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   viagem pelas imagens e palavras do      quotidiano

NDR

Atualizado: 6 de abr.


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Apocalípticos e Integrados, o terceiro módulo de Odisseia nas Imagens, marca uma viragem na programação dos documentários. Observando os critérios de cinema de excelência de O Olhar de Ulisses, cuja autonomia se manteve inalterada, abriram-se novas janelas tendo em vista contemplar narrativas que, de outro modo, teriam ficado omissas, com prejuízo de uma visão mais abrangente. Deste modo, Apocalípticos e Integrados, face aos episódios anteriores, tornou-se mais imprevisível e ganhou novos públicos por duas ordens de razões. Por um lado, o princípio de montagem cinematográfica já amplamente testado no diálogo entre os filmes em O Olhar de Ulisses, tornou-se extensivo a toda a programação da Odisseia nas Imagens. Por outro, a introdução e cruzamento de novas linguagens, permitiu acentuar contrastes, criar diferentes atmosferas e complexificar a relação entre o público e os filmes escolhidos para os diferentes momentos.

Vejamos, então, a programação dos documentários neste módulo, constante da avaliação feita pelo programador responsável no Relatório de Avaliação Final.

 

Documentários de O Olhar de Ulisses –  A Utopia do Real


No texto introdutório do catálogo do episódio de O Olhar de Ulisses, designado por A Utopia do Real, retoma-se uma frase de António Reis de há um quarto de século: “o cinema é um caso de vida ou de morte”. Evoca-se a circunstância do ciclo coincidir com “o cinquentenário da fundação de uma revista – Cahiers du Cinema – criada por André Bazin – que marcou profundamente a evolução do cinema e o acompanhou no seu devir durante as décadas seguintes”. E assume-se – fazendo lembrar, de novo, Serge Daney – que desde que o mesmo Bazin viu o cinema como “uma janela aberta para o mundo” o cinema dominante “tem vindo a manifestar uma assustadora tendência para se transformar num jogo de vídeo em grande ecrã enquanto o ecrã de televisão toma cada vez mais a forma de um buraco de fechadura”. Razão bastante para anunciar:

 

“Nesse contexto, o quarto e último acto de O Olhar de Ulisses, em Outubro de 2001, esforçar-se-á por construir redes de relação e leitura entre os filmes - faróis da história do cinema, pontos de referência indispensáveis, e as obras contemporâneas que teimam em respeitar quem as vê. A esse derradeiro andamento só podíamos por isso dar o título de RESISTÊNCIA ”.

 

António Reis: “O cinema é um caso de vida ou de morte.”  Fonte: Observador
António Reis: “O cinema é um caso de vida ou de morte.” Fonte: Observador

O catálogo de O Olhar de Ulisses - A Utopia do Real tem 441 páginas com 86 textos, nos quais não estão incluídos nem os textos introdutórios, nem os textos respeitantes ao ciclo Imagens da Ciência de Jean-Michel Arnold e Annick Demeule. Desses 86 textos 48 (55,81%) são de origem francófona, 25 são originais e os restantes reedições com origem fundamentalmente nas folhas e catálogos da Cinemateca Portuguesa, nos Cahiers do Cinema e na revista Trafic – foi a partir dela, recorde-se, que Serge Daney pretendeu lançar o seu projecto, justamente, designado Resistência.

 

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O ciclo decorreu entre 15 e 22 de Março de 2001, mas, desta vez, convivendo com um leque de iniciativas obedecendo ao diálogo multidisciplinar previsto desde o início pela Odisseia nas Imagens, cuja sessão inaugural ocorreu a 14 de Março com a exposição dos fotógrafos da Magnum sobre a rodagem de Misfits e, logo no dia seguinte, no espaço onde iria decorrer O Olhar de Ulisses, contou com um conjunto de masterclasses centrado nos Lugares da Imagem.

 

A Utopia do Real começou com Farrebique (1946) de Georges Rouquier, passou para Les Inconnus de la Terre (1961) de Mario Ruspoli, considerado o pioneiro do cinema directo na Europa, centrou-se em La Terra Trema (1948) de Luchino Visconti, fez a estreia de Cinema (2001) de Fernando Lopes e fechou o primeiro dia com O Desprezo (1963) de Jean-Godard. O filme de Rouquier, um admirador de Flaherty, mostra a vida no campo através de uma leitura lírica e descontextualizada – não há nele sinais do tempo, por exemplo, da guerra cujo epílogo se tinha acabado de verificar – proporcionando uma visão poética onde actores não profissionais, a família de Farrebique, desempenham os seus próprios papeis na vida real, mas com plena consciência de estarem a representar.

 

Mario Ruspoli  Fonte: metrograph
Mario Ruspoli Fonte: metrograph

A questão dos actores e a forma como a presença da câmara afecta os seus desempenhos é, aliás, transversal a todo o ciclo. Sucede com o filme de Ruspoli sobre os camponeses de Larzac, em relação aos quais a proximidade da câmara permite revelar na paisagem dos rostos o impasse a que os conduziu a sua condição e, claro, também com o filme de Visconti, obra obrigatória do neo-realismo italiano. O filme de Fernando Lopes – o realizador classificou-o como uma litania – é uma celebração do cinema de alguma forma reiterada (e problematizada) no filme de Godard onde Fritz Lang se representa a si mesmo enquanto realizador de um filme chamado Odisseia – magnífica alegoria: um poeta cego revisto por um cineasta com um só olho –, cujo produtor, o americano Jack Palance surge como intérprete de uma lógica industrial simultaneamente ambígua e pragmática, ameaçadora e estimulante.

 

As sessões do dia seguinte começaram com Georges Franju: Le Sang des Bêtes (1948), sobre os matadouros de Paris, Hotel des Invalides (1951), uma subtil crítica anti-militarista a propósito de uma visita guiada ao museu de guerra com texto dito pelo mais irreverente dos actores franceses, Michel Simon, e Os Olhos sem Rosto (1959) uma inquietante obra-prima do cinema fantástico onde o medo e o belo estão sempre presentes e em confronto na escala das emoções inerentes à natureza humana. Franju, apesar de ter colaborado com Langlois na criação da Cinemateca Francesa, foi sempre um cineasta marginal, nunca se tendo identificado com a nouvelle vague. Fez 13 curtas metragens. Tal como aconteceu com muitos dos cineastas do pós-guerra, nomeadamente aqueles que integraram o Grupo dos 30, trabalhou por encomenda, mas conseguiu sempre transmitir o seu ponto de vista. Nos seus filmes, particularmente em Les Sang des Bêtes, as imagens parecem escapar ao real elevando-se a um plano pictórico quase surreal. A narração faz lembrar a de Las Hurdes de Buñuel.

 

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Na sessão intermédia verificou-se o regresso de Flaherty com Louisiana Story (1948), provavelmente o mais complexo dos seus filmes, seguido de uma incursão no cinema de cunho documental de Abbas Kiarostami com Onde fica a casa do meu amigo (1987). Qualquer dos filmes tem como protagonistas dois rapazinhos e o sentido de uma aprendizagem que pode ser feita independentemente de quem é suposto ensinar. Na última sessão, uma montagem de filmes com enfoque nas relações dos homens entre si e dos homens com a natureza: A Caça (1963) de Manoel de Oliveira, Os Habitantes (1970) de Artavazd Pelechian e a Floresta Interdita (1958) de Nicholas Ray.

 

No dia 17, a cada uma das sessões correspondeu apenas um filme e o ciclo propôs três modos de olhar a Índia - correspondentes a outros tantos modos de olhar o outro - através de três clássicos da cinematografia universal: o documentário de Rosselini, Índia Matri Bhumi (1958), filme charneira da obra do realizador com uma estrutura narrativa

de algum modo semelhante a Paisà (1946) e que antecipa o seu trabalho para a televisão, O Rio Sagrado (1951) de Jean Renoir e a Balada da Estrada (1955) de Satyajit Ray, seguido de um concerto de música indiana pelos Bauls de Bengala

 

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Não foi ainda no quarto dia de A Utopia do Real que se anunciaram os filmes, em princípio, mais previsíveis tendo em conta o espaço cronológico convocado. Pelo contrário, o programa seguiu a via experimental, colocando o problema da criação artística e estabelecendo pontes com outros filmes já exibidos ou a exibir. Assim: Jaime (1974) de António Reis, sobre um doente esquizofrénico que ao cabo de 30 anos de internamento começou a pintar e escrever compulsivamente, e depois dois filmes de Jean-Daniel Pollet, Le Horla (1966) e L’Ordre (1973), cujo denominador comum remete tanto para um sentimento de exclusão por parte dos protagonistas quanto para a consciência crítica de uma narrativa da qual se exclui qualquer discurso convencional, sendo que o último filme coloca um leproso, Raimondakis – cujo rosto deformado faz lembrar as gloriosas ruínas do mundo clássico recorrentemente filmadas por Pollet – a interpelar o espectador, cúmplice de uma ordem que exclui. Sessão intermédia: Méditerrannée (1963) de Jean-Daniel Pollet e um singular Al Mummia (1969), única longa metragem de um discípulo de Rosselini, o egípcio Chadi Abdel As-Salam. Sobre o primeiro filme o realizador e Gerard Leblanc afirmam: “Trata-se de uma série de imagens captadas durante um ‘itinerário mediterrânico’ com a única preocupação de que cada imagem mostre, signifique, apenas uma coisa, uma só ideia de modo a ser uitilizada como uma palavra (que apenas adquire um significado definitivo em função do lugar que vai ocupar numa frase”. Finalmente: Le Mystère Picasso (1956) de Henri-Georges Clouzot sobre o método de criação do pintor e as sucessivas metamorfoses da sua pintura; e Un Monde Agité (2000) do escritor, fotógrafo e cineasta francês Alain Fleischer sobre o cinema da Belle Époque a partir de uma colagem de imagens de 124 filmes feitos entre 1900 e 1920. O catálogo de A Utopia do Real dedica a este último bloco de filmes 80 páginas com textos de João Bénard da Costa, Manuel Hermínio Monteiro, José Manuel Costa, João César Monteiro, António Reis, Jean-Luc Godard, Jean-Daniel Pollet, Philipe Solers (autor do texto de Méditerrannée), Gerard Leblanc, Dominique Païni, André Bazin, Saguenail e José Navarro de Andrade, o que permite atribuir-lhe um lugar charneira no contexto do ciclo.

 

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Em contrapartida, ao Free Cinema, apesar de se tratar de um movimento essencial para o entendimento do documentário contemporâneo, nomeadamente devido à crítica das posições reformistas de John Grierson, ao radicalismo formal e político e à liberdade de observação concedida às câmaras de filmar de 16mm, são dedicadas apenas três páginas, duas das quais apenas com ilustrações e uma com um texto não assinado. Do Free Cinema foram mostrados, na primeira sessão do dia 19 de Setembro, O Dreamland (1953) de Lindsay Anderson, Nice Time (1958) de Alain Tanner e Claude Goretta e We are the Lambeth boys (1958) de Karel Reisz. A estes filmes juntou-se On the Bowery (1957) de Lionel Rogosin sobre essa rua de Nova Iorque onde costumava reunir-se a escória humana da cidade.


Pull my Daisy (1959) de Robert Frank e Alfred Leslie
Pull my Daisy (1959) de Robert Frank e Alfred Leslie

Os filmes seguintes, dando continuidade ao bloco anterior, apontavam para o cinema independente americano do final da década de 50 e princípios da década de 60: Pull my Daisy (1959) de Robert Frank e Alfred Leslie e The Connection (1961) de Shirley Clarke. O primeiro estreou juntamente com Shadows (1959) de John Cassavetes e é uma espécie de home video passado num apartamento da Bowery onde o senhorio, um funcionário dos caminhos de ferro, é surpreendido pela visita de um bispo, sentindo-se embaraçado com a presença dos seus amigos boémios. Estes são figuras tutelares de beat generation como Allen Gingsberg, Gregory Corso, Peter Orlovsky. Delphine Seyrig aparece aqui no seu primeiro papel. O filme tem narração de Jack Kerouac. Durante anos, à semelhança, aliás, do que aconteceu com Shadows (1959), instalou-se a ideia do filme ter sido totalmente improvisado. Da narração de Kerouack, dando voz a todas as personagens, correu a versão de ter sido absolutamente espontânea. Contudo, em Novembro de 1968, num artigo da Village Voice, Alfred Leslie revelou tudo ter sido pensado e encenado ao pormenor, “tal como um filme de Hitchcock”.


