
viagem pelas imagens e palavras do quotidiano
NDR
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Jorge Campos

"O mundo, mais do que a coisa em si, é a imagem que fazemos dele. A imagem é uma máscara. A máscara, construção. Nessa medida, ensinar é também desconstruir. E aprender."

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20 milhões de soviéticos morreram a combater o nazi-fascismo. as mulheres tiveram um papel determinante. cerca de um milhão alistou-se no exército vermelho, muitas iludindo as autoridades sobre a idade para poderem ser enviadas para a frente de combate. prestaram serviço nas diversas armas. foram snipers, batedoras, médicas e enfermeiras, aviadoras, cozinheiras, em suma, fizeram de tudo. A Guerra não Tem Rosto de Mulher, obra de estreia de Svetlana Alexievich, é uma impressionante recolha de testemunhos sobre as motivações dessas mulheres e a sorte que o pós-guerra lhes trouxe. não é um panegírico sobre o heroísmo, são relatos pungentes de pessoas que viveram a barbárie no feminino e cujo reconhecimento, muitas vezes, se ficou pelas medalhas que orgulhosamente ostentavam no peito. foi este livro de pesadelos e assombrações, todavia belo, que inspirou Violeta, o filme do russo Kantemir Balagov que está por aí em sala. o livro é bem mais interessante do que o filme. é apenas uma opinião.

no brasil não houve ditadura, em portugal não houve fascismo. deixemos o brasil de lado, só para aqui chamado por ser um exemplo sinistro da inversão da história em curso. então, portugal. por cá há quem diga que houve um regime autoritário de direita, mas fascismo, não. rui rio disse-o. alguns historiadores, sugerem-no. uma parte das novas gerações desconhece o assunto, aliás, convenientemente ignorado por outra parte das gerações mais velhas. de modo que a todos sugiro a leitura deste livro de Irene Flunser Pimentel. é sobre a PIDE, a polícia política de salazar e caetano. está lá tudo explicado ao detalhe. estão lá os nomes dos facínoras que a integraram, os seus métodos, a tortura, a perseguição política, os assassínios. a autora tem, aliás, um conjunto notável de obras sobre essa simpática instituição cujos chefes despachavam directamente com o chefe máximo. pode ser que esta história motive para a leitura de outras obras sobre o fascismo português. o qual, sim, existiu.

A Imagem que Falta (2014), um notável documentário de Rithy Panh, faz a reconstituição do puzzle do extermínio da sua família - que é o puzzle do extermínio de um povo - no cambodja dos khmers vermelhos. nascido em Phnom Penh, o cineasta conseguiu fugir e fixou-se em Paris onde viria a tornar-se um dos grandes documentaristas do nosso tempo. os seus filmes, multi-premiados, centram-se nas sequelas da barbárie de Pol Pot no seu pequeno país de 7 milhões de habitantes e recuperam a memória desses tempos sinistros. Ruthy Pan não é um panfletário. a força da sua denúncia reside no esforço de entendimento do que se passou. em S-21: The Khmer Rouge Killing Machine (2003), sobre a prisão de Tuol Sleng, junta vítimas e carrascos para os confrontar com o horror vivido. a Imagem que Falta tem edição portuguesa e foi nomeado para os óscares. para quem estiver interessado.

Consumara-se o prazer ilícito.
Ergueram-se ambos do catre humilde.
À pressa se vestiram, sem falar.
Saíram separados, furtivamente;
e, ao caminhar inquietos pela rua,
como que receavam que algo neles traísse
em que espécie de amor há pouco se deitavam.
Mas quanto assim ganhou a vida do poeta!
Amanhã, depois, anos depois, serão
escritos os versos de que é esta a origem.
Constantino Cavafys
Ergueram-se ambos do catre humilde.
À pressa se vestiram, sem falar.
Saíram separados, furtivamente;
e, ao caminhar inquietos pela rua,
como que receavam que algo neles traísse
em que espécie de amor há pouco se deitavam.
Mas quanto assim ganhou a vida do poeta!
Amanhã, depois, anos depois, serão
escritos os versos de que é esta a origem.
Constantino Cavafys

a maioria das vezes o jornalismo em portugal merece bem ser tratado como uma actividade metafórica. andei por lá tantos anos, conheço tão bem os meandros, que cheguei a essa conclusão. mas gosto muito, muito, do bom jornalismo. e é por isso que quero fazer menção a este livro do José Pedro Castanheira, da Natal Vaz e do António Caeiro. foi lançado no final do ano passado, li-o há pouco de um só lanço e quero saudar os autores pela excelência do trabalho. aqui, sim, há jornalismo a sério, investigação a sério e rigor histórico a sério. numa altura em que os sinais do tempo suscitam tantas preocupações, é bom verificar que se multiplicam os trabalhos sobre o fascismo português. aqui contam-se os dias da queda da cadeira do fantoche lusitano e a luta pelo poder que se lhe seguiu. é ler. vale bem a pena.

