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CULTURA

  • Foto do escritorJorge Campos

A Caixa Negra 3 - Efeitos paradoxais


Capa do livro original com um desenho de José Rodrigues.

Este texto tem quase 30 anos e tem por base um trabalho académico da altura. Foi publicado num livrinho chamado A Caixa Negra e é sobre a Televisão. Depois de o recuperar e reler, apesar do tempo passado, penso que ainda terá alguma utilidade até porque a memória permite pensar o presente. Reflete sobre o trabalho dos jornalistas e sobre as relações de poder. Nesse aspecto, continua a fazer sentido. Abaixo do título, aparecia Discurso de um Jornalista sobre o Discurso da Televisão. É isso mesmo. O jornalista era eu. Este texto corresponde ao Capítulo II.


(Continuação de A Caixa Negra 2)


REPÓRTERES, REPORTAGENS E EFEITOS PARADOXAIS


"A percepção do mundo circundante é fundamental para a formação de um indivíduo e para a orientação da sua conduta; ora, esta percepção do mundo (esta soma de experiências) prepara-se para se tornar hipertrófica, maciça, superior às possibilidades de assimilação; e, inicialmente idêntica para todos os habitantes do globo. Por outro lado, este acréscimo de experiência ocorre segundo modalidades qualitativamente novas: por via sensorial e não conceptual; não enriquecendo a imaginação e a sensibilidade segundo as modalidades da "catarse" estética (a qual exige consciência da ficção, racionalização do evento representado e o seu julgamento), mas impondo-se com a evidência da realidade indiscutível; e — o que é mais perturbante — invertendo as proporções que regulavam a relação quantitativa entre informações acerca dos eventos passados e informações acerca dos eventos simultaneamente presentes." - Umberto Eco

Desenho original de José Rodrigues para a capa de A Caixa Negra feito na toalha de papel de um restaurante, 1993.

UM OLHAR RETROSPECTIVO


Afonso X, "O Sábio", rei de Castela, exarou uma lei segundo a qual o uso do papel em determinados documentos ficava interdito. O soberano invocou razões de segurança. O papel seria demasiado perecível, logo indigno de confiança e, como tal, Afonso X discriminou quais os documentos que deveriam ser escritos em "pergaminho de pano", ou seja, em papel, e aqueles necessariamente lavrados em "pergaminho de cuero". Passou-se isto no ano de 1265.


O papel apenas começara a ser fabricado na Europa, era de qualidade duvidosa e quase tão caro quanto o pergaminho. Mas a desconfiança do monarca foi um reflexo, pelo menos em parte, de um preconceito religioso: "O papel chegara pelas mãos dos maiores inimigos de uma Europa fanaticamente cristã: os árabes e os judeus. Logo, forçosa e irracionalmente sofreria o estigma da origem."(1)


Em meados do século XV, Gutenberg inventou o prelo e os caracteres móveis. Publicaram-se livros, é certo, mas a tipografia levou 150 anos até começar a fazer jornais. Durante esse período de tempo multiplicaram-se as gazetas manuscritas, as quais iriam conviver com o jornal impresso até ao século XVIII. Porquê? Porque tinham sobre ele a vantagem da liberdade. Até à Revolução Francesa existiu um pouco por toda a parte um regime legal de censura, à excepção da Inglaterra, onde a liberdade de imprensa começara um pouco antes.


"As gazetas manuscritas, embora nem sempre consentidas, escapavam aos rigores da lei com maior facilidade por serem feitas à mão. Um vidro de tinta e uma pena ocultavam-se mais cómoda e rapidamente do que uma tipografia inteira. Por isso, abordavam certos temas vedados aos jornais impressos, principalmente assuntos internos dos países onde circulavam."(2)


Estes dois exemplos remetem, por um lado, para a suspeição clássica face às novas tecnologias da comunicação e, por outro, para a obliquidade das relações entre o poder e a liberdade de expressão, nomeadamente quanto à censura. São exemplos do carácter repetitivo de atitudes cuja persistência no presente justifica um olhar retrospectivo no sentido de melhor entender esse mesmo presente e perspectivar o futuro.


Johannes Gutenberg na sua oficina. Fonte: The Balance Careers.