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The Connection, por sua vez, recria uma peça de Jack Gelber para o Living Theatre. O nome de Shirley Clarke, uma bailarina que trabalhou com Martha Graham e Doris Humphrey, está associado ao cinema de vanguarda americano e a nomes como os de Stan Brakhage e Maya Deren. No início dos anos 60 fundou com Jonas Mekas a Filmmakers Cooperative e, mais tarde, dedicou-se à coreografia das imagens e ao vídeo experimental dando corpo ao T.P. Videospace Groupe. O seu filme mostra um grupo de junkies que aguarda a chegada do elemento de ligação da droga, mas enquanto isso acontece vão sendo desmontados os mecanismos de um outro filme que supostamente está a ser feito a propósito dessa espera e cujo realizador, na sua tentativa de encontrar “the man behind the man” acaba, ele próprio, por drogar-se. Para a última sessão, integrando-se coerentemente na atmosfera cinéfila do dia, estava reservado Belarmino (1964) de Fernando Lopes.


 Vittorio De Seta  Fonte: daFilms
 Vittorio De Seta Fonte: daFilms

O dia 20 de Março começou por acolher outro admirador de Robert Flaherty, o italiano Vittorio Se Seta – Martin Scorcese disse ver na sua obra a essência do cinema –, com dois filmes trazendo de volta os camponeses e o mundo rural: Pastor di Orgoloso (1958), sobre o quotidiano dos pastores da Sicília e o poderoso Banditi a Orgoloso (1961), a história de um pastor injustamente acusado de roubo e perseguido, juntamente com um irmão mais novo, na paisagem agreste das montanhas da Sardenha, como se esse fosse o seu destimo inelutável. Seguiram-se Les Hommes de la Baleine (1956) de Mario Ruspoli, um filme sobre a caça à baleia nos Açores que teve a colaboração de Chris Marker e o incontornável Pour La Suite du Monde (1963) de Pierre Perrault e Michel Brault. A última sessão programou três filmes portugueses: O Senhor (1965) de António Campos, A Invenção do Amor (1965) igualmente de António Campos e uma obra essencial do novo cinema português Mudar de Vida (1966) de Paulo Rocha.

 

A 21 de Março surgiu finalmente o confronto direct cinema - cinema vérité (o catálogo não faz qualquer referência a essa controvérsia) com algumas, poucas, das suas obras mais representativas. A primeira sessão, que contou com a presença de Albert Maysles: Primary (1960) dos Drew Associates, seguindo-se dois filmes de propósito social de Santiago Alvarez, Now (1956) e LBJ (1967) e, finalmente, Salesman (1969) dos irmãos Maysles e Charlotte Zwerin. A meio da tarde, três filmes franceses: Du Côté de la Côte (1958) de Agnes Varda, Blue Jeans (1958) de Jacques Rozier e o filme pioneiro do cinema-vérité de Jean Rouch e Edgar Morin Chronique d’un Été (1960). À noite Mário Ruspoli regressava com Regards sur la Folie (1962) em complemento do polémico Titicut Follies (1967) de Frederick Wiseman.

 

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O último dia de A Utopia do Real: Les Statues meurent aussi (1953) de Alain Resnais e Chris Marker, Moi, un Noir (1957) de Jean Rouch e Paris vu par...episódio Montparnasse-Levallois (1965) de Jean-Luc Godard ; Vilarinho das Furnas (1970) de António Reis e Nós (1967) de Artavazd Pelechian; Les Maîtres Fous (1954) de Jean Rouch e O Acto da Primavera (1962) de Manoel de Oliveira.

 

No total, o terceiro episódio de O Olhar de Ulisses, excluindo as Imagens da Ciência, ciclo onde, aliás, apareceram alguns documentários feitos para a televisão, mostrou 53 filmes, assim distribuídos em função da origem: França – 21 (39,62%), Portugal – 9 (16,98%), Estados Unidos da América – 9 (16,98%), Reino Unido – 3 (5,66%), Itália – 3 (5,66%), URSS (incluindo a Arménia) – 2 (3,77%), Cuba – 2 (3,77%), Canadá – 1 (1,88%), Irão – 1 (1,88%), Índia – 1 (188%), Egipto – 1 (1,88%).

 

A percentagem do cinema francês confirma os propósitos do texto introdutório e num episódio cronológicamente marcado não apenas pela nouvelle vague, mas também pelo novo cinema português, constata-se a presença de 56% de filmes de ambos os países. Em contrapartida, apesar de presentes, pouca relevância é dada ao cinema directo americano e ao documentário do Quebeque, o que, aliás, se reflecte nos textos do catálogo, e passa-se ao lado da produção documental americana mais politizada – a ausência de Emile de Antonio será, porventura, a mais notória. Do mesmo modo, não há referência às experiências cinematográficas encetadas em função da televisão das quais, uma das mais interessantes foi, certamente, The Candid Eye, no Canadá.


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Voltando a Nichols, a maioria dos filmes é suficientemente singular para escapar a qualquer tentativa de catalogação. Procedendo de forma idêntica à dos episódios anteriores, excluímos: La Terra Trema, O Desprezo, Onde Fica a Casa do Meu Amigo, A Floresta Interdita, O Rio Sagrado, A Balada da Estrada, Al Mummia e Mudar de Vida. Contudo, neste conjunto há filmes de cunho marcadamente documental, nomeadamente os de Visconti, Kiarostami e Paulo Rocha. De resto, parece ser evidente neste episódio de O Olhar de Ulisses, a par do problema dos actores, uma tendência para debater, no plano das narrativas, a dicotomia ficção/documentário.

 

Os restantes filmes foram alinhados em função de uma interpretação que apenas procurou identificar tendências dominantes. Assim, modo poético: Farrebique, Les Inconnus de la Terre, Louisiana Story, Les Hommes de la Baleine, Pour la Suíte du Monde, Pastor di Orgoloso, Banditi a Orgoloso, Vilarinho das Furnas e O Acto da Primavera; modo expositivo: Le Sang des Bêtes, Hotel des Invalides, Now e LBJ; modo de observação: Les Inconnus de la Terre, Nice Time, O Dreamland, Pour la Suite du Monde, Primary, Salesman, Regard Sur La Folie e Titicut Folies; modo participativo: L’Ordre, Pull my Daisy, The Conncetion e Chronique d’un Été; modo reflexivo: Cinema, A Caça, Índia, Jaime, Le Horla, Méditerrannée, Du Coté de la Côte, Blue Jeans, O Senhor, A Invenção do Amor, Les Statues meurent aussi, Moi, un Noir, Paris vu par... e Les Maîtres Fous; modo performativo: Le Sang des Bêtes, Hotel des Invalides, Nice Time, O Dreamland, We are the Lambeth Boys, Os Habitantes, L’Ordre, Le Mystère Picasso, Un Monde Agité, On The Bowery, Belarmino e Pull My Daisy.

 

De novo, a maioria dos filmes cabe em mais de uma categoria e, em rigor, a maioria deles tem um pouco de todas elas. Por exemplo, mesmo considerando Le Sang des Bêtes um documentário expositivo, como faz Nichols, é evidente que o filme de Franju suscita inúmeras questões e tem ressonância muito para além da mera exposição. Invocando Plantinga há um predomínio claro da voz aberta no conjunto dos filmes. As tendências dominantes consolidam, aliás, a impressão recolhida dos módulos anteriores: a aposta num tipo de documentário essencialmente inscrito no âmbito do cinema de arte e ensaio.

 

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Por essa razão, se neste módulo se impõe uma perspectiva essencialmente informada pela crítica dos Cahiers du Cinéma dos anos 50/ 60 – excepção feita à vertente maoísta – e pela política do gosto a ela associada, o seguinte, como se viu, teria de ser construído à maneira de uma trincheira, a partir da qual, esgrimindo argumentos recorrentes, se defende um ponto de vista tido como indiscutível.

 

Outros documentários - Apocalípticos e Integrados, A América de Errol Morris

 

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Como se depreende do texto introdutório de Apocalípticos e Integrados, onde se alude à necessidade de “inflectir o debate” deslocando-o “para um espaço mais interpelativo e menos integrado”, a Odisseia nas Imagens, cumprida a primeira fase da programação, principiou a dar corpo a outras iniciativas igualmente centradas no documentário ou incluindo documentários, arriscando incursões em domínios conexos, como, por exemplo, a fotografia documental – caso da exposição da Magnum a propósito da rodagem de Misfits de John Huston.

 

A América de Errol Morris, retrospectiva integral de um autor contemporâneo praticamente desconhecido em Portugal, obedeceu, portanto, ao princípio da diversidade sempre presente na História e reflexão sobre o Documentário. Decorreu nos dias 23, 24 e 31 de Março de 2001, no Auditório da Fundação de Serralves.

 

Errol Morris utiliza um controverso dispositivo de televisão, ao qual deu o nome de Interrotron e, mais tarde, de Megatron, através do qual tentou uma nova abordagem para o documentário. Baseados na entrevista, os seus filmes nunca o colocam face a face, pessoalmente, com os entrevistados. O contacto é estabelecido à distância através de câmaras e monitores.  Fonte: Medium
Errol Morris utiliza um controverso dispositivo de televisão, ao qual deu o nome de Interrotron e, mais tarde, de Megatron, através do qual tentou uma nova abordagem para o documentário. Baseados na entrevista, os seus filmes nunca o colocam face a face, pessoalmente, com os entrevistados. O contacto é estabelecido à distância através de câmaras e monitores. Fonte: Medium

Em Mr. Death: A América de Errol Morris alerta-se para a dificuldade de classificar os filmes de um autor a quem habitualmente se coloca a indesejável, para o próprio, etiqueta de documentarista. Na verdade, nas suas longas metragens, bem como nos seriados e filmes para a televisão, são reiteradamente utilizados processos narrativos da ficção. Nesse sentido, poder-se-ia pensar esta retrospectiva como um complemento do terceiro acto de O Olhar de Ulisses, tanto mais que Morris manifesta preferência por cineastas como Robert Bresson e Frederick Wiseman. Contudo, não é bem assim. Basta ponderar o seu método de trabalho e os temas de que se ocupa para essa ideia se dissipar.

 

As longas metragens exibidas – estreias absolutas – foram: Gates of Heaven (1978), um retrato excêntrico do sonho americano a partir da história de dois cemitérios de animais na Califórnia com sorte diversa; Vernon, Florida (1882), um fresco agridoce sobre um determinado tipo de comunidade branca americana, cujos protagonistas são, ente outros, um criador de minhocas, um padre que filosofa em sermões de 10 minutos sobre a palavra therefore (portanto) e um obsessivo caçador de perus; The Thin Blue Line (1988), filme da desconstrução de um crime que iria permitir inocentar um condenado à morte; Fast, Cheap and Out of Control (1997), uma história em quatro partes sobre o mito de Sísifo, cujas personagens discorrem apaixonadamente sobre as suas estranhas profissões, ou seja, domar animais selvagens, controlar o crescimento das plantas, classificar uma espécie animal em permanente mutação e construir robots que imitam os movimentos dos animais; e Mr. Death: The Rise and Fall of Fred A. Leuchter, Jr. (1999), a história de um pretenso especialista em tecnologias aplicadas às execuções da pena de morte, nomeadamente a cadeira eléctrica, que é levado por grupos neo-nazis a investigar e negar o Holocausto.

 

Mr. Death: The Rise and Fall of Fred A. Leuchter, Jr. (1999) de Errol Morris
Mr. Death: The Rise and Fall of Fred A. Leuchter, Jr. (1999) de Errol Morris

 

Em complemento, alternando com as longas metragens, foram exibidos todos os episódios de First Person Series (2000), um seriado documental para televisão cujos protagonistas, sendo reais, surgem como figuras radicalmente improváveis. Todas as sessões contaram com painéis de especialistas a quem coube problematizar e debater quer o método do cineasta, quer os temas e as personagens dos seus filmes. No catálogo de 109 páginas, 28 das quais inteiramente preenchidas com fotografias, há três textos originais e outros tantos recuperados de outras publicações. Na contracapa surgem duas citações, uma das quais de Marshall McLuhan: “All media are extensions of some human faculty – psychic or physical”. Num dos textos originais, João Lopes escreveu:

 

“Se quisermos ser irónicos, diremos que Morris tem o poder, também ele insólito, de abordar personagens e situações que, a serem produto da imaginação de um qualquer argumentista de Hollywood, seriam muito provavelmente menosprezadas como delírios gratuitos e inverosímeis. Por exemplo, (num) filme da mesma série, The Parrot, a personagem central é Max, nada mais nada menos que um papagaio que terá assistido a um crime violento (...): The Parrot termina com a claríssima sugestão de que algo ficou por esclarecer, algo de que o papagaio conservaria, se não o segredo , pelo menos um significativo indício de culpabilidade”.