Follow your inner moonlight; don't hide the madness.
Allen Ginsberg
Foto: Michael Tighe
Allen Ginsberg
Foto: Michael Tighe

American Factory de Steven Bognar e Julia Reich, o documentário vencedor do Oscar da categoria, tem muito que se lhe diga. desde logo, é uma produção da Higher Ground Productions de Barack e Michelle Obama para a Netflix. pelos vistos, o casal Obama entende, e bem, que é necessário contar às pessoas histórias que importam. esta importa. os chineses tomaram conta de uma fábrica fechada pela General Motors em Dayton, Ohio, e o filme, rodado durante três anos, mostra como foi evoluindo a situação num contexto de evidente choque cultural, mas, ainda assim, com o discernimento bastante para ir encontrando soluções. os operários americanos ganham menos do que ganhavam na GM, são-lhes exigidos ritmos de trabalho mais intensos, o patrão chinês não quer sindicatos e os seus adjuntos americanos também não. em contrapartida, na sede da Fuyao, em Xangai, os sindicatos são uma emanação do Partido Comunista. finalmente, os operários fazem uma votação e a maioria vota contra os sindicatos. na cerimónia de entrega dos Oscars, Julia Reich citou Marx: trabalhadores de todo o mundo, uni-vos! dito isto, o filme é muito bem feito, a história e os seus protagonistas contam-se a si mesmos, simplesmente, fica-se com a estranha sensação de que os trabalhadores devem unir-se para fazer do capitalismo uma coisa aceitável. é apenas a minha opinião. já agora, também sou de opinião que vale mesmo a pena ver American Factory.

o livro relata a experiência de duas mulheres em campos opostos num processo político na fase final da ditadura, justamente aquele em que mais se intensificou a actividade da polícia política dado o beco sem saída da guerra colonial e a desagregação do regime. uma é Laura, oposicionista e torturada até ao limite pela outra, a famigerada Leninha, a mais tristemente famosa e brutalmente cruel agente da PIDE. para as pessoas da minha geração que tiveram conhecimento e viveram aquele momento histórico, a maioria dos nomes é familiar, bem como os factos relatados. daí a leitura ser feita de um lanço até porque o texto é enxuto e poderoso. para os mais novos, naturalmente mais distantes e com outras experiências da vida, será um maneira de visitar um passado que é comum e do qual, queiram ou não, são também fiéis depositários.

tenho amigos reaccionários. uns mais, outros menos. em qualquer dos casos, mais ou menos, têm absoluto direito às suas convicções e não é por isso que deixam de ser amigos. naturalmente, a esmagadora maioria dos meus amigos não é reaccionária. mas, a todos os que o não leram, sem excepção, eu gostaria de recomendar a leitura deste livro. não para convencer ninguém do que quer que seja, mas porque para mim foi e é um livro muito importante. trata-se, portanto, de uma partilha por amizade. escrito há mais de 40 anos, foi agora reeditado em português.

Ascenceur pour l´échafaud (1957) de Louis Malle. com o trompete de miles em fundo, ela vagueia pela noite de paris à procura do homem que ama. o homem matou um bandalho influente, o marido dela. ela ainda não sabe. ele ficou preso no elevador. numa minúscula máquina fotográfica, a prova do amor louco que os vai levar à prisão. na alvorada da nouvelle vague. muito belo. muito noir. Jeanne Moreau. gosto.

volta e meia dá-me uma vontade irreprimível de ver um filme. tenho tantos em casa que nem sou capaz de os contar. por isso, deveria ser fácil escolher um. não é. olho para os mais recentes ainda por abrir e, por mais estrelas que tenham, desconfio sempre. a solução é sempre a mesma. deixo os mais recentes para quando a vontade não for irreprimível e deito mão de um dos sublimes. hoje saiu este. também perdi a conta às vezes que o vi.

este filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles é sensacional. arrisca o cruzamento de géneros, com passagem pelo universo nordestino de glauber rocha, para construir uma narrativa feroz sobre a distopia instalada no brasil. aliás, vai além dela. diz respeito a todos em todo o lado. os pontos de viragem abrem perspetivas inesperadas, interpelando o espectador e obrigando-o a mudar de registo. o desenlace é de uma brutalidade gore à altura da desmedida do nosso tempo. obviamente, a estúpida trupe de bolsonaro tudo tem feito para bloquear Bacurau, afinal uma excelente maneira de o promover. eu vi-o no Trindade. é uma sorte ter um cinema assim no porto.

