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CULTURA

  • Foto do escritorJorge Campos

Porto 2001-Odisseia das Imagens, balanço 3: Programação do(s) documentário(s), uma reflexão   

 


Nanook of the North(1969) de Robert Flaherty: filme-concerto com Nils Petter Molvaer Foto: Cesário Alves

Como programar documentários é evidentemente uma pergunta para a qual não há uma resposta. Ou poderá haver várias, dependendo do ponto de vista e do ponto de partida. Seja como for, a reflexão sobre uma programação específica como foi a Odisseia nas Imagens talvez possa suscitar questões úteis para os programadores que queiram não apenas divulgar e dar a ver, mas também produzir pensamento e conhecimento ancorados, um e outro, no elemento imprescindível que é a memória. Esta publicação e as seguintes vão nesse sentido.

 

A Odisseia nas Imagens foi encarada com uma viagem pelo cinema, uma aventura pela descoberta, uma tela construída à semelhança de um mosaico na qual as diferentes partes deveriam ir ganhando a autonomia necessária à coesão e coerência do todo. Na verdade, a ideia da Odisseia nas Imagens nasceu de um poema do genial Konstantínos Kaváfis, o poeta grego (1863-1933) de Alexandria, intitulado Ítaca, que a seguir se transcreve na tradução de Jorge de Sena.

 

Ítaca

 

Quando partires de regresso a Ítaca,

deves orar por uma viagem longa,

plena de aventuras e de experiências.

Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros,

um Poseidon irado - não os temas,

jamais encontrarás tais coisas no caminho,

se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime

teu corpo toca e o espírito te habita.

Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros,

Poseidon em fúria - nunca encontrarás,

se não é na tua alma que os transportes,

ou ela os não erguer perante ti.

 

Deves orar por uma viagem longa.

Que sejam muitas as manhãs de Verão,

quando, com que prazer, com que deleite,

entrares em portos jamais antes vistos!

 

Em colónias fenícias deverás deter-te

para comprar mercadorias raras: coral e madrepérola,

âmbar e marfim, e perfumes subtis de toda a espécie:

compra desses perfumes o quanto possas.

E vai ver as cidades do Egipto, para aprenderes com os que sabem muito.

Terás sempre Ítaca no teu espírito, que lá chegar é o teu destino último.

Mas não te apresses nunca na viagem.

É melhor que ela dure muitos anos,

que sejas velho já ao ancorar na ilha, rico do que foi teu pelo caminho,

e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.

Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.

Sem Ítaca, não terias partido.

Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.

Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.

Sábio como és agora,

senhor de tanta experiência,

terás compreendido o sentido de Ítaca.

 


 Porto 2001-Odisseia nas Imagens, retrospectiva. Sessão no Cinema Batalha, em 2023. Konstantinos Kaváfis e Ítaca em fundo: a viagem de Ulisses.

 

Ora, foi assumido desde o início o intuito de fazer do documentário o eixo dominante em torno do qual deveria estruturar-se a Programação de Cinema, Audiovisual e Multimédia do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura. Nessa altura, apesar da diversidade de iniciativas similares em toda a Europa, nenhuma parecia susceptível de servir de modelo a um propósito tão exigente e dilatado no tempo quanto se afigurava a Odisseia nas Imagens, pensada para cumprir um calendário de dois anos ao longo dos quais era suposto ser capaz de criar uma rede de parcerias indispensável à sua continuidade no futuro.

 

Por isso, logo se entendeu a necessidade de lhe conferir um carácter experimental como se de uma viagem exploratória, de uma aventura, se tratasse, com um primeiro ano mais circunscrito a uma visão essencialmente cinematográfica, assumindo, portanto, a matriz fundadora do olhar do cinema, e um segundo ano durante o qual, mantendo embora essa mesma matriz como referência, se propunha trabalhá-la em diálogo com outros modos de encarar o documentário. Esperava-se, assim, não só ganhar o público em geral para uma programação de elevada qualidade, recuperando o documentário através de episódios e obras fundamentais da sua História, mas também de promover o acesso ao público escolar de uma perspectiva do Cinema que se sabia ser, em muitos casos, dele praticamente desconhecida.