JORNAIS SEM JORNALISTAS, JORNALISTAS SEM JORNAIS


É controverso situar e definir a figura do repórter. Contemporaneamente, ele aparece ligado à notícia enquanto produto de empresas de comunicação social, as quais operam à escala industrial. Nem sempre, porém, a figura do repórter esteve ligada à ideia moderna de informação jornalística. Alguns historiadores da Comunicação defendem até, porventura com exagero, que épocas houve de jornais sem jornalistas e outras de jornalistas sem jornais.


No primeiro caso, estariam, por exemplo, cinco séculos de Império Romano durante os quais se publicaram as diurnais, documentos afixados em lugares públicos dando conta de decisões oficiais, cuja periodicidade e actualidade permitiria situá-las como antepassados longínquos da imprensa moderna.


No segundo caso, estaria uma vasta fatia da Idade Média ocupada pela presença de trovadores e jograis no papel de mensageiros, levando e trazendo novas, um pouco à semelhança dos antigos aedos gregos. Desta turba medieval de faladores, cantadores e tocadores destacavam-se os goliardos, na maioria dos casos, religiosos falhados ou estudantes remissos. Entre todos, fez-se notar o Arcipreste de Hita,


"tipo consumado do clérigo-jogral, espécie de goliardo hispânico ou moçárabe, escolar noctívago, sempre enamorado, frequentador de tabernas, incansável tangedor de toda a casta de instrumentos, poeta de grande facilidade e talento."(3)


O Arcipreste de Hita. Fonte: www.biografias.info

Homens de letras foram também alguns nobres e, até, monarcas, como o nosso D. Dinis. De um modo geral, jograis e trovadores gozavam de má fama, sobretudo os primeiros. De qualquer modo, a eles se ficava a dever boa parte da circulação de notícias e, talvez, também por isso, Afonso X tenha decidido libertar de coima a profissão de jogral, definindo-lhe as categorias:


"Julgar propriamente dito era o que tangia instrumentos, 'contava novas' e recitava e cantava versos de outrém, portando-se com dignidade; cazurro o pultriqueiro que declamava sem nexo pelas ruas e praças, ganhando dinheiro de qualquer modo; bufón, o que fazia dançar animais e títeres entre a arraia miúda; remedador, o imitador e contorcionista; segrier, o que (geralmente fidalgo arruinado) errava pelas cortes; trovador, o que sabia achar o verso e a toada, cabendo--lhe o título don doctor de trobar se compunha poesias perfeitas, mostrando possuir a mestria do soberano trovar."(4)


Se estas palavras tivessem sido escritas hoje por algum dos nossos contemporâneos cronistas de escárnio e maldizer, bem poderia afirmar-se estarmos perante uma metáfora — malévola, claro — sobre as diversas categorias de jornalistas.


Mas, busquemos ainda outros antepassados dos modernos repórteres.


VER CLARAMENTE VISTO


No seu renomado Dicionário de Literatura, Jacinto do Prado Coelho defende que a par do lirismo e da historiografia lato sensu, a reportagem, aí caracterizada como "narração viva, directa, de acontecimentos a que o autor assistiu"(5) aparece com características individualizadas, pelo menos, desde o século XV.


Prossegue Prado Coelho:


"Repórteres terão sido os autores de roteiros, itinerários e livros de viagens, desde um Pêro Vaz de Caminha a Fernão Mendes Pinto ou Fr. Gaspar de S. Bernardino; repórteres os narradores da História Trágico-Marítima. É toda uma literatura do 'vi claramente visto', cheia de exotismo e pitoresco, de verdade humana também. Repórteres também os epistológrafos que andaram pelos caminhos do Império, inclusivamente Vieira em cartas do Brasil. O género enriqueceu-se no séc. XIX e mais ainda no séc. XX. Ramalho Ortigão, Fialho de Almeida, Ferreira de Castro servirão de exemplos ilustres."(6)


Portanto, a reportagem não dispensa a arte, como adiante irei sustentar a propósito da Televisão. Por agora, ouçamos Fernando Pessoa dissertar sobre as relações entre a literatura e o jornalismo:


"O jornalismo, sendo literatura, dirige-se (...) ao homem imediato e ao dia que passa. Tem a força directa das artes inferiores mas humanas, como o canto e a dança, tem a força do ambiente das artes visuais, tem a força mental da literatura. Como, porém, o seu fim não é senão ser literatura naquele dia, ou em poucos dias, ou, quando muito, numa breve época ou curta geração, vive perfeitamente conforme os seus fins."(7)


A reter: literatura naquele dia, ou seja, arte naquele dia.