 

The Thin Blue Line (1988) de Errol Morris
The Thin Blue Line (1988) de Errol Morris

Sublinhando que se algo é “dito-exposto-filmado no cinema de Morris é a sua resistência a qualquer inocência primordial do olhar – olhar é, por definição seleccionar e reconstruir o real”, João Lopes interroga-se:

 

“O que é o olhar no interior do universo de Errol Morris? Jogando com a ambiguidade vital dos infinitos, poderemos dizer que, com o cinema de Morris, ‘olhar’ e ‘ver’ são, de facto, coisas fundamentalmente diversas. Ou melhor: o excercício de ver pode ser algo de tão radical – e, se não tivermos medo da palavra, tão revolucionário – que se pode chegar ao ponto de ver sem, sequer, exercer um olhar”.

 

No ciclo esteve presente, como convidada, a RTP, numa tentativa de estabelecer um diálogo com vista a uma colaboração que permitisse fazer chegar ao pequeno écrã toda a diversidade das vozes do documentário. Daí resultaria a extensão em antena da Odisseia nas Imagens no canal 2 do serviço público no ano de 2002, tendo ficado em aberto a possibilidade de novos ciclos, nomeadamente do documentarismo português, que não viria a concretizar-se.


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 Continua

 

 

 

 

 

 

 
 
 

 


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Nanook of the North(1969) de Robert Flaherty: filme-concerto com Nils Petter Molvaer Foto: Cesário Alves

Como programar documentários é evidentemente uma pergunta para a qual não há uma resposta. Ou poderá haver várias, dependendo do ponto de vista e do ponto de partida. Seja como for, a reflexão sobre uma programação específica como foi a Odisseia nas Imagens talvez possa suscitar questões úteis para os programadores que queiram não apenas divulgar e dar a ver, mas também produzir pensamento e conhecimento ancorados, um e outro, no elemento imprescindível que é a memória. Esta publicação e as seguintes vão nesse sentido.

 

A Odisseia nas Imagens foi encarada com uma viagem pelo cinema, uma aventura pela descoberta, uma tela construída à semelhança de um mosaico na qual as diferentes partes deveriam ir ganhando a autonomia necessária à coesão e coerência do todo. Na verdade, a ideia da Odisseia nas Imagens nasceu de um poema do genial Konstantínos Kaváfis, o poeta grego (1863-1933) de Alexandria, intitulado Ítaca, que a seguir se transcreve na tradução de Jorge de Sena.

 

Ítaca

 

Quando partires de regresso a Ítaca,

deves orar por uma viagem longa,

plena de aventuras e de experiências.

Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros,

um Poseidon irado - não os temas,

jamais encontrarás tais coisas no caminho,

se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime

teu corpo toca e o espírito te habita.

Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros,

Poseidon em fúria - nunca encontrarás,

se não é na tua alma que os transportes,

ou ela os não erguer perante ti.

 

Deves orar por uma viagem longa.

Que sejam muitas as manhãs de Verão,

quando, com que prazer, com que deleite,

entrares em portos jamais antes vistos!

 

Em colónias fenícias deverás deter-te

para comprar mercadorias raras: coral e madrepérola,

âmbar e marfim, e perfumes subtis de toda a espécie:

compra desses perfumes o quanto possas.

E vai ver as cidades do Egipto, para aprenderes com os que sabem muito.

Terás sempre Ítaca no teu espírito, que lá chegar é o teu destino último.

Mas não te apresses nunca na viagem.

É melhor que ela dure muitos anos,

que sejas velho já ao ancorar na ilha, rico do que foi teu pelo caminho,

e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.

Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.

Sem Ítaca, não terias partido.

Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.

Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.

Sábio como és agora,

senhor de tanta experiência,

terás compreendido o sentido de Ítaca.

 


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 Porto 2001-Odisseia nas Imagens, retrospectiva. Sessão no Cinema Batalha, em 2023. Konstantinos Kaváfis e Ítaca em fundo: a viagem de Ulisses.

 

Ora, foi assumido desde o início o intuito de fazer do documentário o eixo dominante em torno do qual deveria estruturar-se a Programação de Cinema, Audiovisual e Multimédia do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura. Nessa altura, apesar da diversidade de iniciativas similares em toda a Europa, nenhuma parecia susceptível de servir de modelo a um propósito tão exigente e dilatado no tempo quanto se afigurava a Odisseia nas Imagens, pensada para cumprir um calendário de dois anos ao longo dos quais era suposto ser capaz de criar uma rede de parcerias indispensável à sua continuidade no futuro.

 

Por isso, logo se entendeu a necessidade de lhe conferir um carácter experimental como se de uma viagem exploratória, de uma aventura, se tratasse, com um primeiro ano mais circunscrito a uma visão essencialmente cinematográfica, assumindo, portanto, a matriz fundadora do olhar do cinema, e um segundo ano durante o qual, mantendo embora essa mesma matriz como referência, se propunha trabalhá-la em diálogo com outros modos de encarar o documentário. Esperava-se, assim, não só ganhar o público em geral para uma programação de elevada qualidade, recuperando o documentário através de episódios e obras fundamentais da sua História, mas também de promover o acesso ao público escolar de uma perspectiva do Cinema que se sabia ser, em muitos casos, dele praticamente desconhecida.

 

Nesse sentido, O Olhar de Ulisses seria como que uma espécie de parede mestra do edifício em construção. Mas, como também se depreenderá das notas dissonantes introduzidas em diferentes etapas da programação, cedo se vislumbrou a necessidade de encontrar um ponto de equilíbrio entre as diversas maneiras de encarar o documentário, tanto mais que O Olhar de Ulisses - independentemente da excelência dos filmes e da justeza da prioridade atribuída ao Cinema -, sobretudo a partir do segundo módulo da Odisseia na Imagens dava indícios de relutância quanto à possibilidade de contraponto com narrativas do presente alicerçadas em linguagens recolhendo subsídios de áreas exteriores ao cinema.

 


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A lógica da programação do documentário em O Olhar de Ulisses teve como ponto de partida uma organização temporal - tal como a Odisseia nas Imagens no seu conjunto –, em função da qual se identificavam territórios fundamentais do cinema documental sem, todavia, impor qualquer espartilho, antes estimulando cruzamentos que permitissem romper com visões estritamente diacrónicas. O primeiro episódio ocupar-se-ia da História do Documentário até ao advento do cinema sonoro, chamar-se-ia O Homem e a Câmara, numa alusão a Dziga Vertov e a um tempo em que a imagem fora rainha. O segundo episódio, O Som e a Fúria, deveria cobrir a fase compreendida entre o advento do cinema sonoro e o pós-guerra, uma época crítica durante a qual a voz chegou ao documentário, muitas vezes colocado ao serviço da propaganda. O terceiro episódio, centrado fundamentalmente na revolução operada nos anos 60 do século passado, teria como núcleo duro o direct cinema, o cinéma-vérité, bem como outros movimentos precursores ou contemporâneos, dos quais o neo-realismo italiano, o free cinema britânico e a nouvelle vague francesa são exemplos. O quarto e último episódio seria essencialmente dedicado ao cinema documental da actualidade.

 

Todos os módulos da Odisseia nas Imagens, independentemente da ampla divulgação feita através da comunicação social e da edição de catálogos, seriam profusamente publicitados através da edição periódica de um pequeno jornal. Esse jornal, constituindo um guia para o público pretendia ser, igualmente, um espelho da lógica global da programação

 

Ocupando um lugar central na Odisseia nas Imagens, uma vez que para além da programação dos filmes era suposto proporcionar um conjunto de propostas conducente à reflexão sobre o documentário – a publicação de catálogos, bem como a presença de especialistas na introdução e debate das obras deveriam responder a esse propósito – O Olhar de Ulisses tem, naturalmente, prioridade na revisão crítica sobre as opções programáticas. Num segundo momento, reflectir-se-á sobre outros ciclos e iniciativas onde diversos tipos de documentários estiveram, igualmente, presentes.

 

1. O Homem e a Câmara

 

O Olhar de Ulisses I - O Homem e a Câmara principiou a 3 de Maio de 2000 com A Criança Cega (1964) de Johan Van Der Keuken, filme que coloca simbolicamente o problema do olhar através da difícil aprendizagem dos cegos na sua relação com o mundo. Prosseguiu com Louis Lumière (1961) de Eric Rohmer, no qual Jean Renoir e Henri Langlois falam das origens do cinema e retomam a questão do olhar. Seguiram-se quatro filmes de Aurélio da Paz dos Reis (1896), remetendo para as primeiras imagens do cinema português, abrindo passagem para Pela Primeira Vez (1967), um curto documentário do cubano Octávio Cortazar onde se mostra a visita do cinema ambulante a uma aldeia perdida na Sierra Maestra, cujos habitantes nunca tinham visto um filme. Cortazar centra-se nas reacções do público à projecção de Tempos Modernos (1935) de Charlie Chaplin. Os filmes seguintes Citizen Langlois (1994) de Edgardo Cozarinsky e O Olhar de Ulisses (1994) de Theo Angelopoulos completaram a introdução do Ciclo. O filme de Cozarinsky funciona como uma espécie de guia inspirador do que viria a ser uma Programação obedecendo essencialmente a critérios de Cinemateca – o exemplo de Henri Langlois seria recorrentemente invocado –, cabendo ao filme de Angelopoulos como que iniciar a busca de um olhar primordial só ao alcance do Cinema.

 


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O Olhar de Ulisses (1995) de Theo Angelopoulos. Uma obra-prima do cineasta grego de cunho autobiográfico, uma espécie de balanço sobre o fim do século XX. A busca de filmes perdidos dos primórdios do Cinema ou a peregrinação pelo encontro com o olhar primordial.


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  Louis Lumière (1968), uma conversa entre Henri Langlois e Jean Renoir, conduzida por Eric Rohmer. Fonte: M movie meter

Esse propósito está, aliás, de algum modo expresso no texto introdutório do respectivo Catálogo assinado pelos programadores, Pierre-Marie Goulet e Teresa Garcia, quando recuperam uma passagem de L’homme à la caméra de Serge Daney e Louis Skorecki publicado no jornal Líbération: “Os cineastas habitam ainda um país que não figura em nenhum mapa geográfico. Porque ele engloba-os a todos. Esse país é o cinema e ainda estamos a tempo de o explorar - pelo interior.” As páginas seguintes reproduzem excertos de uma troca de correspondência entre Manoel de Oliveira e o principal responsável da Cinemateca Portuguesa João Bénard da Costa a propósito de A Carta (1999), filme de Oliveira com Pedro Abrunhosa, textos esses que incidem sobre o diálogo do cinema com as outras artes.

 

Os blocos seguintes fizeram a passagem para os filmes sinfonia e o cruzamento com as vanguardas artísticas dos anos 20 e 30, tal como sucede na maioria das publicações sobre a História do Documentário ou em textos de clássicos como o de Mark Cousins e Kevin Macdonald Imagining Reality, edição de 1996.

 

As sessões do dia 4 de Maio mostraram os seguintes filmes, assim ordenados: Rien que les Heures (1926) de Alberto Cavalcanti, Berlim, Sinfonia de uma Cidade (1927) de Walther Ruttmann, O Homem da Câmara de Filmar (1929) de Dziga Vertov, A Ponte (1928) de Joris Ivens, A Chuva (1929) de Joris Ivens, Images d’Ostende (1929-30) de Henri Storck e Douro, Faina Fluvial (1931-1995) de Manoel de Oliveira, na versão com música de Emmanuel Nunes. No dia seguinte: Philips Radio (1931) de Joris Ivens, Novas Terras (1934) de Joris Ivens, Las Hurdes (1932) de Luis Buñuel, Misère au Borinage (1933) de Joris Ivens e Henri Storck, Manhatta (1921) de Paul Strand e Charles Sheeler, L’Étoile de la Mer (1928) de Man Ray, Un Chien Andalou (1929) de Luis Buñuel, Une Idylle à la Plage (1931) de Henri Storck, L’Hippocamp (1934) de Jean Painlevé e La Carosse d’Or (1952) de Jean Renoir.

