhor filme estrangeiro. eu, atendendo ao que por aí vai, bem gostaria que ganhasse.

All the King's Men de Robert Rossen
é um grande - e corajoso - filme sobre os meandros da corrupção na política. numa época em que a caça às bruxas do paranóico senador Joseph McCarthy assentara arraiais, a Academia de Hollywood, habitualmente conservadora, encheu-se de brios e nomeou-o para nove Oscars. ganhou três. All the King's Men (1949) é marginal à produção mainstream pensada para a bilheteira. mesmo assim, viria a ser um estrondoso êxito de público. Robert Penn Warren, o autor do livro no qual o filme se baseia, explicou-o assim: “Politics is a matter of choices, and a man doesn't set up the choices himself. And there is always a price to make a choice. You know that. You've made a choice, and you know how much it cost you. There is always a price.”

Allen Ginsberg
Follow your inner moonlight; don't hide the madness.
Allen Ginsberg
Foto: Michael Tighe
Allen Ginsberg
Foto: Michael Tighe

American Factory
American Factory de Steven Bognar e Julia Reich, o documentário vencedor do Oscar da categoria, tem muito que se lhe diga. desde logo, é uma produção da Higher Ground Productions de Barack e Michelle Obama para a Netflix. pelos vistos, o casal Obama entende, e bem, que é necessário contar às pessoas histórias que importam. esta importa. os chineses tomaram conta de uma fábrica fechada pela General Motors em Dayton, Ohio, e o filme, rodado durante três anos, mostra como foi evoluindo a situação num contexto de evidente choque cultural, mas, ainda assim, com o discernimento bastante para ir encontrando soluções. os operários americanos ganham menos do que ganhavam na GM, são-lhes exigidos ritmos de trabalho mais intensos, o patrão chinês não quer sindicatos e os seus adjuntos americanos também não. em contrapartida, na sede da Fuyao, em Xangai, os sindicatos são uma emanação do Partido Comunista. finalmente, os operários fazem uma votação e a maioria vota contra os sindicatos. na cerimónia de entrega dos Oscars, Julia Reich citou Marx: trabalhadores de todo o mundo, uni-vos! dito isto, o filme é muito bem feito, a história e os seus protagonistas contam-se a si mesmos, simplesmente, fica-se com a estranha sensação de que os trabalhadores devem unir-se para fazer do capitalismo uma coisa aceitável. é apenas a minha opinião. já agora, também sou de opinião que vale mesmo a pena ver American Factory.

Andreas Embirikos
figura de proa da geração grega do anos 30, Andreas Embirikos (1901-1975), poeta surrealista, psicanalista, fotógrafo e novelista, dizia sabiamente: nem regras, nem fronteiras. é dele o poema A Rapariga, cuja tradução é do meu querido e saudoso amigo Manuel Resende, também ele poeta - e tradutor - sem igual. fica aqui,
A Rapariga
A casa está a transbordar de alegria
Como uma bilha cheia de leite ao sol
Uma rapariga à janela ocultamente
Dá os seus seios às pombas.
Repletos palpitam os seios
Espetam-se os mamilos
Titilam-nos as aves
E subitamente o leite transborda.
Tradução de Manuel Resende
A casa está a transbordar de alegria
Como uma bilha cheia de leite ao sol
Uma rapariga à janela ocultamente
Dá os seus seios às pombas.
Repletos palpitam os seios
Espetam-se os mamilos
Titilam-nos as aves
E subitamente o leite transborda.
Tradução de Manuel Resende

Anora (2024) de Sean Baker
vencedor da Palma de Ouro em Cannes e de cinco óscares da Academia, entre os quais melhor filme e melhor atriz, Anora ficou muito aquém da minha expectativa. Sean Baker é um cineasta interessante como o demonstrou, por exemplo, em Tangerine (2012), The Florida Project (2017) e Red Rocket (2022, e tem uma reputação consolidada no cinema independente americano. em Anora volta a sondar o lado sombrio do american dream. a história é simples. uma prostituta, Anora (Mikey Madison) envolve-se com Ivan (Mark Edelstein) filho de um oligarca russo, acabando por casar com ele, em Las Vegas. quando a família do jovem toma conhecimento, viaja para os Estados Unidos num jacto privado e põe fim às ilusões da rapariga, já que o rapaz nunca levou o caso muito a sério. infelizmente, o filme raramente vai além da linearidade. dividi-o am três actos, andei à procura de uma dimensão conotativa, de subtextos, de espessura dramática, de tentar perceber algo de substancial na conclusão. e, das duas uma, ou falhei redondamente na análise ou tudo espremido fica mesmo muito pouco. a introdução no clube nocturno, apesar da destreza da montagem, arrasta-se, Las Vegas sugere que a vida é um jogo, o dinheiro compra tudo - é o capitalismo - e quem vive na mó de baixo dificilmente apanha o elevador social, apenas podendo ambicionar relações com os da mesma condição. em todo o caso, também há bons momentos, por vezes hilariantes, e a interpretação de Mikey Madison é sensacional. dá a ideia de ser do meio como, na verdade, o são as prostitutas com quem contracena. mas é pouco, desnecessariamente longo e redundante. é só a minha opinião, vale o que vale.