 

Nesse sentido, O Olhar de Ulisses seria como que uma espécie de parede mestra do edifício em construção. Mas, como também se depreenderá das notas dissonantes introduzidas em diferentes etapas da programação, cedo se vislumbrou a necessidade de encontrar um ponto de equilíbrio entre as diversas maneiras de encarar o documentário, tanto mais que O Olhar de Ulisses - independentemente da excelência dos filmes e da justeza da prioridade atribuída ao Cinema -, sobretudo a partir do segundo módulo da Odisseia na Imagens dava indícios de relutância quanto à possibilidade de contraponto com narrativas do presente alicerçadas em linguagens recolhendo subsídios de áreas exteriores ao cinema.

 




A lógica da programação do documentário em O Olhar de Ulisses teve como ponto de partida uma organização temporal - tal como a Odisseia nas Imagens no seu conjunto –, em função da qual se identificavam territórios fundamentais do cinema documental sem, todavia, impor qualquer espartilho, antes estimulando cruzamentos que permitissem romper com visões estritamente diacrónicas. O primeiro episódio ocupar-se-ia da História do Documentário até ao advento do cinema sonoro, chamar-se-ia O Homem e a Câmara, numa alusão a Dziga Vertov e a um tempo em que a imagem fora rainha. O segundo episódio, O Som e a Fúria, deveria cobrir a fase compreendida entre o advento do cinema sonoro e o pós-guerra, uma época crítica durante a qual a voz chegou ao documentário, muitas vezes colocado ao serviço da propaganda. O terceiro episódio, centrado fundamentalmente na revolução operada nos anos 60 do século passado, teria como núcleo duro o direct cinema, o cinéma-vérité, bem como outros movimentos precursores ou contemporâneos, dos quais o neo-realismo italiano, o free cinema britânico e a nouvelle vague francesa são exemplos. O quarto e último episódio seria essencialmente dedicado ao cinema documental da actualidade.

 

Todos os módulos da Odisseia nas Imagens, independentemente da ampla divulgação feita através da comunicação social e da edição de catálogos, seriam profusamente publicitados através da edição periódica de um pequeno jornal. Esse jornal, constituindo um guia para o público pretendia ser, igualmente, um espelho da lógica global da programação

 

Ocupando um lugar central na Odisseia nas Imagens, uma vez que para além da programação dos filmes era suposto proporcionar um conjunto de propostas conducente à reflexão sobre o documentário – a publicação de catálogos, bem como a presença de especialistas na introdução e debate das obras deveriam responder a esse propósito – O Olhar de Ulisses tem, naturalmente, prioridade na revisão crítica sobre as opções programáticas. Num segundo momento, reflectir-se-á sobre outros ciclos e iniciativas onde diversos tipos de documentários estiveram, igualmente, presentes.

 

1. O Homem e a Câmara

 

O Olhar de Ulisses I - O Homem e a Câmara principiou a 3 de Maio de 2000 com A Criança Cega (1964) de Johan Van Der Keuken, filme que coloca simbolicamente o problema do olhar através da difícil aprendizagem dos cegos na sua relação com o mundo. Prosseguiu com Louis Lumière (1961) de Eric Rohmer, no qual Jean Renoir e Henri Langlois falam das origens do cinema e retomam a questão do olhar. Seguiram-se quatro filmes de Aurélio da Paz dos Reis (1896), remetendo para as primeiras imagens do cinema português, abrindo passagem para Pela Primeira Vez (1967), um curto documentário do cubano Octávio Cortazar onde se mostra a visita do cinema ambulante a uma aldeia perdida na Sierra Maestra, cujos habitantes nunca tinham visto um filme. Cortazar centra-se nas reacções do público à projecção de Tempos Modernos (1935) de Charlie Chaplin. Os filmes seguintes Citizen Langlois (1994) de Edgardo Cozarinsky e O Olhar de Ulisses (1994) de Theo Angelopoulos completaram a introdução do Ciclo. O filme de Cozarinsky funciona como uma espécie de guia inspirador do que viria a ser uma Programação obedecendo essencialmente a critérios de Cinemateca – o exemplo de Henri Langlois seria recorrentemente invocado –, cabendo ao filme de Angelopoulos como que iniciar a busca de um olhar primordial só ao alcance do Cinema.