Repórter vem da palavra inglesa report, a qual significa o acto de informar, relatar, referir, contar, dar parte, manifestar. Repórter é aquele que anuncia. Compete-lhe distinguir o verdadeiro do falso, o interessante do irrelevante.


"O repórter — diz Phillipe Gaillard — sabe que trabalha para um determinado público. Em função do interesse desse público, não se contenta com registar tudo o que chega ao seu conhecimento; investiga os elementos complementares que lhe parecem úteis e, em lugar de apresentar uma simples análise, dá-se ao trabalho de fornecer ao leitor um artigo que põe em relevo a significação dos factos. O leitor não espera do jornalista que lhe transmita apenas uma ocorrência; pretende, também, ser transformado em testemunha, na medida do possível. O famoso estilo jornalístico (...) é indispensável para conseguir tal objectivo, mas não é suficiente: a condição primeira é a aplicação de um método rigoroso de reportagem."(8)


A reportagem exige um determinado número de qualidades que têm de ser exercitadas simultaneamente e se controlam umas às outras. Isso vale tanto para a Imprensa, como para a Rádio e a Televisão. Ao repórter exige-se conhecimento do assunto, curiosidade, capacidade de observação, sentido crítico, poder de análise e de síntese, rapidez de reflexão e de decisão, facilidade no contacto humano e, claro, absoluto domínio da linguagem do seu medium.


Cronista do quotidiano, um repórter bom é sempre um bom jornalista. Faz lembrar o jogral da Idade Média na sua itinerância, por vezes, a sua multivivência aproxima-o da figura do Arcipreste de Hita, não raro veste a pele do aventureiro romântico, mas a norma da sua conduta deve ser pautada pela discrição, pela capacidade de assumir com humildade a sua tarefa de agente do efémero, na maioria dos casos, anonimamente.


Edward R. Murrow em Londres durante a II Guerra Mundial. Fonte: Barry Bradford.

Se a notoriedade vier, então que venha em função da qualidade do trabalho produzido. Quase meio século antes da Guerra do Golfo, Ed Murrow relatava através da Rádio, para a América, do alto de um telhado de Londres, os bombardeamentos alemães. Foi o primeiro jornalista a ter conhecimento pela boca do próprio presidente Roosevelt do ataque japonês a Pearl Harbour, uma informação off the record que o deixou mergulhado na dúvida e em profunda melancolia: a opinião pública exigia ou não a revelação imediata da notícia ? Ed Murrow foi, também, o jornalista que teve a coragem de denunciar na Televisão os processos utilizados pelo senador Joseph McCarty no seu afã doentio de encontrar comunistas em cada esquina da América. A América ficou horrorizada ao ver claramente o que claramente tinha visto o jornalista Ed Murrow. Enfim, o caso de um homem cujo trabalho, ao longo dos anos, bem justificou a notoriedade de que veio a desfrutar.


O CRIADOR; TRIÂNGULOS DA COMUNICAÇÃO


O rigor do repórter na abordagem criteriosa da reportagem ganha novos contornos no jornalismo electrónico, dada a variedade de sistemas de comunicação convergentes na narrativa audiovisual. Em qualquer caso, o repórter, seja ele da Imprensa, Rádio ou Televisão está hoje confrontado com o facto de se insistir em vê-lo como um comunicador, um técnico de comunicação, e não um jornalista. Pois bem, em meu entender ele deve assumir-se como jornalista e, como tal, como um criador, no sentido utilizado por Edgar Morin em L'Espirit du Temps(9). Ao criador cabe conceber o novo. Exige-se-lhe imaginação, talento e a capacidade de manipular de forma original os seus materiais. O criador deixa a sua marca naquilo em que toca. Acontece o mesmo com o bom repórter, e por maioria de razão, dada a complexidade da linguagem dos meios electrónicos, com o bom repórter de Televisão. Isto é assim por diversas razões.