Anselm - O Som do Tempo (2023) de Wim Wenders
um documentário de Wim Wenders sobre Anselm Kiefer, artista visual cuja obra, ao longo de décadas, tem feito a ponte de forma enigmática e, muitas vezes, desconcertante, entre o passado e o presente da Alemanha. Peter Bradshaw escreveu na sua coluna do Guardian: “As imagens raivosas, apaixonadas e assombradas de Kiefer são motivadas pelo passado sombrio da Alemanha, e o filme de Wenders sugere de forma convincente que é nas ruínas de 1945, ano do nascimento do artista, que a semente da inspiração pode ser encontrada.” com efeito, explorando a história e o mito, Kiefer faz da arte uma extensão material do mundo à sua volta. Wenders explora a textura das suas peças, de dimensão gigantesca, de modo a estabelecer relações entre elas e os espaços onde se encontram. através do enquadramento e dos movimentos de câmara, constrói uma sinfonia - o som do tempo - na qual a natureza se funde com a arte, e a arte com a vida. uma sinfonia que, diga-se, fascina sem deixar de inquietar. poucos cineastas conseguem como Wenders tirar tamanho partido de filmar em 3D, aliando à experiência sensorial um pensamento visual. um belíssimo documentário. poético.

António Ramos Rosa
ARTE POÉTICA
Se o poema não serve para dar o nome às coisas
outro nome e ao seu silêncio outro silêncio,
se não serve para abrir o dia
em duas metades como dois dias resplandecentes
e para dizer o que cada um quer e precisa
ou o que a si mesmo nunca disse.
Se o poema não serve para que o amigo ou a amiga
entrem nele como numa ampla esplanada
e se sentem a conversar longamente com um copo de vinho na mão
sobre as raízes do tempo ou o sabor da coragem
ou como tarda a chegar o tempo frio.
Se o poema não serve para tirar o sono a um canalha
ou ajudar a dormir o inocente
se é inútil para o desejo e o assombro,
para a memória e para o esquecimento.
Se o poema não serve para tornar quem o lê
num fanático
que o poeta então se cale.
António Ramos Rosa
Fotografia, 1997
Se o poema não serve para dar o nome às coisas
outro nome e ao seu silêncio outro silêncio,
se não serve para abrir o dia
em duas metades como dois dias resplandecentes
e para dizer o que cada um quer e precisa
ou o que a si mesmo nunca disse.
Se o poema não serve para que o amigo ou a amiga
entrem nele como numa ampla esplanada
e se sentem a conversar longamente com um copo de vinho na mão
sobre as raízes do tempo ou o sabor da coragem
ou como tarda a chegar o tempo frio.
Se o poema não serve para tirar o sono a um canalha
ou ajudar a dormir o inocente
se é inútil para o desejo e o assombro,
para a memória e para o esquecimento.
Se o poema não serve para tornar quem o lê
num fanático
que o poeta então se cale.
António Ramos Rosa
Fotografia, 1997

Artaud
Man Ray - Antonin Artaud, 1925

As Histórias de Pat Hobby ou Crónicas de Hollywood de Scott Fitzgerald
o nosso magnífico da era do Jazz escreve sobre as desventuras do argumentista em fim de linha Pat Hobby, uma lástima itinerante dos estúdios a viver do crava e a nadar em álcool. o homem já teve grandes dias e uma casa com piscina, mas caiu na emboscada do ocaso. há muito deixou de frequentar Beverly Hills. já mal o conhecem. inicialmente publicadas na Esquire, entre 1940 e 1941, estas crónicas são como que um eco difuso dos últimos anos de Scott Fitzgerald enquanto argumentista a penar na Meca do Cinema, embora Pat Hobby não seja o seu alter ego. tal como Hobby, o escritor fartou-se de escrever para filmes que nunca se fizeram. enfrascava-se. o foguetório social dos loucos anos 20 com a mulher, Zelda, dera lugar a uma baça e angustiante tristeza. nunca deixou, no entanto, de ser uma celebridade. este livrinho mostra o outro lado da terra dos sonhos, a mercantilização das relações pessoais, a mesquinhez dos pequenos truques sem os quais a mera sobrevivência fica em risco. lê-se depressa. reli-o agora, após a cena patética de Will Smith na cerimónia dos Oscars. Scott Fitzgerald, evidentemente, continua a ser um grande escritor. apesar de Hollywood.

As Longas Noites de Caxias
o livro relata a experiência de duas mulheres em campos opostos num processo político na fase final da ditadura, justamente aquele em que mais se intensificou a actividade da polícia política dado o beco sem saída da guerra colonial e a desagregação do regime. uma é Laura, oposicionista e torturada até ao limite pela outra, a famigerada Leninha, a mais tristemente famosa e brutalmente cruel agente da PIDE. para as pessoas da minha geração que tiveram conhecimento e viveram aquele momento histórico, a maioria dos nomes é familiar, bem como os factos relatados. daí a leitura ser feita de um lanço até porque o texto é enxuto e poderoso. para os mais novos, naturalmente mais distantes e com outras experiências da vida, será um maneira de visitar um passado que é comum e do qual, queiram ou não, são também fiéis depositários.

As Thouhg I Had Wings
este livrinho tem pouco mais de cem páginas. é uma escrita caótica, notas avulsas autobiográficas sobre uma vida tão caótica quanto o estilo desalinhado e, talvez por isso, dilacerante. Chet fala das suas relações desgraçadas com as mulheres, da marginalidade do junkie sempre em busca de drogas, das repetidas prisões, da vida precária em Itália, do tocar em clubes a troco de cachês miseráveis. diz alguma coisa sobre Gerry Mullingan, mas os apontamentos sobre Jazz são breves, meras anotações de passagem como se houvesse pressa em chegar a um outro lugar, vá lá saber-se qual. enquanto literatura, As Thouhg I Had Wings não vai a lado nenhum. no entanto, para quem conhece a música superlativa de Chet Baker, e sabendo que era nela que ele encontrava sentido e transcendência, o livro acaba por ser revelador. justamente por ser o outro lado, por a música estar ausente.
C A T E G O R I A S
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