 


O Olhar de Ulisses (1995) de Theo Angelopoulos. Uma obra-prima do cineasta grego de cunho autobiográfico, uma espécie de balanço sobre o fim do século XX. A busca de filmes perdidos dos primórdios do Cinema ou a peregrinação pelo encontro com o olhar primordial.


  Louis Lumière (1968), uma conversa entre Henri Langlois e Jean Renoir, conduzida por Eric Rohmer. Fonte: M movie meter

Esse propósito está, aliás, de algum modo expresso no texto introdutório do respectivo Catálogo assinado pelos programadores, Pierre-Marie Goulet e Teresa Garcia, quando recuperam uma passagem de L’homme à la caméra de Serge Daney e Louis Skorecki publicado no jornal Líbération: “Os cineastas habitam ainda um país que não figura em nenhum mapa geográfico. Porque ele engloba-os a todos. Esse país é o cinema e ainda estamos a tempo de o explorar - pelo interior.” As páginas seguintes reproduzem excertos de uma troca de correspondência entre Manoel de Oliveira e o principal responsável da Cinemateca Portuguesa João Bénard da Costa a propósito de A Carta (1999), filme de Oliveira com Pedro Abrunhosa, textos esses que incidem sobre o diálogo do cinema com as outras artes.

 

Os blocos seguintes fizeram a passagem para os filmes sinfonia e o cruzamento com as vanguardas artísticas dos anos 20 e 30, tal como sucede na maioria das publicações sobre a História do Documentário ou em textos de clássicos como o de Mark Cousins e Kevin Macdonald Imagining Reality, edição de 1996.

 

As sessões do dia 4 de Maio mostraram os seguintes filmes, assim ordenados: Rien que les Heures (1926) de Alberto Cavalcanti, Berlim, Sinfonia de uma Cidade (1927) de Walther Ruttmann, O Homem da Câmara de Filmar (1929) de Dziga Vertov, A Ponte (1928) de Joris Ivens, A Chuva (1929) de Joris Ivens, Images d’Ostende (1929-30) de Henri Storck e Douro, Faina Fluvial (1931-1995) de Manoel de Oliveira, na versão com música de Emmanuel Nunes. No dia seguinte: Philips Radio (1931) de Joris Ivens, Novas Terras (1934) de Joris Ivens, Las Hurdes (1932) de Luis Buñuel, Misère au Borinage (1933) de Joris Ivens e Henri Storck, Manhatta (1921) de Paul Strand e Charles Sheeler, L’Étoile de la Mer (1928) de Man Ray, Un Chien Andalou (1929) de Luis Buñuel, Une Idylle à la Plage (1931) de Henri Storck, L’Hippocamp (1934) de Jean Painlevé e La Carosse d’Or (1952) de Jean Renoir.

 


A Saída dos Operários da Camisaria Confiança (1896) de Aurélio Paz dos Reis Fonte: PICRYL  