 


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A Saída dos Operários da Camisaria Confiança (1896) de Aurélio Paz dos Reis Fonte: PICRYL  

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Misère au Borinage (1933) de Joris Ivens e Henri Storck


Esta selecção, que culmina com a deriva de La Carosse d’Or de Renoir num sublinhado de exclusividade da imaginação – a fita passa-se num país inventado da América do Sul e propõe uma aproximação ‘realista’ a uma situação improvável – segue uma linha coerente em relação à qual prevalece uma ética do olhar, mesmo quando mergulha no surrealismo de Buñuel do qual se pode extrapolar, por exemplo, o sentido metafórico da célebre cena do corte da córnea do olho em Un Chien Andalou. Essa ética reflecte-se particularmente em Misère au Borinage e na sua recusa de emprestar qualquer tipo de glamour às imagens respeitantes às condições de vida miseráveis dos mineiros. Os filmes de Storck inscrevem-se numa dimensão poética, bem como os dois primeiros de Ivens, mas Misère au Borinage revela já outro tipo de preocupações. Apesar de não constar do catálogo, foi ainda exibido o Kino Pravda 21, numa referência à tradição de newsreels, na terminologia de Paul Rotha, que antecedeu Homem da Câmara de Filmar.

 

Nos dias 6 e 7 de Maio o ciclo enveredou pela exploração criativa de outra filiação clássica do filme documentário, à qual surgem genericamente associados o travelogue e as fitas de aventuras. Assim, no dia 6, as sessões começaram com filmes dos irmãos Lumière de 1896 em Roma, depois, em 1897, no Cairo, com fotografia de um dos seus mais famosos operadores, Alexandre Promio. Estes últimos serviram de pretexto para exibir de seguida Le Caire...Raconté par Chahine (1991) de Youssef Chahine, A Estação do Cairo (1958) também de Chahine a que se seguiu A Caminho do Sul (1980-81) de Johan Van Der Keuken e Tabu (1931) de Frederich W. Murnau e Robert Flaherty. No dia seguinte: Descrição de uma Ilha (1977-78) de Rudolf Thome e Cyntia Beatt seguido de dois clássicos de Robert Flaherty, Nanook of the North (1922) e Moana (1926). É significativa a escolha de Le Caire,,,Raconté par Chahine, um filme feito para a televisão, mas que dela se distancia na recusa de estereótipos e evidências, procurando antes assumir um tom reflexivo e, de algum modo, experimental.

 

Nos últimos dias 8, 9 e 10 de Maio – deixamos de lado a programação de Jean-Michel Arnold e Annick Demeule em Arqueologia e Desvios do Cinema Científico, enquadrada com a filosofia de O Olhar de Ulisses – o ciclo, concebido um pouco à imagem do que seria a montagem de um filme, como que cumpre uma trajectória circular, regressando ao olhar, mas culminando com um final em aberto, irónico e divertido, suscitando a questão do real e da ficção e deixando a pairar dúvidas sobre os limites da verdade e da mentira.

 


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Moana (1929) de Robert Flaherty

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Grass: a Nation Batlle for a Life (1925) da dupla Cooper/Schoedsack  

Assim, no dia 8, as sessões obedeceram ao seguinte alinhamento: In the Land of the War Canoes (1914) de Edward S. Curtis, para muitos o inspirador do chamado método Flaherty de certo modo já posto em prática neste filme; seguiram-se Grass: a Nation Batlle for a Life (1925) da dupla Cooper/ Schoedsack desta vez acompanhada pela jornalista e aventureira Marguerite Harrison, reportando a saga da tribo dos Bakthiari, pastores nómadas iranianos que migravam duas vezes por ano em busca de pastagens para os seus gados, Chang (1927), da mesma dupla, sobre a selva mítica da Ásia e o seus perigos e filme do qual resultaria, como corolário, King Kong (1933) igualmente de Merian Cooper e Ernest Schoedsack; a última sessão encerrava com uma nova deriva, agora O Salão de Música (1958) de Satyajit Ray onde, a pretexto do prazer da música se estabelece o confronto da decadente aristocracia feudal indiana com uma burguesia emergente e ávida de poder. Apropriadamente, a noite terminava com um concerto ao vivo de Sharmila Roy.

 

A primeira sessão do dia 9 de Maio começava com outro clássico das aventuras e viagens 90 Degrees South (1933) de Herbert Pointing sobre a trágica expedição de Scott ao Antártico e regressava à câmara de filmar com uma animação de Wladyslaw Starewicz, A Vingança do Cameraman (1911), seguida de The Cameraman (1928) de Edward Sedgwick e Buster Keaton, provavelmente o primeiro filme da História do Cinema a colocar a questão dos limites da intervenção jornalística em termos da espectacularização das imagens. A segunda sessão retomava Van Der Keuken com Criança Cega 2 (1966) e fechava com Peeping Tom (1960), filme de culto de Michael Powell sobre um serial killer que regista fotograficamente a morte das suas vítimas e que é uma profunda reflexão sobre o poder do cinema e das imagens.

 

A última sessão do dia 10 compreendia a Arqueologia e Desvios do Cinema Científico e fechava com F for Fake (1975) de Orson Welles, no qual o cineasta se diverte sobre a ideia de falsificação na arte assumindo-se como charlatão...

 

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F for Fake (1973) de Orson Welles

No total, excluindo os filmes programados em Arqueologia e Desvios do Cinema Científico, o primeiro episódio de O Olhar de Ulisses mostrou 44 filmes, assim distribuídos em função da origem: Estados Unidos da América – 10 (22,72%), França – 9 (20,45%), Holanda – 7 (15,90%), Bélgica – 3 (6,81%), URSS – 3 (6,81%), Portugal – 2 (4,54%), Reino Unido – 2 (4,54%), Alemanha – 2 (4,54%), Espanha – 1 (2,27%), Egipto – 1 (2,27%), Cuba – 1 (2,27%), Índia – 1 (2,27%), havendo ainda a considerar duas co-produções, uma Egipto/França – 1 (2,27%) e outra Grécia/França/ Itália – 1 (2,27%).

 

Para uma melhor compreensão da lógica da programação de O Olhar de Ulisses – veremos adiante como o ciclo iria evoluir no sentido do cinema de arte e ensaio preconizado, no essencial, pela política dos autores dos Cahiers du Cinéma –, independentemente da origem dos filmes, importa proceder ao escrutínio das tendências dominantes nos documentários exibidos em função de parâmetros conhecidos. Esses parâmetros tanto convocam critérios da historicidade quanto da teoria do documentário. Assim, as categorias de Rotha a propósito da tradição do documentário pareceram apropriadas no sentido de situar as áreas em que se inscrevem os diferentes filmes anteriores ou imediatamente posteriores ao advento do cinema sonoro. No entanto, essas categorias seriam, porventura, desajustadas para filmes posteriores, mais complexos, combinando diferentes formas narrativas. Neste caso, considerou-se preferível recorrer aos modos de Bill Nichols e, pontualmente, a William Guynn e Richard Plantinga, sem perder de vista que um mesmo filme integra, normalmente, uma variedade de vozes e de modos, podendo igualmente corresponder a diferentes tradições em simultâneo. Em qualquer dos casos, porém, sublinha-se que não se trata de avaliar qualitativamente os filmes e, muito menos, a Programação do ciclo no seu conjunto, mas apenas de encontrar elementos que ajudem a entender melhor o percurso feito, quer à luz de contributos da teoria do documentário, quer dos critérios delineados para o conjunto da Odisseia nas Imagens.

 

No caso do presente episódio, retiramos do âmbito da análise os filmes dos pioneiros do cinema, a animação e as obras habitualmente identificadas como sendo de ficção. Apesar do risco de simplificação de questões complexas, desde logo os critérios inerentes à lógica da Programação no seu conjunto, mas, também, as respeitantes ao que é hoje uma questão central da teoria do documenário, ou seja, a dicotomia documentário/ficção, a atenção incidiu unicamente sobre obras historicamente identificadas como documentários. Ficaram, assim, de fora: Os filmes de Paz dos Reis, os filmes dos operadores Lumière, O Olhar de Ulisses, King Kong, O Salão de Música, A Vingança do Cameraman, The Cameraman, La Carosse d’Or e Peeping Tom.

 


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 Bill Nichols Foto: Itzel Martínez del Cañizo 

 

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 Paul Rotha Fonte: National Portrait Gallery

Aplicando as categorias de Rotha parece razoável a seguinte colocação dos filmes:

 

tradição naturalista ou romântica: Tabu, Nanook of the North, Moana, In the Land of War Canoes, Grass: a Nation Battle for Fight e Chang;

 

tradição realista com filiação avant-gardeRien que Les Heures, Berlim, O Homem da Câmara de Filmar, A Ponte, Chuva, Images d’Ostende, A Propos de Nice, Douro, Faina Fluvial, Philips Radio, Novas Terras, Las Hurdes, Manhatta, L’ Étoile de Mer, Un Chien Andalou, Une Ydylle à la Plage e L’ Hippocampe;

 

tradição de newsreels: Kino Pravda 21 e O Homem da Câmara de Filmar; tradição da propaganda: Kino Pravda 21, O Homem da Câmara de Filmar, eventualmente Misére au Borinage, cujos autores, influenciados pela Revolução de Outubro e pelo cinema soviético fizeram a transição das vanguardas artísticas para os propósitos políticos e sociais.

 

A maioria destes filmes poderia caber também nos modos poético e reflexivo de Nichols. O mesmo poderia dizer-se dos dois filmes de Van Der Keuken sobre as crianças cegas. Os dois filmes de Chahine sobre o Cairo, Descrição de uma Ilha, A Caminho do Sul e Louis Lumière e F for Fake são predominantemente reflexivos. O cubano Pela Primeira Vez privilegia a observação e Citizen Langlois é expositivo. Desta cartografia resulta evidente a prioridade atribuída a um cinema de dominante poética, no sentido aristotélico, indissociável de elevado padrão de exigência estética.

 

Do conjunto de filmes apresentados ressalta a reduzida presença do cinema soviético - que nesta fase era de cunho essencialmente documental - com propósitos sociais e de propaganda ligados às vanguardas artísticas, constituindo, porventura, o mais estimulante laboratório cinematográfico do período anterior ao advento do cinema sonoro. Todos os filmes do ciclo – ou quase todos – eram acompanhados por textos publicados no catálogo O Homem e a Câmara de 336 páginas: “inéditos ou reedições, textos teóricos, críticos, entrevistas, cartas ou ainda poemas pretendendo “acompanhar as projecções dos filmes, mas também prolongá-las tornando-se um instrumento de reflexão.” Autores dos textos originais foram frequentemente destacados para introduzir o debate sobre os filmes durante as sessões.

 

Para este primeiro módulo de O Olhar de Ulisses foram convidados, para além de especialistas e cineastas portugueses, um número significativo de personalidades francófonas, nomeadamente Alok Nandi (autor e realizador), Gerald Collas (produtor de documentários), Gerald Leblanc (poeta e crítico de cinema), Jean-Louis Comolli (realizador e ensaísta), Jean-Michel Arnold (director do CNRS Images/medias), Olivier Smolders (realizador), Saguenail (realizador) e Serge Meurant (poeta, responsável do Festival de Cinema Documental “Filmer à tout Prix”).

 

Tanto quanto uma leitura do catálogo permite apurar, naquilo que respeita aos textos respeitantes aos filmes, excluindo, portanto, introduções, correspondência epistolar e a parte reservada às Imagens da Ciência, há 29 originais, na sua maioria curtas, mas pertinentes notas sobre os filmes em apreço, e 24 reedições cuja proveniência é, na maioria dos casos, ou as Folhas da Cinemateca Portuguesa ou publicações francesas ou em língua francesa, com destaque para os Cahiers du Cinéma. Os textos de pendor mais teórico são fundamentalmente dois, um sobre Vertov e O Homem da Câmara de Filmar intitulado O Futuro do Homem da autoria de Jean-Louis Comolli, originalmente publicado no número de Verão da Trafic nº 15, o outro de José Manuel Costa intitulado Grandeza de Flaherty publicado pela primeira vez no catálogo Robert Flaherty da Cinemateca Portuguesa em 1984.