A terra é vermelha
O céu é azul
A vegetação é de um verde escuro
Essa paisagem é cruel dura triste não obstante a variedade infinita de formas vegetativas
Não obstante a graça inclinada das palmeiras e os ramos fabulosos das grandes árvores em flores flores de quaresma.
tradução: Patrícia Galvão
O céu é azul
A vegetação é de um verde escuro
Essa paisagem é cruel dura triste não obstante a variedade infinita de formas vegetativas
Não obstante a graça inclinada das palmeiras e os ramos fabulosos das grandes árvores em flores flores de quaresma.
tradução: Patrícia Galvão

"De los diversos instrumentos del hombre, el más asombroso es, sin duda, el libro. Los demás son extensiones de su cuerpo. El microscopio, el telescopio, son extensiones de su vista; el teléfono es extensión de la voz; luego tenemos el arado y la espada, extensiones de su brazo. Pero el libro es otra cosa: el libro es una extensión de la memoria y de la imaginación.
En César y Cleopatra de Shaw, cuando se habla de la biblioteca de Alejandría se dice que es la memoria de la humanidad. Eso es el libro y es algo más también, la imaginación. Porque, ¿qué es nuestro pasado sino una serie de sueños? ¿Qué diferencia puede haber entre recordar sueños y recordar el pasado? Esa es la función que realiza el libro."
Jorge Luis Borges
En César y Cleopatra de Shaw, cuando se habla de la biblioteca de Alejandría se dice que es la memoria de la humanidad. Eso es el libro y es algo más también, la imaginación. Porque, ¿qué es nuestro pasado sino una serie de sueños? ¿Qué diferencia puede haber entre recordar sueños y recordar el pasado? Esa es la función que realiza el libro."
Jorge Luis Borges

Charles Bukowski sobre o homem que cortou a orelha
Van Gogh cut off his ear
gave it to a
prostitute
who flung it away in
extreme
disgust.
Van, whores don't want
ears
they want
money.
I guess that's why you were
such a great
painter: you
didn't understand
much
else.
Van Gogh cut off his ear
gave it to a
prostitute
who flung it away in
extreme
disgust.
Van, whores don't want
ears
they want
money.
I guess that's why you were
such a great
painter: you
didn't understand
much
else.

1º de Maio de 1941, Palace Theatre, New York City. noite de estreia de Citizen Kane de Orson Welles. a história de um magnata da imprensa, o megalómano Charles Foster Kane, inspirada na vida de outro magnata, William Randolph Hearst, esse sim, com existência real e proprietário do maior grupo de media dos estados unidos, que tudo fez para impedir a circulação do filme, cujo script passou pelas mãos de Herman Mankiewicz, um génio permanentemente etilizado posto em quarentena até entregar o embrulho. Hearst nunca perdoou a Welles. os seus jornais condenaram-no ao esquecimento, nunca se lhe referindo. como se sabe, sem grande resultado.

há algum tempo vi o deputado do PS no parlamento europeu pedro silva pereira fazer uma intervenção a favor dos eurobonds. muito bem. obviamente, ele também já percebeu, depois do triste espetáculo do eurogrupo, que as coisas vão por mau caminho. na mesma altura, nas cortes espanholas, o PP e o Ciudadanos votaram contra a mutualização das dívidas. não sei se isto corresponde a um separar de águas em duas famílias políticas cujo denominador comum, quanto às políticas económicas e financeiras da UE, tem tido consequências desastrosas, designadamente no crescimento da extrema-direita. também por isso, esta madrugada, decidi ver o filme de costa-gravas Comportem-se como Adultos, uma adaptação deste livro de varoufakis, por sinal, uma prenda de há três ou quatro anos de dois bons amigos. passo ao lado de um comentário ao filme, mas atrevo-me a recomendar a leitura do livro. bem sei que é o ponto de vista do antigo ministro das finanças grego, só que tem tanta informação sobre o modus operandi das instituições europeias que, neste momento tão particular, vale a pena recuperá-lo. em linguagem que toda a gente entende, se aquilo que foram os procedimentos para a humilhação da grécia se repetirem no debate sobre a pandemia, estamos feitos. literalmente. varoufakis fez questão de entregar ao parlamento europeu as gravações da sua passagem pelo eurogrupo, parcialmente reproduzidas no livro. fez bem. Comportem-se como Adultos, aliás, tem direitos de autor. é uma expressão de Christine Lagarde numa das famigeradas reuniões do eurogrupo onde quem, na verdade, mandava era wolfgang schäuble. apetece-me repetir: Comportem-se como Adultos.