Misère au Borinage (1933) de Joris Ivens e Henri Storck


Esta selecção, que culmina com a deriva de La Carosse d’Or de Renoir num sublinhado de exclusividade da imaginação – a fita passa-se num país inventado da América do Sul e propõe uma aproximação ‘realista’ a uma situação improvável – segue uma linha coerente em relação à qual prevalece uma ética do olhar, mesmo quando mergulha no surrealismo de Buñuel do qual se pode extrapolar, por exemplo, o sentido metafórico da célebre cena do corte da córnea do olho em Un Chien Andalou. Essa ética reflecte-se particularmente em Misère au Borinage e na sua recusa de emprestar qualquer tipo de glamour às imagens respeitantes às condições de vida miseráveis dos mineiros. Os filmes de Storck inscrevem-se numa dimensão poética, bem como os dois primeiros de Ivens, mas Misère au Borinage revela já outro tipo de preocupações. Apesar de não constar do catálogo, foi ainda exibido o Kino Pravda 21, numa referência à tradição de newsreels, na terminologia de Paul Rotha, que antecedeu Homem da Câmara de Filmar.

 

Nos dias 6 e 7 de Maio o ciclo enveredou pela exploração criativa de outra filiação clássica do filme documentário, à qual surgem genericamente associados o travelogue e as fitas de aventuras. Assim, no dia 6, as sessões começaram com filmes dos irmãos Lumière de 1896 em Roma, depois, em 1897, no Cairo, com fotografia de um dos seus mais famosos operadores, Alexandre Promio. Estes últimos serviram de pretexto para exibir de seguida Le Caire...Raconté par Chahine (1991) de Youssef Chahine, A Estação do Cairo (1958) também de Chahine a que se seguiu A Caminho do Sul (1980-81) de Johan Van Der Keuken e Tabu (1931) de Frederich W. Murnau e Robert Flaherty. No dia seguinte: Descrição de uma Ilha (1977-78) de Rudolf Thome e Cyntia Beatt seguido de dois clássicos de Robert Flaherty, Nanook of the North (1922) e Moana (1926). É significativa a escolha de Le Caire,,,Raconté par Chahine, um filme feito para a televisão, mas que dela se distancia na recusa de estereótipos e evidências, procurando antes assumir um tom reflexivo e, de algum modo, experimental.

 

Nos últimos dias 8, 9 e 10 de Maio – deixamos de lado a programação de Jean-Michel Arnold e Annick Demeule em Arqueologia e Desvios do Cinema Científico, enquadrada com a filosofia de O Olhar de Ulisses – o ciclo, concebido um pouco à imagem do que seria a montagem de um filme, como que cumpre uma trajectória circular, regressando ao olhar, mas culminando com um final em aberto, irónico e divertido, suscitando a questão do real e da ficção e deixando a pairar dúvidas sobre os limites da verdade e da mentira.

 


Moana (1929) de Robert Flaherty

Grass: a Nation Batlle for a Life (1925) da dupla Cooper/Schoedsack  

Assim, no dia 8, as sessões obedeceram ao seguinte alinhamento: In the Land of the War Canoes (1914) de Edward S. Curtis, para muitos o inspirador do chamado método Flaherty de certo modo já posto em prática neste filme; seguiram-se Grass: a Nation Batlle for a Life (1925) da dupla Cooper/ Schoedsack desta vez acompanhada pela jornalista e aventureira Marguerite Harrison, reportando a saga da tribo dos Bakthiari, pastores nómadas iranianos que migravam duas vezes por ano em busca de pastagens para os seus gados, Chang (1927), da mesma dupla, sobre a selva mítica da Ásia e o seus perigos e filme do qual resultaria, como corolário, King Kong (1933) igualmente de Merian Cooper e Ernest Schoedsack; a última sessão encerrava com uma nova deriva, agora O Salão de Música (1958) de Satyajit Ray onde, a pretexto do prazer da música se estabelece o confronto da decadente aristocracia feudal indiana com uma burguesia emergente e ávida de poder. Apropriadamente, a noite terminava com um concerto ao vivo de Sharmila Roy.