 

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Continua

 

 


 

 

 

 

 

 
 
 
  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 11 de nov. de 2023
  • 27 min de leitura


“Every cut is a lie. It's never that way. Those two shots were never next to each other in time that way. But you're telling a lie in order to tell the truth.”

Wolf Koenig

“All my films are shot on hand-held cameras. These cameras took five years to build and had to be light enough to be carried.”

Robert Drew


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A originalidade deste texto, se alguma tiver, reside exclusivamente no facto de começar pelo fim, ou seja, pela controvérsia gerada em torno daquilo a que se chamou, e continua a chamar, cinéma-vérité, direct cinema ou, simplesmente, vérité. Só depois se falará do elo, porventura, mais negligenciado dessa aventura, o seriado documental para televisão intitulado The Candid Eye produzido pela Unidade B do National Film Board (NFB) do Canadá. Primeira nota, este cinema, que quis surpreender a vida tal como ela é, marcou o final dos anos 50 e o início dos anos 60 do século passado. É indissociável do aparecimento das câmaras de filmar portáteis de 16mm, bem como da invenção dos sistemas de gravação de som síncrono. Segunda nota, sob o guarda-chuva da palavra vérité cabem cineastas tão diferentes quanto o são Robert Drew, Albert Maysles, Mario Ruspoli, Jean Rouch, D. A. Pennebaker e Michel Brault, para citar apenas alguns. Terceira nota, o termo impôs-se depois de Jean Rouch e Edgar Morin terem proclamado, no início de Chronique d’un Été (1960), que se iria assistir à primeira experiência de cinéma-vérité. Com o passar do tempo, paradoxalmente, a palavra vérité viria a ser popularizada na América para designar o direct cinema, ao passo que na Europa direct cinema tomaria o lugar de vérité. Pode parecer um pouco confuso e é. Mas é mesmo assim. Quarta nota, Louis de Marcorelles, na sequência do célebre encontro de que a seguir se fala, escreveu nos Cahiers du Cinema: “il n’y a pas de cinéma-vérité.”


Vérité vs Direct Cinema: a controvérsia de Lyon


1. Para se entender a razão de ser dos aplicativos é necessário viajar até ao debate organizado pelo serviço público da televisão (RTF), então sob a direcção de Pierre Shaeffer, em Lyon, de 2 a 4 de março de 1963. Deu pelo nome assaz laborioso de Journées d’Études du Marché International des Programmes et Équipements du Service de la Recherche de la Télévision Française (MIPE-TV). Com três painéis, o debate devia incidir sobre as tecnologias que estavam a revolucionar a imagem e o som, o seu impacto no cinema e na televisão, bem como, ao que tudo indica por proposta de Jean Rouch e Mario Ruspoli, o cinéma-vérité. Quanto a este último, dever-se-ia falar de verdade, ponto de vista, objectividade, ética e estética, questões, afinal, recorrentes na teoria do documentário. Foram igualmente programados diversos filmes, cujo denominador comum era tão somente a utilização de câmaras portáteis de 16 mm. Exemplos: Primary (1960) de Drew Associates, La Punition (1962) de Jean Rouch, Showman (1963) dos irmãos Maysles, Regard sur la Folie (1961) e Méthode 1 (1963) de Mario Ruspoli, Joli Mai (1963) de Chris Marker.


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Showman (1963) de The Maysles Brothers

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Regard sur la Folie (1961) de Mario Ruspoli

Em torno dos membros do Service de la Recherche dirigido por Schaeffer juntou-se uma lista impressionante de participantes. Entre os cineastas, além dos inevitáveis Jean Rouch e Edgar Morin, havia, por exemplo, Richard Leacock, Robert Drew, Albert Maysles, Morris Engel, Jacques Rozier, Claude Goretta, Georges Rouquier, Mario Ruspoli, Joris Ivens e Alain Tanner. Entre os fotógrafos e operadores de câmara, Michel Brault, William Klein, Pierre Lhomme e Raoul Coutard. Presentes, também, importantes fabricantes dos novos equipamentos, casos de André Coutant, Jacques Mathot e Stephan Kudelski. Ainda, figuras de proa do jornalismo, da crítica e da História do Cinema como Georges Sadoul, Louis de Marcorelles, Guy Allombert e Nicole Zand. Finalmente, representantes de influentes magazines jornalísticos da época como Cinq Colonnes à la une da televisão francesa e Continents sans Visa da televisão suíça.


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Jean Rouch Fonte: Docuseek

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Mario Ruspoli Fonte: Video Librarian

Entre 1960 e 1962 não houve grande polémica em torno das matérias debatidas em Lyon. Grosso modo, os canadianos anglófonos e os americanos situavam-se no plano da observação e da espontaneidade do olhar como forma de aceder à vérité, enquanto os canadianos francófonos e os europeus, sobretudo os franceses, com o mesmo objectivo, defendiam como método a intervenção e participação por parte dos cineastas. Uns e outros partilhavam o entusiasmo pela tecnologia. As posições de um lado e outro eram, no entanto, manifestamente incompatíveis. O encontro criou as condições para o confronto. Mas, a tendência para considerar a guerra aberta em Lyon, exclusivamente, como um enfrentamento de americanos e franceses é exagerada. Sendo também isso, de lá saíram igualmente pontos de vista mais elaborados como irá transparecer do que adiante se diz.


Em todo o caso, para a memória futura, ficou, sobretudo, a dimensão mais acesa do que aconteceu nesse início de Março de 1963. Jean Rouch e Richard Leacock não pouparam nas palavras. O primeiro - cinéma-vérité - respeitando a perspectiva etnográfica, participativa e interactiva, e valorizando a intervenção do cineasta de modo a fazer emergir momentos de revelação. O segundo - direct cinema - proclamando a superioridade da observação, da não intervenção, por forma a permitir ao espectador a situação privilegiada de estar a viver os acontecimentos. Dizia Leacock:


“As regras deste tipo de jogo são, frequentemente, muito severas: nunca fazer uma pergunta; nunca pedir a ninguém que faça o que quer que seja; nunca pedir a ninguém para repetir uma acção ou voltar a dizer uma frase que não tenha sido possível registar; nunca pagar a ninguém; etc. Se são as mesmas pessoas que filmam e editam o material os resultados podem ser definidos com uma consequência da percepção do observador em função daquilo que aconteceu diante de uma câmara.”


O remoque de Rouch, repetido vezes sem conta em múltiplas ocasiões, não se fez esperar:


“O que me surpreende em Leackok é vê-lo intoleravelmente fechado em relação a outros filmes. É muito estranho. Fiquei com a impressão que não lhe interessa nada o que outros andam a fazer. Deve pensar que resolveu todos os problemas e que não tem mais nada a aprender com quem quer que seja. Para mim, Leacock é um repórter. Foi devorado pela informação que é, a meu ver, uma maquinaria terrível.”


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Richard Leacock Fonte: The Center for Independent Documentary

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Michel Brault Fonte: Estado de Minas

Robert Drew, que sempre reivindicou ser o criador do cinema directo, alinhou, evidentemente, pelo diapasão de Leacock. Chegou ao ponto de desqualificar a maioria dos documentários feitos até então colando-lhes o rótulo de “falsificações.” O mesmo sucedeu com Albert Maysles, outro dos homens por detrás do lendário Primary (1960), um documentário feito num registo observacional que acompanha o dia a dia dos candidatos John F. Kennedy e Hubert Humphrey durante as eleições primárias do Partido Democrático no Wisconsin. Em nome da verdade e da objectividade, Maysles proclamou a interdição de qualquer interferência dos cineastas no acto de filmar, rejeitando, inclusivamente, a edição ou, quando muito, reduzindo-a ao mínimo.


Em representação da revista Movie (1961-1964), inspirada nos Cahiers du Cinema, também esteve em Lyon um seu co-fundador, o então muito jovem Mark Shivas. Mais tarde destacado produtor de cinema e televisão do Reino Unido, galardoado com diversos prémios, Shivas escreveu a propósito das posições assumidas por Drew, Maysles e Leacock :


“Podendo agora registar simultaneamente a imagem e o som acreditavam que tudo o mais, incluindo qualquer espécie de ensaio ou pós-sincronização, era imoral e, portanto, descabido numa mostra integrada numa conferência sobre cinéma-vérité. Não sendo os filmes espontâneos, diziam eles, como podiam ser verdadeiros?”


deriva 1. Assisti a uma sessão comemorativa dos 40 anos de Primary ao lado de Albert Maysles. Integrado no segmento O Olhar de Ulisses da Odisseia nas Imagens do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura, o filme deu lugar a um vivo debate, o que não deixa de ser surpreendente atendendo à passagem do tempo e ao facto de ter acontecido numa cidade de Portugal, país onde o fenómeno vérité teve impacto difuso, descontado o caso singular de Belarmino (1964)) de Fernando Lopes. Maysles, um homem extremamente simpático de cabelo branco e olhar tranquilo por trás de uns óculos de aros grossos, falava pausadamente, como se cada palavra tivesse sido cuidadosamente medida. Dir-me-ia, no final da projecção: “Continua a ser um filme maravilhoso, não fosse o texto inicial em voice over e seria perfeito.” Portanto, 40 anos mais tarde, a antiga chama continuava viva. Falamos depois sobre os seus filmes feitos em colaboração com o irmão David, entretanto falecido, manifestando ele preferência, entre outros, por What’s Happening! The Beatles in the USA (1964), Meet Marlon Brando (1966) Gimme Shelter (1970), Christo’s Valley Curtain (1974), mas, sobretudo, por Salesman (1969) e Grey Gardens (1976). Durante a conversa, além de ficar a saber que Easy Rider (1969) de Dennis Hopper continuava a ser um dos seus preferidos, Albert Maysles falou-me do modo como se relacionava com os seus protagonistas reiterando a convicção da superioridade do cinema directo, todavia, visto de um outro modo. Passara a sustentar a existência de dois tipos de evidência. Por um lado, uma verdade imediata, a qual estaria presente em todo o material filmado como se de um diário cinematográfico se tratasse. Por outro, uma verdade resultante da organização coerente do material em bruto em termos de narrativa, o que, evidentemente, pressupunha a possibilidade de algum tipo de subjectividade. Sendo assim, o cinema directo proclamaria ainda o primado da evidência, só que essa evidência seria a de um observador privilegiado que viu as coisas de uma determinada maneira, reclamando, ao fim e ao cabo, a legitimidade de uma autoria resultante da utilização de um método específico. Sabendo-se que o ponto de partida desta aventura foi a reivindicação de uma objectividade absoluta consequente da inovação tecnológica, na base da qual está a prática do cinema directo, a evolução é significativa. Até porque foi essa ideia de objectividade que levou a cadeia de televisão ABC e o patrocinador Bell & Howell a apoiarem as experiências pioneiras de Robert Drew e Richard Leacock na busca de um novo jornalismo de televisão…


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The Maysles Brothers Fonte: Jewish Story Partners

2. De regresso a Lyon para lembrar que o debate, em particular, no que respeita à apreciação do cinema directo, conheceu múltiplas declinações. Nöel Carroll, filósofo e ensaísta, resumiu a questão do seguinte modo: “O cinema directo abriu uma caixa de serpentes e acabou sendo devorado por elas.” A declaração será hiperbólica. Em todo o caso, aberta a caixa de Pandora, ainda hoje o debate encontra eco no pensamento sobre o documentário. Vejamos, a título de exemplo, algumas opiniões.


Para Joris Ivens, que em Lyon se aproximou das posições de Jean Rouch, mas, sobretudo de Georges Sadoul, vérité era uma expressão falaciosa, posto que seria sempre necessário colocar a questão prévia de saber de que verdade se estava a falar, quem a produzia, sob que condições e quais os seus destinatários. Tanto mais, argumentava Ivens, que as características extraordinárias dos novos equipamentos, ao invés de contribuirem para a revelação do real, podiam conduzir ao seu apagamento devido ao risco do cineasta sucumbir a um eventual efeito de fascínio pela tecnologia. Entendia, por outro lado, que o documentário não devia escusar-se a ser advogado de causas e, como tal, admitia, em função das circunstâncias, a necessidade de filmes comprometidos.