Ivone De Carlo em Criss Cross (1949) de Richard Siodmak. assustada? é improvável. ela muda ao sabor da conveniência, faz do rapaz o que quer e, quando se trata de dinheiro, nunca se engana. noir, muito noir. gosto.

o nosso magnífico da era do jazz escreve sobre as desventuras do argumentista em fim de linha pat hobby, uma lástima itinerante dos estúdios a viver do crava e a nadar em álcool. o homem, que já teve grandes dias e uma casa com piscina, caiu na emboscada do ocaso. há muito deixou de frequentar beverly hills. já mal o conhecem. scott fitzgerald também passou os últimos anos da vida em maus lençóis, em hollywwod. fartou-se de escrever para filmes que nunca se fizeram. enfrascava-se. e o foguetório social dos loucos anos 20 com a mulher, zelda, deu lugar a uma baça e angustiante tristeza. mas nunca deixou de ser uma celebridade. continua a ser um grande escritor. apesar de hollywood.

Dark Waters de Todd Haynes, produzido e protagonizado por Mark Ruffolo, é um filme baseado na história real do advogado que transformou a vida da DuPont num inferno. a DuPont é uma mega corporação de produtos químicos que durante décadas, contando com cumplicidades ao mais alto nível, contaminou a água de populações em West Virginia, causando danos e doenças irreversíveis em pessoas e animais. Rob Billot, o homem que aparece nesta foto do NYT, sendo um advogado ambiental das grandes corporações, acabou por se virar contra elas e tornar-se defensor das vítimas. o filme obedece a uma estrutura clássica em três actos e é conduzido com a segurança já revelada por Haynes em filmes anteriores. os ambientalistas não podem perdê-lo. e eu diria que os advogados também só ganhariam em vê-lo.

Serras azuis a norte das muralhas,
Um rio branco a serpentear por elas;
Aqui nos devemos separar
E seguir por mil milhas de erva morta,
A mente como ampla nuvem flutuante,
O pôr do sol como o adeus de velhos conhecidos
Que à distância se curvam de mãos postas.
Os nossos cavalos relincham um para o outro
quando nos afastamos.
Ezra Pound
Foto: Richard Avedon
Um rio branco a serpentear por elas;
Aqui nos devemos separar
E seguir por mil milhas de erva morta,
A mente como ampla nuvem flutuante,
O pôr do sol como o adeus de velhos conhecidos
Que à distância se curvam de mãos postas.
Os nossos cavalos relincham um para o outro
quando nos afastamos.
Ezra Pound
Foto: Richard Avedon

De nuestros miedos
nacen nuestros corajes
y en nuestras dudas
viven nuestras certezas.
Los sueños anuncian
otra realidad posible
y los delirios otra razón.
En los extravios
nos esperan hallazgos,
porque es preciso perderse
para volver a encontrarse.
nacen nuestros corajes
y en nuestras dudas
viven nuestras certezas.
Los sueños anuncian
otra realidad posible
y los delirios otra razón.
En los extravios
nos esperan hallazgos,
porque es preciso perderse
para volver a encontrarse.

a netflix, a par de muita porcaria, tem filmes e séries excelentes. por exemplo, a mini-série russa que lá está sobre Trotsky é simplesmente abjecta, cheia de aldrabices grosseiras, esteticamente de fugir. em contrapartida, este documentário sobre Pepe Mujica é muito bom. em toda a linha. chama-se El Pepe, uma vida suprema (2018) e tem a assinatura de Emir Kusturica. vejam. darão o tempo por muito bem empregue. e, sim, os políticos não são todos iguais.