 

A primeira sessão do dia 9 de Maio começava com outro clássico das aventuras e viagens 90 Degrees South (1933) de Herbert Pointing sobre a trágica expedição de Scott ao Antártico e regressava à câmara de filmar com uma animação de Wladyslaw Starewicz, A Vingança do Cameraman (1911), seguida de The Cameraman (1928) de Edward Sedgwick e Buster Keaton, provavelmente o primeiro filme da História do Cinema a colocar a questão dos limites da intervenção jornalística em termos da espectacularização das imagens. A segunda sessão retomava Van Der Keuken com Criança Cega 2 (1966) e fechava com Peeping Tom (1960), filme de culto de Michael Powell sobre um serial killer que regista fotograficamente a morte das suas vítimas e que é uma profunda reflexão sobre o poder do cinema e das imagens.

 

A última sessão do dia 10 compreendia a Arqueologia e Desvios do Cinema Científico e fechava com F for Fake (1975) de Orson Welles, no qual o cineasta se diverte sobre a ideia de falsificação na arte assumindo-se como charlatão...

 

F for Fake (1973) de Orson Welles

No total, excluindo os filmes programados em Arqueologia e Desvios do Cinema Científico, o primeiro episódio de O Olhar de Ulisses mostrou 44 filmes, assim distribuídos em função da origem: Estados Unidos da América – 10 (22,72%), França – 9 (20,45%), Holanda – 7 (15,90%), Bélgica – 3 (6,81%), URSS – 3 (6,81%), Portugal – 2 (4,54%), Reino Unido – 2 (4,54%), Alemanha – 2 (4,54%), Espanha – 1 (2,27%), Egipto – 1 (2,27%), Cuba – 1 (2,27%), Índia – 1 (2,27%), havendo ainda a considerar duas co-produções, uma Egipto/França – 1 (2,27%) e outra Grécia/França/ Itália – 1 (2,27%).

 

Para uma melhor compreensão da lógica da programação de O Olhar de Ulisses – veremos adiante como o ciclo iria evoluir no sentido do cinema de arte e ensaio preconizado, no essencial, pela política dos autores dos Cahiers du Cinéma –, independentemente da origem dos filmes, importa proceder ao escrutínio das tendências dominantes nos documentários exibidos em função de parâmetros conhecidos. Esses parâmetros tanto convocam critérios da historicidade quanto da teoria do documentário. Assim, as categorias de Rotha a propósito da tradição do documentário pareceram apropriadas no sentido de situar as áreas em que se inscrevem os diferentes filmes anteriores ou imediatamente posteriores ao advento do cinema sonoro. No entanto, essas categorias seriam, porventura, desajustadas para filmes posteriores, mais complexos, combinando diferentes formas narrativas. Neste caso, considerou-se preferível recorrer aos modos de Bill Nichols e, pontualmente, a William Guynn e Richard Plantinga, sem perder de vista que um mesmo filme integra, normalmente, uma variedade de vozes e de modos, podendo igualmente corresponder a diferentes tradições em simultâneo. Em qualquer dos casos, porém, sublinha-se que não se trata de avaliar qualitativamente os filmes e, muito menos, a Programação do ciclo no seu conjunto, mas apenas de encontrar elementos que ajudem a entender melhor o percurso feito, quer à luz de contributos da teoria do documentário, quer dos critérios delineados para o conjunto da Odisseia nas Imagens.

 

No caso do presente episódio, retiramos do âmbito da análise os filmes dos pioneiros do cinema, a animação e as obras habitualmente identificadas como sendo de ficção. Apesar do risco de simplificação de questões complexas, desde logo os critérios inerentes à lógica da Programação no seu conjunto, mas, também, as respeitantes ao que é hoje uma questão central da teoria do documenário, ou seja, a dicotomia documentário/ficção, a atenção incidiu unicamente sobre obras historicamente identificadas como documentários. Ficaram, assim, de fora: Os filmes de Paz dos Reis, os filmes dos operadores Lumière, O Olhar de Ulisses, King Kong, O Salão de Música, A Vingança do Cameraman, The Cameraman, La Carosse d’Or e Peeping Tom.