Jean-Luc Godard, num artigo publicado nos Cahiers de Cinema pouco depois do encontro, apontou a Leacock e aos seus companheiros uma contradição essencial ao não terem consciência de que o olho, no acto de olhar através do visor da câmara, obedece a critérios de reflexão e selecção: “Desprovida de consciência, a câmara de Leacocock, apesar da sua honestidade, prescinde de duas características fundamentais: a inteligência e a sensibilidade.” Na mesma linha, embora mais mordaz, Lindasy Anderson, ele próprio um pioneiro de um certo tipo de observação presente no Free Cinema britânico, do qual foi um dos fundadores, diria que o cinema directo não era mais do que um pretexto para desvalorizar o ponto de vista criativo e afirmar a superioridade de abordagens supostamente jornalísticas. Werner Herzog, ainda menos simpático, acusou D. A. Pennebaker, cineasta do famoso Dont Look Back (1967) com Bob Dylan e, também ele, um homem de Primary, de fazer um “cinema de contabilista.”


Frederick Wiseman, nome maior do cinema de observação, rejeitou qualquer pressuposto de objectividade. A dada altura, passou a chamar aos seus filmes ficções do real. O propósito, segundo ele, seria fazer emergir desse real observado o essencial, de modo a que o destinatário pudesse decidir pela sua cabeça sobre a construção da realidade. Fez isso logo no primeiro filme, Titicut Follies (1967), um retrato da vida no interior de uma instituição psiquiátrica. A controvérsia daí resultante, diga-se, foi de tal monta que contribuiu para lhe conferir notoriedade. Errol Morris, autor de diversos filmes com impacto social, entre os quais The Thin Blue Line (1988) que salvou um condenado no corredor da morte de uma prisão americana da execução da pena, nunca viu qualquer possibilidade de alcançar o conhecimento através do cinema directo. Em seu entender, a prática da mera observação parecia querer dispensar qualquer intervenção de ordem epistemológica.


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Titicut Follies (1967) de Frederick Wiseman

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Frederick Wiseman: “I’m not a fly on the wall. I’m at least 2% conscious”… Fonte: Vanity Fair

3. Variantes do cinema directo foram tentadas em países europeus por documentaristas como Roger Graef e Paul Watson, na Grã-Bretanha, e Mário Ruspoli em França. Foi este último, de resto, quem cunhou a expressão “cinema directo” no contexto da polémica de Lyon. Algumas dessas variantes deram origem a episódios curiosos em torno dos critérios dos operadores da televisão. Por exemplo, em 1972, a ideia de preservar a objectividade suscitou uma reacção por parte da BBC, a qual, invocando não critérios jornalísticos, mas as teses de John Grierson dos anos de 1930, levou o responsável pela área dos documentários, Richard Cawston, a publicar uma directiva denominada Principles and Practice in Documentary Programme. Dizia:


“O documentário explora um assunto em profundidade. Não se limita a mostrar, ilumina. Não lhe basta informar, antes deve suscitar uma profunda reflexão e compreensão que está muito para além de uma mera apresentação dos factos.”


Dai Vaughn, ensaísta e editor de documentários, ponderou se deveria entender o experimentalismo observacional como “mera apresentação de factos” em prejuízo da “compreensão em profundidade.” Conhecedor dos procedimentos televisivos, ironicamente, comentou:


“1) Um plano de alguém a falar é mais verdadeiro do que um plano de alguém que escuta; 2) Alguém que está consciente da presença da câmara, está consciente da audiência da televisão; 3) Algo dito propositadamente para a câmara é mais real do que uma resposta espontânea; 4) O que o realizador vê quando a câmara está ausente é o que estaria a acontecer se ele próprio estivesse ausente.”


A influência do direct cinema e (ou) vérité continuou e continua presente. Faz parte do acervo de experiências que integram o cinema do real. Se há cineastas que optaram, essencialmente, por um registo de observação, outros seguiram as pisadas daquilo que Georges Sadoul tão insistentemente defendeu em Lyon, e não só, como sendo vérité. Hoje, é consensual a possibilidade de inúmeras combinações narrativas no quadro daquilo a que Bill Nichols chamou os modos do documentário. Sem entrar em detalhes, são eles seis: poético; expositivo; observacional; participativo; reflexivo; performativo. Independentemente das declinações posteriores em torno da tipologia, importa relevar que, em tese, todos os modos, em maior ou menor grau, podem estar presentes num mesmo documentário. Por exemplo, um documentário de observação terá sempre uma componente expositiva.


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Crisis: Behind a Presidential Commitment (1963) de Robert Drew

Por outro lado, a historicidade subjacente ao modelo de Nichols, fazendo corresponder a cada um dos modos determinada diacronia, permite localizar no tempo quer a função da tecnologia, quer do pensamento e das linguagens a ela associados. Nesse contexto, facilmente se constata que o cinema directo, no final dos anos 50 e início dos anos 60, permitiu sedimentar uma nova concepção do documentário, ampliando o contacto com o real, e rejeitando tanto as reconstruções quanto o enfoque predominantemente educativo ou de propaganda.


Flashback: The Candid Eye, o olhar espontâneo


4. No final dos anos 50, nos Estados Unidos e no Canadá, o documentário parecia ter chegado a um impasse. A vulgarmente chamada “fórmula de Grierson” dava origem a filmes estruturados em torno de uma voz omnipresente intercalada com entrevistas, resvalando, as mais das vezes, para corruptelas pedagógicas sem chama da imaginação como se diz no início de Cinema Vérité: defining the Moment (2001) de Peter Wintonick. Não cabe aqui discutir a bondade da vulgata construída a propósito do legado de Grierson. Direi apenas que, a meu ver, esse legado é bem mais complexo, diversificado e estimulante do que o sugerido. Em todo o caso, como sucede com todas as simplificações, a fórmula conduziu a uma produção rotineira, contribuindo, assim, para o desinteresse do público.


A reacção viria quer dos Estados Unidos por Robert Drew e Associados, quer de cineastas canadianos de língua francesa e inglesa. Uns e outros, americanos e canadianos, pensavam na possibilidade oferecida pela televisão de fazer chegar o documentário a um público potencialmente muito mais numeroso do que o das salas, das quais, de resto, tinha praticamente desaparecido. As experiências de Drew e dos canadianos de língua francesa, como Michel Brault, estão fartamente sinalizadas. Menos divulgadas são as experiências dos canadianos de língua inglesa, entre os quais se destacam dois dos principais pioneiros do cinema directo, Wolf Koenig e Roman Kroitor, ambos ligados ao seriado documental para televisão The Candid Eye, cujos filmes foram pioneiros, impondo um estilo, e sendo, hoje, frequentemente, objecto de curadoria.


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Wolf Koenig Fonte: NFB

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Roman Kroitor Fonte: CBC

A história do seriado remonta às primeiras tentativas do operador público de televisão, Canadian Broadcasting Corporation (CBC), de contrariar a rotina de modo a poder voltar a ganhar os favores do público. Por essa altura, a quase totalidade da produção tinha lugar no National Film Board (NFB), por sinal, criado sob orientação de John Grierson, em 1939, nos alvores da II Guerra Mundial. A maioria dos filmes eram da responsabilidade da chamada Unidade B, anglófona, com a qual colaboravam, amiúde, elementos do grupo francófono. Quando On the Spot, um magazine sobre a vida quotidiana no Canadá, exibido entre 1953 e 1955, deu os primeiros passos na inversão de rumo, nos documentários ainda se observavam regras estritas de produção. Exigia-se, por exemplo, um argumento pormenorizado, havia a obrigatoriedade de usar o tripé e os diálogos tinham de ser previamente escritos. Apesar da bondade da iniciativa, os resultados de On the Spot, não foram animadores. Seguiu-se, com maior autonomia, durante um período de três anos, Perspective, outro magazine igualmente virado para temáticas do dia a dia, mas com uma diferença. On the Spot era essencialmente reportagem jornalística. Perspective apresentava-se formalmente mais elaborado, recorrendo a dispositivos cinematográficos e beneficiando do virtuosismo de operadores já inteiramente conscientes da possibilidade de libertar a câmara de filmar. Basta seguir Corral (1954), pequena obra-prima de onze minutos de Colin Low, para se perceber o sofisticado nível de observação atingido, no caso, pelo cameraman Wolf Koenig. Corral, note-se, é anterior ao início de Perspective.


A etapa seguinte foi produzir um modelo para um novo seriado baseado, justamente, na linguagem inerente às câmaras de filmar de 16 mm. A tarefa foi entregue a Koenig e Kroitor, a produção executiva a Tom Daily, outro ícone do National Film Board, e daria origem a um filme intitulado The days before Christmas (1957) assinado por Stanley Jackson, Wolf Koenig e Terence Macartney-Filgate. Este último seria outra das luminárias de Primary. Entre os operadores de câmara regista-se a presença de Michel Brault, da Équipe Française, que ficaria para a História do Cinema não só pelos seus filmes, mas também por ter sido figura de proa do cinema do Quebeque. De passagem, o documentário tem pontos em comum com alguns filmes do Free Cinema britânico, designadamente, Everyday Except Christmas (1957) de Lindsay Anderson.


A experiência de The days before Christmas levou a concluir ter sido encontrada uma solução. Em primeiro lugar, tendo combinado a utilização de dois tipos de câmaras, a Arriflex, mais ligeira, e a Auricon, um pouco mais pesada, e tendo, igualmente, som síncrono em vários takes, a equipa pôde demonstrar a adequação dos novos equipamentos ao objectivo prosseguido. Em segundo lugar, ficou provada a possibilidade de fazer imagens interessantes a partir de assuntos tão familiares quanto o eram as movimentações das pessoas preparando-se para o dia de Natal. Em terceiro lugar, há em The days before Christmas um plano sequência - quando Wolf Koenig acompanha um agente da polícia que escolta a transferência de um saco de dinheiro de um armazém para uma viatura blindada - que Michel Brault considerou revolucionário. Porquê? Pois bem, de um modo geral, os operadores envolvidos no filme optavam por filmar à distância, com teleobjectivas, de modo a não interferir e, assim, preservar a espontaneidade das pessoas e das acções. Neste caso, porém, Koenig colocou uma lente grande angular na sua Arriflex e filmou enquanto caminhava atrás do guarda, desde a saída do armazém até à viatura, mantendo o close-up da sua mão junto da arma no coldre à altura da cintura. “Foi a primeira vez - disse Brault - que vi um operador com a câmara na mão a prescindir de enquadrar, ou seja, finalmente alguém me mostrava o que era preciso fazer e, desde então, raramente voltei a proceder de outro modo.”


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The Days Before Christmas (1957), The Candid Eye Series, NFB Fonte: NFB

A partir de então, a espontaneidade do olhar inspirada no momento decisivo de Henri Cartier-Bresson, passaria a ser a norma dos documentários de The Candid Eye: sem script, largamente improvisados, com planos sequência a fazer lembrar solos de instrumentistas de jazz, em busca de significado no aparentemente banal. Mais treze filmes foram produzidos, que todos eles emitidos em The Candid Eye, cujo primeiro episódio, Blood and Fire (1958) de Terence Macarteney-Filgate - um filme sobre o Exército de Salvação - foi para o ar no dia 26 de Outubro de 1958, um domingo, ao fim da tarde.


deriva 2. O cineasta espanhol Llorenç Soler, recentemente falecido, autor de diversos filmes de carácter social e experimental, entre os quais Francisco Boix, un Fotógrafo en el Infierno (2000) e Max Aub, un Escritor en su Laberinto (2003) entendia que a matéria prima do documentário era apenas um reflexo visível e exterior, uma aparência, daquilo a que chamava realidade. Seria apenas uma questão de ordem semântica, porventura resultante da diferença de idiomas, mas a realidade não a entendia eu como ele a entendia. Para mim, a realidade é sempre uma construção. Resulta da metamorfose do real através da mediação de uma linguagem. Por isso, não há uma realidade, há várias, posto que a linguagem autoriza diferentes interpretações de uma mesma matéria. No essencial, contudo, as nossas conversas sempre tiveram muitos pontos de convergência. No seu livro Los hilos secretos de mis documentales, Soler refere que para cada plano é escolhido um enquadramento diferente, sendo que a operação de enquadrar tem uma função de exclusão “já que o olho da câmara vê sempre, exclusivamente, na sua própria direcção e em sentido frontal, esquecendo tudo quanto acontece ao lado ou por trás da câmara.” É óbvio. No entanto, é igualmente evidente a possibilidade de mudança de enquadramento dentro do mesmo plano, por exemplo, fazendo panorâmicas ou utilizando a lente zoom, como tantas vezes se vê no cinema directo, cuja natureza parece favorecer o plano sequência. Por outro lado, a construção da realidade cinematográfica é também determinada pelo corte, cuja função não é meramente mecânica, bem pelo contrário, cabe-lhe conferir significado.