o meu escritório é relativamente pequeno mas as paredes estão integralmente ocupadas de cima abaixo por estantes nas quais não cabe nem mais um livro. ao fazer agora uma tentativa de reorganização do espaço constatei que nas prateleiras de cima, aquelas onde em princípio já não se volta, repousam publicações outrora lidas à lupa e hoje largamente negligenciadas quando não ostensivamente votadas aos ostracismo pela intelligentsia de turno. estão por lá marx, engels, lenine, trotski, mao, deutscher, carr, bernstein, kautsky, fidel, o che, ho chi minh, bakunine, grossos volumes sobre o fascismo italiano, outros tantos sobre a guerra civil de espanha e, também, alguma coisa sobre o estado novo. a lista não é exaustiva. se me não levam a mal, até lá está uma das coisas mais abjetas que me foi dado ler chamada mein kampf. todos estes livros têm como denominador comum terem sido publicados até ao início dos anos 80 do século XX. imediatamente abaixo deste arquivo a que alguns chamariam museológico estão alinhados uns tomos, chamemos-lhe assim, que foram sendo publicados a partir dos anos 80, uma vezes por furibundo revisionismo, outras com manifesto intuito de ajuste de contas, muitos possuídos do insuportável delírio pós-moderno, poucos, infelizmente, com real interesse. direi apenas que, apesar da boa vontade, raramente os li até ao fim. não foi o caso deste O Triunfo do Artista de Tzvetan Todorov que tem na capa um magnífico Malevich. discípulo de Barthes, politicamente conservador, o linguista búlgaro faz aqui um retrato daquilo que, segundo o seu ponto de vista, foi a conturbada relação da arte soviética com o poder político até 1941, bem como da tensão que levou à ruptura de construtivistas e suprematistas. pela minha parte, sabendo o quanto estas questões são complexas, conhecendo o contexto, não consigo perceber como pode passar pela cabeça de alguém tutelar a criação artística. e viva o triunfo do artista

O que não daria eu pela memória
De uma rua de terra com baixos taipais
E de um alto ginete enchendo a alba
(Com o poncho grande e coçado)
Num dos dias da planície,
Num dia sem data.
O que não daria eu pela memória
Da minha mãe a olhar a manhã
Na fazenda de Santa Irene,
Sem saber que o seu nome ia ser Borges.
O que não daria eu pela memória
De ter lutado em Cepeda
E de ter visto Estanislao del Campo
Saudando a primeira bala
Com a alegria da coragem.
O que não daria eu pela memória
Dos barcos de Hengisto,
Zarpando do areal da Dinamarca
Para devastar uma ilha
Que ainda não era a Inglaterra.
O que não daria eu pela memória
(Tive-a e já a perdi)
De uma tela de ouro de Turner,
Tão vasta como a música.
O que não daria eu pela memória
De ter sido um ouvinte daquele Sócrates
Que, na tarde da cicuta,
Examinou serenamente o problema
Da imortalidade,
Alternando os mitos e as razões
Enquanto a morte azul ia subindo
Dos seus pés já tão frios.
O que não daria eu pela memória
De que tu me dissesses que me amavas
E de não ter dormido até à aurora,
Dissoluto e feliz.
Jorge Luis Borges
De uma rua de terra com baixos taipais
E de um alto ginete enchendo a alba
(Com o poncho grande e coçado)
Num dos dias da planície,
Num dia sem data.
O que não daria eu pela memória
Da minha mãe a olhar a manhã
Na fazenda de Santa Irene,
Sem saber que o seu nome ia ser Borges.
O que não daria eu pela memória
De ter lutado em Cepeda
E de ter visto Estanislao del Campo
Saudando a primeira bala
Com a alegria da coragem.
O que não daria eu pela memória
Dos barcos de Hengisto,
Zarpando do areal da Dinamarca
Para devastar uma ilha
Que ainda não era a Inglaterra.
O que não daria eu pela memória
(Tive-a e já a perdi)
De uma tela de ouro de Turner,
Tão vasta como a música.
O que não daria eu pela memória
De ter sido um ouvinte daquele Sócrates
Que, na tarde da cicuta,
Examinou serenamente o problema
Da imortalidade,
Alternando os mitos e as razões
Enquanto a morte azul ia subindo
Dos seus pés já tão frios.
O que não daria eu pela memória
De que tu me dissesses que me amavas
E de não ter dormido até à aurora,
Dissoluto e feliz.
Jorge Luis Borges