 


 Bill Nichols Foto: Itzel Martínez del Cañizo 

 

 Paul Rotha Fonte: National Portrait Gallery

Aplicando as categorias de Rotha parece razoável a seguinte colocação dos filmes:

 

tradição naturalista ou romântica: Tabu, Nanook of the North, Moana, In the Land of War Canoes, Grass: a Nation Battle for Fight e Chang;

 

tradição realista com filiação avant-gardeRien que Les Heures, Berlim, O Homem da Câmara de Filmar, A Ponte, Chuva, Images d’Ostende, A Propos de Nice, Douro, Faina Fluvial, Philips Radio, Novas Terras, Las Hurdes, Manhatta, L’ Étoile de Mer, Un Chien Andalou, Une Ydylle à la Plage e L’ Hippocampe;

 

tradição de newsreels: Kino Pravda 21 e O Homem da Câmara de Filmar; tradição da propaganda: Kino Pravda 21, O Homem da Câmara de Filmar, eventualmente Misére au Borinage, cujos autores, influenciados pela Revolução de Outubro e pelo cinema soviético fizeram a transição das vanguardas artísticas para os propósitos políticos e sociais.

 

A maioria destes filmes poderia caber também nos modos poético e reflexivo de Nichols. O mesmo poderia dizer-se dos dois filmes de Van Der Keuken sobre as crianças cegas. Os dois filmes de Chahine sobre o Cairo, Descrição de uma Ilha, A Caminho do Sul e Louis Lumière e F for Fake são predominantemente reflexivos. O cubano Pela Primeira Vez privilegia a observação e Citizen Langlois é expositivo. Desta cartografia resulta evidente a prioridade atribuída a um cinema de dominante poética, no sentido aristotélico, indissociável de elevado padrão de exigência estética.

 

Do conjunto de filmes apresentados ressalta a reduzida presença do cinema soviético - que nesta fase era de cunho essencialmente documental - com propósitos sociais e de propaganda ligados às vanguardas artísticas, constituindo, porventura, o mais estimulante laboratório cinematográfico do período anterior ao advento do cinema sonoro. Todos os filmes do ciclo – ou quase todos – eram acompanhados por textos publicados no catálogo O Homem e a Câmara de 336 páginas: “inéditos ou reedições, textos teóricos, críticos, entrevistas, cartas ou ainda poemas pretendendo “acompanhar as projecções dos filmes, mas também prolongá-las tornando-se um instrumento de reflexão.” Autores dos textos originais foram frequentemente destacados para introduzir o debate sobre os filmes durante as sessões.

 

Para este primeiro módulo de O Olhar de Ulisses foram convidados, para além de especialistas e cineastas portugueses, um número significativo de personalidades francófonas, nomeadamente Alok Nandi (autor e realizador), Gerald Collas (produtor de documentários), Gerald Leblanc (poeta e crítico de cinema), Jean-Louis Comolli (realizador e ensaísta), Jean-Michel Arnold (director do CNRS Images/medias), Olivier Smolders (realizador), Saguenail (realizador) e Serge Meurant (poeta, responsável do Festival de Cinema Documental “Filmer à tout Prix”).

 

Tanto quanto uma leitura do catálogo permite apurar, naquilo que respeita aos textos respeitantes aos filmes, excluindo, portanto, introduções, correspondência epistolar e a parte reservada às Imagens da Ciência, há 29 originais, na sua maioria curtas, mas pertinentes notas sobre os filmes em apreço, e 24 reedições cuja proveniência é, na maioria dos casos, ou as Folhas da Cinemateca Portuguesa ou publicações francesas ou em língua francesa, com destaque para os Cahiers du Cinéma. Os textos de pendor mais teórico são fundamentalmente dois, um sobre Vertov e O Homem da Câmara de Filmar intitulado O Futuro do Homem da autoria de Jean-Louis Comolli, originalmente publicado no número de Verão da Trafic nº 15, o outro de José Manuel Costa intitulado Grandeza de Flaherty publicado pela primeira vez no catálogo Robert Flaherty da Cinemateca Portuguesa em 1984.


 




 


Continua

 

 


 

 

 

 

 

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