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Llorenç Soler Fonte: Levante Valenciano

Para Soler, o sentido começa por existir no interior de cada plano em função do binómio enquadramento + tempo, embora o sentido de um plano nunca seja unívoco. E menos ainda quando “a aplicação da operação destrutiva-construtiva de corte e reorganização do material gravado age incisivamente sobre o factor tempo.” Na linha do pensamento realista de André Bazin, a construção resultante da montagem, segundo Soler, confere “um poder manipulador desmesurado ao autor de um documentário.” E assim sendo, não faria sentido dizer que os documentários são fiéis transmissores de “ideias verdadeiras” e, menos ainda, falar de objectividade absoluta como sugeria, acrescentaria eu, Robert Drew. Do meu ponto de vista, o problema da evidência documental terá de ser encarado no âmbito do tempo histórico, numa perspectiva dinâmica. E, como tal, relativizado. Por exemplo, o apagamento do autor, o não interferir, o não perguntar, o não interromper do cinema directo mais radical, viria a ser moderado mesmo por alguns dos seus mais devotados praticantes. Foi o caso de Albert Maysles que, a dada altura, passou a sustentar a existência de dois tipos de evidência. Por um lado, a evidência presente em todo o material filmado como se de um diário cinematográfico se tratasse. Por outro, a evidência resultante da organização coerente do material em bruto em termos de narrativa, o que, naturalmente, pressupõe admitir a possibilidade de algum tipo de subjectividade.


5. Dos filmes de The Candid Eye poder-se-ia dizer, por um lado, que se afastam do ponto de vista radical do Robert Drew que esteve em Lyon e, por outro, que se aproximam da posição mais tardia de Maysles, bem como, em alguns breves momentos, do registo vérité. Seria, porém, incorrecto dizê-lo. Por uma simples razão. A experiência do seriado documental canadiano é anterior às experiência do screen jornalism, cinema directo e cinéma-vérité. The Candid Eye foi, realmente, pioneiro. Os seus principais artífices foram Wolf Koenig e Roman Kroitor, de quem adiante se fala, a par de Terence Macartney-Filgate, Colin Low e Tom Daily.

Koenig trabalhou 47 anos no National Film Board. Teve uma carreira notável. No início dos anos 50 do século passado colaborou com Norman McLaren na animação Neighbours (1952) premiada com um Oscar da Academia. Foi a primeira de numerosas distinções. City of Gold (1957), em parceria com Colin Low e com a colaboração de Kroitor na escrita, foi também nomeado para os Oscars, tendo sido galardoado com 14 prémios internacionais, entre os quais a Palma de Ouro em Cannes na categoria de documentário curto. O filme utiliza fotografias antigas, recuperando a febre do ouro em Klondike e Dawson City onde Charlie Chaplin fez Gold Rush (1925). Por sua vez, Kroitor, tal como Koenig um dos primeiros a utilizar câmaras ligeiras e gravadores portáteis, cometeu a proeza de, durante décadas, ser um inovador em múltiplos domínios. Cineasta, produtor, escritor, editor e inventor, o seu nome está ligado a diversos avanços tecnológicos. É dele, também, em colaboração com Tom Daily, Universe (1960), possivelmente o filme mais elogiado alguma vez produzido pelo National Film Board. Universe é uma viagem pelo espaço, em animação, feita com tal rigor matemático que foi utilizada pela NASA quando se tratou de planear a colocação do homem na Lua. Mais tarde, Stanley Kubrick utilizou as mesmas técnicas em 2001: A Space Odyssey (1968). O nome de Kroitor aparece nos créditos de mais de 100 filmes, em diversas funções, muitos dos quais nomeados para os Oscars e BAFTA e premiados nos mais importantes festivais internacionais. A título de curiosidade, em Cannes, o prémio de Melhor Documentário de Televisão foi atribuído a The Back-Breaking Leaf (1959) de Terence Macartney-Filgate, com produção de Kroitor e Koenig.


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Glenn Gould - Off The Record (1959) de Wolf Koenig e Roman Kroitor Fonte: NFB

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Glenn Gould - On the Record (1959) de Wolf Koenig e Roman Kroitor Fonte: NFB

Não cabe aqui explanar a totalidade dos filmes de The Candid Eye. Mas, importa relevar a importância dos dois documentários feitos com Glenn Gould, na altura o pianista de maior notoriedade em todo o mundo, os quais permitirão dar seguimento a uma breve abordagem de Stravinsky (1965) e Lonely Boy (1963). Glenn Gould - Off The Record (1959) e Glenn Gould - on the Record (1959), ambos da autoria da dupla Kroitor e Koenig, combinam observação e espontaneidade, recorrem mais ao registo de conversas do que à entrevista e não prescindem de um discreto texto de Stanley Jackson para efeito de enquadramento das situações. O primeiro filme começa com o então muito jovem Gould nas ruas de Nova Iorque a caminho da sede do famoso fabricante de pianos Steinway & Sons. No entanto, a maior parte decorre na sua casa perto do lago Simcoe, a 150 quilómetros de Toronto, para onde habitualmente se retirava quando não estava a gravar ou em digressão. O segundo filme começa igualmente em Nova Iorque. Os ângulos escolhidos para filmar, certamente não por acaso, fazem lembrar Manhatta (1921) de Paul Strand, com se se tratasse de uma breve celebração da grande cidade. Desta vez, o pianista caminha em direcção aos estúdios da Columbia Records, onde vai gravar. A câmara de Wolf Koenig terá tido, nessa ocasião, alguns dos seus momentos decisivos mais memoráveis, elevando o olhar espontâneo ao patamar da fascinação. Sendo uma pessoa singularíssima, Gould prestava-se, com naturalidade, à metamorfose que permite transformar o protagonista em personagem. Notável é igualmente a performance dos restantes elementos no estúdio onde tudo acontece como se estivesse a acontecer, de facto, no momento em que vemos o filme. Sendo tudo artifício, nada soa a falso. O rigor e virtuosismo de Koenig com a câmara acompanham o rigor e virtuosismo de Gould no piano. A narrativa é de tal modo fluída que o corte na montagem de James Beveridge passa praticamente despercebido.


Seis anos mais tarde, já não no âmbito do seriado, mas utilizando um dispositivo semelhante, seria feito Stravinsky, o último filme em parceria dos dois cineastas no estilo Candid Eye. Nomeado para o BAFTA do documentário, Stranvinky recolheu aplauso generalizado. Em 1966, ganhou, no Canadá, o prémio de Melhor Filme Informativo do ano, designação curiosa, posto ser reveladora da proximidade institucional do documentário de televisão com o universo do jornalismo, mesmo quando, como é o caso, pouco ou nada tem que ver.


6. Stravinsky (1965) começa com o compositor, então com 83 anos, a entrar no estúdio onde já se encontrava a Orquestra Sinfónica da Canadian Broadcasting Corporation (CBC) pronta para gravar a sua Symphony of The Psalms. Na altura, a mais imponente figura da música moderna erudita, Igor Stravinsky, apesar da fragilidade própria da idade, continuava a ser um homem extremamente jovial. A presença da câmara de filmar não o inibia. Tal como Glenn Gould, prestava-se, com naturalidade, a fazer de si mesmo. Rodado durante um longo período de tempo, o documentário tem uma estrutura narrativa que contempla a existência de duas acções em paralelo: numa, Stravinsky conduz a orquestra; na outra, está em viagem, com a mulher e amigos, num paquete com destino a Hamburgo. De cada vez que a gravação da sinfonia é interrompida no estúdio, os cineastas cortam para cenas a bordo do navio, mar adentro, até ao destino, quando o compositor desembarca e vai desaparecendo no meio da multidão. Pelo meio, há ainda saltos temporais e mudanças de local justificados por imperativos de clareza expositiva. A viagem, evidentemente, tem ressonância metafórica enquanto sugestão de percurso de vida.


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Stravinsky (1965) de Wolf Koenig e Roman Kroitor Fonte: NFB

Koenig opera com a destreza habitual. Na presença de Stravinsky tanto joga com a distância da câmara quanto tira partido da comunicação não verbal do compositor, sempre muito expressivo. Se desloca a câmara é porque parece adivinhar o que vem a seguir. Sendo necessário, altera o enquadramento do plano através da lente zoom. Em qualquer dos casos, não interrompe a filmagem. Marcel Carrière, outra luminária do National Film Board da Equipe Française, faz o som síncrono. Regista detalhes. O trabalho de equipa assenta num jogo combinatório onde observação e espontaneidade alimentam o que há-de ser a respiração do texto fílmico, As imagens fluem em articulação com a música e a palavra. Há, de novo, o recurso ao registo de conversas, não apenas com Stravinsky, mas também com quem o acompanha. Há igualmente, lugar para a entrevista, bem como para uma voice over pontual, que sinaliza o contexto. Da entourage fazem parte Julian Bream, Robert Craft, John McLure, a mulher de Stravinsky, Vera, e Nicolas Nabokov. Todos celebridades no seu tempo.


Julian Bream, virtuoso do violão, com numerosas obras publicadas, surge antes do início da gravação de Symphony of The Psalms para dois dedos de conversa com Stravinsky e tocar para ele uma peça no seu alaúde. Robert Craft aparece recorrentemente. Foi um dos amigos mais íntimos de Stravinsky. Produziu muitos dos seus discos, esteve presente em inúmeros recitais e sobre ele e a mulher escreveu abundantemente. Viveu com o casal primeiro em Hollywood e, depois, em Nova Iorque. Sendo igualmente músico, adquiriu notoriedade como maestro, tendo dirigido praticamente todas as grandes orquestras americanas. Durante a gravação de Symphony of The Psalms, com a partitura à sua frente, Craft é garante de rigor e de fidelidade à obra. Tal como o engenheiro de som e produtor da Columbia Records, John McLure, especialista em música erudita. Entre outras, são dele as famosas gravações das nove sinfonias de Beethoven por Bruno Walter, bem como mais de duzentas gravações de Leonard Bernstein. Apesar de autodidata, tornar-se-ia um sofisticado perito em Stravinsky. Com todos eles há registo de conversas, mais do que entrevistas. O caso de Nicolas Nabokov, porém, exige uma informação prévia.


Primo de Vladimir Nabokov, o autor russo-americano do célebre romance Lolita (1955), Nicolas Nabokov teve educação musical a cargo de professores particulares e viria a ser um compositor de algum mérito. No entanto, a notoriedade chegaria sobretudo enquanto agente e divulgador cultural, com uma espantosa rede de conhecimentos da qual constava, entre outros, Jean Cocteau, mencionado no filme e grande amigo de Stravinsky. Nascido, em 1903, numa pequena cidade nas cercanias de Minsk, na Bielorússia, Nabokov pertencia a uma família aristocrática alinhada com os chamados russos brancos, opositores do poder bolchevique. Após a Revolução, Nabokov refugiou-se, primeiro na Alemanha e depois em Paris. Mais tarde, adquiriu a cidadania americana, tendo sido uma espécie de adido cultural dos Estados Unidos, em Berlim, no pós-guerra. Em 1949, protagonizou um episódio célebre quando, em Nova Iorque, apareceu numa conferência de imprensa do compositor soviético Dmitri Shostakovitch para o humilhar, acusando-o de ser um servidor obediente de Estaline. Dois anos mais tarde, em 1951, foi nomeado Secretário-Geral do recém constituído Congress for Cultural Freedom (CCF), cuja missão era divulgar e promover a ideia da superioridade da arte americana, livre, face à cultura do mundo socialista, controlada pelo estado. Esteve no cargo durante quinze anos, até se tornar evidente que o CCF era uma extensão dos serviços de inteligência, a CIA, acabando por ser extinto em 1967.


Stravinsky, por sua vez, sendo unanimemente considerado um dos génios da música do século XX, também era uma figura politicamente controversa. Viveu 28 anos na Rússia, onde nasceu, em 1888, nos arredores de São Petesburgo, 29 na Suíça e em França, onde adquiriu a nacionalidade francesa, e 32 nos Estados Unidos onde se declarou a proud american. Admirador confesso de Mussolini, para quem chegou a tocar por duas vezes, recusou assinar a petição de Otto Klemperer, outro dos grandes maestros do século passado, de apoio aos músicos perseguidos pelo regime nazi. Durante muito tempo, a maior parte dos seus recursos financeiros vieram da Alemanha. Em 1936 participou no Festival Internacional de Baden-Baden, o que não impediu que o seu nome viesse a integrar, um pouco mais tarde, as infames listas da “arte degenerada” de Hitler e Goebbels.


Nada disto está no documentário dos cineastas canadianos, nem tinha de estar. Todavia, alguma razão haverá para a entrevista com Nabokov ser feita segundo o cânone televisivo protocolar, em plano médio fixo, de mera recolha de informação, saindo da informalidade de tudo o mais no filme. Íntimo de Stravinsky de muitos anos, seguramente um dos seus financiadores, Nabokov era ainda, na altura, Secretário-Geral do CCF. Mais para o final, numa outra cena, Koenig, Kroitor e Carrière estão, em Hamburgo, no quarto de hotel de Stravinsky que aguarda a visita de Nabokov. Este traz notícias de Cocteau, moribundo. A presença da equipa em campo é assumida. Nabokov parece surpreendido. Stravinsky diz-lhe que há muito é seguido pelos canadianos, onde quer que vá. Depois, dá o encontro por terminado. Koenig, porém, faz um último pedido. Gostaria de filmar um pouco da conversa entre os dois amigos, em russo. Nessa conversa, sem disso ter consciência, ao descrever sumariamente o que foi percebendo do trabalho dos cineastas, Stravinsky acaba por elucidar os princípios do Candid Eye. Todavia, não era esse o intuito de Koenig. Ao fazer o pedido, alertava para o facto de todo o documentário, espontâneo ou não, ser uma construção. Com um ponto de vista. E uma negociação. Como resulta óbvio, também, em Lonely Boy.


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Lonely Boy (1962) de Wolf Koenig e Roman Kroitor Fonte: NFB

7. Lonely Boy (1962), anterior a Stravinsky, é um rockumentary pioneiro do cinema directo que antecipa, por exemplo, dois filmes dos irmãos Maysles, What’s Happening! The Beatles in the USA (1964) e Gimme Shelter (1970), que segue as peripécias do que viria a ser o fatídico concerto dos Rolling Stones em Altmont, bem como o famoso Dont Look Back (1967) de D. A. Pennebaker sobre uma digressão de Bob Dylan no Reino Unido. A equipa de Lonely Boy é basicamente a mesma da maioria dos filmes exibidos em The Candid Eye, cujo percurso em antena se cumprira no ano anterior. Tem Tom Daily como produtor executivo, Koenig e Kroitor na realização e, no som, também lá está Marcel Carrière . O filme gira em torno de Paul Anka, a estrela juvenil que aos 16 anos alcançara o topo das tabelas de sucesso com uma canção intitulada Diana (1957). Quando o filme foi feito, Anka não andaria longe do patamar de artistas como Elvis Presley ou os Beatles.


A imagem que dele passa é simpática, mas Koenig e Kroitor fazem emergir da espontaneidade um olhar reflexivo. Apesar da fama e da idolatria das admiradoras, Anka é um rapaz solitário, “lonely and blue”, como diz o tema musical da sua autoria. É também um produto de marketing. Irving Feld, o seu agente omnipresente, sempre hiperbólico, dirigindo-se ao jovem protegido durante um ensaio, afirma textualmente: “God gave you something that I don’t think he´s given anyone in the past 500 years. Virando-se para a câmara, acrescenta: “I truthfully believe that Paul will be the biggest star, with an overall career, that the world has ever known.” O cantor, por sua vez, assume, candidamente, ter passado por diversas vicissitudes com o intuito de ser vendável enquanto pop star. Durante meses, passou horas a fio no ginásio para abater peso, sujeitou-se a uma operação plástica ao nariz de modo a torná-lo mais afilado, e a uma outra para aumentar o espaço entre as sobrancelhas e o cabelo. Para o empresário, que reclama o mérito da transformação - prova do empenho posto na construção da imagem do jovem ídolo - Paul passou a ser “beautiful.”


Revelando um arguto sentido crítico, Lonely Boy dá espaço aos protagonistas e tem algumas sequências memoráveis. Uma delas é a do concerto em Freedomland, um parque de diversões em New Jersey, na presença de uma multidão de dezenas de milhar de admiradores, na sua maioria adolescentes femininas. Uma vez mais, a câmara à mão de Wolf Koenig opera prodígios. Neste caso, porém, há igualmente um tratamento do som que rompe com as convenções dado que nem sempre o que se ouve corresponde ao que se vê. Por exemplo, há múltiplos close-ups de admiradoras estridentes, em êxtase, mas o que se ouve é apenas a voz de Anka e da orquestra. Adiante, há Anka no palco, mas o que se ouve é a estridência da multidão feminina. A síntese das duas situações acontece com a canção Put your head on May shoulder, quando uma jovem sobe ao palco, emocionada até às lágrimas, ficando colada ao cantor a olhá-lo como quem adora um deus. A câmara de Koenig, sempre em movimento, regista todos os detalhes até ficar quase imobilizada na mão do ídolo, em grande plano, enquanto, também em grande plano sonoro, a canção atinge o clímax.


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Lonely Boy (1962) de Wolf Koenig e Roman Kroitor Fonte: NFB

Outra cena memorável acontece no célebre Copacabana de Nova Iorque, night club frequentado pela elite endinheirada, propriedade de Jules Podell, um homem com ligações à máfia. Após o show de Anka, a tentar ganhar um público diferenciado do público juvenil, o obeso Podell, na sua mesa privativa, fuma um charuto que se apaga. Solícito, Anka, sentado ao seu lado, sob o olhar aprovador de Irvin Feld, risca um fósforo. Desembrulha, depois, presentes para o dono do Copacabana, o último dos quais é uma fotografia sua, de grandes dimensões, para o “uncle Julie” colocar na parede do seu escritório. Podell parece agradado e dá um beijo ao cantor. É quando Wolf Koenig intervém e pede para repetirem o beijo. O embaraço é notório, o beijo é repetido. O efeito é duplo. Por um lado, deixa a nu que a cena tinha sido negociada. Por outro, ao revelar o dispositivo cinematográfico, recorda que o documentário obedece às regras da construção.


Na sequência final, Paul Anka, manifestamente cansado, viaja de automóvel ao encontro de novo palco, enquanto ouve de Feld a intenção de promover um ciclo de concertos nas universidades. O cantor mostra-se resignado. Tão Lonely Boy como durante todo o resto filme, apesar de sempre rodeado de pessoas, adormece.


deriva 3, final. Não há notícia, pelo menos que seja do meu conhecimento, da presença em Lyon de representantes da Unidade B do National Film Board. Da Equipe Française, sim. Do Free Cinema Britânico, outro dos elos do cinema directo ou vérité, como se lhe queira chamar, também, por sinal através de dois suiços. Do cinema-vérité, obviamente, com Rouch à frente embora, segundo os registos, com um Edgar Morin surpreendentemente reservado. Activo, ao ponto de se transformar no arauto dessa nova utopia do cinema do real, foi o autor da História do Cinema Mundial, Georges Sadoul. Marxista, admirador do cinema soviético e, em especial de Dziga Vertov, proclamou, a propósito de Chronique d’un Éte, ser o primeiro filme a tentar pôr em prática, graças às câmaras ligeiras, as ideias vertovianas. Quando viu os filmes dos Drew Associates entusiasmou-se de tal modo que escreveu um artigo intitulado Enfin le ciné-oeil! Disse ele: “Uma câmara viva é ao mesmo tempo uma câmara-olho e uma câmara-ouvido. Sabe como tudo surpreender, tudo registar, movimenta-se como um homem.” Robert Drew, ao invés de ficar sensibilizado com o elogio, tratou de informar que nunca tinha visto nenhum filme de Dziga Vertov, de quem, aliás, nada sabia. Os documentários de Drew, e dos associados, sendo de observação, eram articulados na montagem em termos daquilo a que ele chamava crisis, ou seja, de momentos dramáticos que permitiam construir a narrativa, por vezes, com pontos de viragem semelhantes aos da narrativa clássica.


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Robert Drew e o filme que ele considerava ser o pioneiro do direct cinema Fonte: The Times of Malta

Para os cineastas canadianos da Unidade B do NFB a espontaneidade do olhar em Cartier-Bresson era fundamental. Contudo, segundo Wolf Koenig, “os planos decisivos até podem ser pérolas, mas de pouco valem sem o fio que os une”, ou seja, onde se diz fio, leia-se narrativa. Michel Brault, tendo afirmado que só há cinema directo com som síncrono, via em Les Raquetteurs (1958), ou melhor, num determinado enquadramento do filme, quando Marcel Carrière surge com um gravador portátil na imagem, o primeiro exemplo , justamente, de cinema directo. Tudo leva a crer, porém, que talvez não tivesse feito Les Raquetteurs sem a experiência que teve, por exemplo, em The days before Christmas com os colegas da Unidade B. Em suma, tudo somado, uma estupenda, infindável controvérsia. No rescaldo de Lyon, Marcorelles escreveu nos Cahiers du Cinéma: “Nous étions partis pour Lyon pleins de curiosité et d’enthousiasme. Nous sommes rentrés fourbus, saturés d’images plus tremblotantes les unes que les autres et ravis. […]. Nous avons découvert la plus aveuglante de toutes les vérités : il n’y a pas de cinéma-vérité.” Todavia, tudo em nome ou à volta da


vérité. No virar do milénio, tal como sucedera com as câmaras portáteis de 16 mm e o som síncrono, a tecnologia possibilitou aos documentaristas fazer experiências que alargaram o escopo do cinema do real. Com o digital voltou a falar-se de verdade, o que quer que isso possa ser. Agora, essa mesma tecnologia digital coloca-nos perante um desafio sem precedentes, a desrealização do real. Talvez fosse boa ideia trocarmos algumas impressões.


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Georges Sadoul: “Une caméra vivante est tout à la fois caméra-œil et caméra-oreille. Elle sait tout surprendre, tout enregistrer, se déplacer comme un homme.” Fonte: The Seventh Art



P. S. Este texto, com ligeiras alterações, foi originalmente publicado no número especial de Agosto de 2023 da Revista Cinemas da Associação Ao Norte.













 
 
 
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Ensaios, conferências, comunicações académicas, textos de opinião. notas e folhas de sala publicados ao longo de anos. Sem preocupações cronológicas. Textos recentes quando se justificar.

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Arquivo. Princípios, descrição, reflexões e balanço da Programação de Cinema, Audiovisual e Multimédia do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura, da qual fui o principal responsável. O lema: Pontes para o Futuro.

televisão sillouhette

Atualidade, política, artigos de opinião, textos satíricos.

Notas, textos de opinião e de reflexão sobre os media, designadamente o serviço público de televisão, publicados ao longo dos anos. Textos  de crítica da atualidade.

Notas pessoais sobre acontecimentos históricos. Memória. Presente. Futuro.

Textos avulsos de teor literário nunca publicados. Recuperados de arquivos há muito esquecidos. Nunca houve intenção de os dar à estampa e, o mais das vezes, são o reflexo de estados de espírito, cumplicidades ou desafios que por diversas vias me foram feitos.

Imagens do Real Imaginado (IRI) do Instituto Politécnico do Porto foi o ponto de partida para o primeiro Mestrado em Fotografia e Cinema Documental criado em Portugal. Teve início em 2006. A temática foi O Mundo. Inspirado no exemplo da Odisseia nas Imagens do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura estabeleceu numerosas parcerias, designadamente com os departamentos culturais das embaixadas francesa e alemã, festivais e diversas universidades estrangeiras. Fiz o IRI durante 10 anos contando sempre com a colaboração de excelentes colegas. Neste segmento da Programação cabe outro tipo de iniciativas, referências aos meus filmes, conferências e outras participações. Sem preocupações cronológicas. A Odisseia na Imagens, pela sua dimensão, tem uma caixa autónoma.

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