Em primeiro lugar, o jornalismo moderno procede de uma lógica industrial assente no triângulo clássico da comunicação: alguém (Quem) diz alguma coisa (Mensagem) a alguém (Público). A partir de sofisticadas estruturas de produção os media desenvolvem estratégias de persuasão ajustadas aos objectivos visados. Inscrevem-se no contexto da cultura de massa. E a cultura de massa, segundo Morin, "é o produto de uma dialéctica produção-consumo no seio de uma dialéctica global que é a sociedade no seu conjunto."(10) Neste quadro, o jornalismo moderno exige o traço distintivo do criador, o que lhe confere a originalidade da diferença capaz de gerar qualidade e credibilidade. Por isso, os projectos ambiciosos procuram os serviços dos melhores repórteres.


Em segundo lugar, Produção e Consumo são forças frequentemente contraditórias, donde o produto jornalístico resulta, por um lado, da superação dessa contradição e, por outro, da capacidade do repórter assumir uma função mediadora entre os diversos pólos constituintes daquilo a que Pierre Schaeffer chamou os triângulos da comunicação. Adaptando o ponto de vista de Schaeffer ao trabalho do jornalista obter-se-ia o seguinte esquema:


O MEDIADOR VIGILANTE


A interpretação do esquema proposto leva a concluir da necessidade de mediação do jornalista no quadro de um conjunto complexo e contraditório de interesses. Diz Schaeffer: "O nosso mediador encontra-se, finalmente, no centro de um quadrado e joga nos outros cantos."(11)


No caso de se encontrar ao serviço de uma estação de Televisão, o jornalista adapta a mensagem em termos do mapa-tipo de acordo com o tempo que lhe foi concedido e com o público ao qual a mensagem se destina. Todavia, com frequência há-de contrariar o ponto de vista do programador, procurando fazer prevalecer o critério jornalístico baseado no contacto directo com os acontecimentos e na avaliação deles feita. Por outro lado, ceder à pressão do poder talvez leve à assessoria de um ministério ou de uma secretaria de estado, mas dificilmente produzirá obra jornalística distanciada da propaganda oficial e partidária, indispensável à formação de uma opinião pública democraticamente consequente. Quanto a trabalhar de molde a agradar aos autores ou fontes leva o jornalista a transformar-se num mensageiro — na melhor das hipóteses num "comunicador" — de informações muitas vezes comunicadas com o único intuito de delas tirar proveito imediato. Finalmente, procurar agradar ao público a qualquer preço é um jogo demasiado arriscado, visto produzir quase sempre resultados deploravelmente demagógicos. O repórter deve, em suma, ser um mediador vigilante.


Pormenor da dedicatória de José Rodrigues no desenho feito para A Caixa Negra, 1993.

O repórter organiza a reportagem e a reportagem é o género nobre do jornalismo, uma vez que exige o domínio de todos os outros géneros jornalísticos, de cuja síntese depende em última instância. Em Televisão, pode e, frequentemente, deve ter a pretensão de ascender à categoria das chamadas obras de criação. Poderá ser apenas arte nesse dia, como dizia Fernando Pessoa, e porventura até uma arte menor. Mas que o seja, então, nessas circunstâncias. Exigem-no razões culturais decorrentes da existência de um público, ainda que minoritário, cada vez mais exigente; exige-o o facto de gradualmente se ter vindo a estabelecer uma linguagem cujas características permitem encarar a Televisão como um modo de expressão ambicioso; exige-o a herança de outras formas de arte, como o cinema e o teatro, às quais e a partir das quais se fica a dever a constituição de um corpo gramatical autónomo; exige-o o desenvolvimento tecnológico, ele próprio indutor de novas formas de expressão.


Por tudo isto há um número crescente de programas exclusivamente dedicados à reportagem, em horário nobre, em numerosas estações de Televisão. Em regime de concorrência esse procedimento acaba por institucionalizar-se, sem receio da mediação do repórter


"que carrega consigo toda uma formação cultural, todo um background pessoal, eventualmente opiniões muito firmes a respeito do próprio facto que está testemunhando, o que o leva a encará-lo de maneira diferente de outro companheiro com background e formação diversos."(12)


A gestão hábil deste género de diferença, bem como a capacidade de a entender e aceitar, são condições de uma informação democrática. Quanto mais não seja porque é

"realmente inviável exigir dos jornalistas que deixem em casa todos esses condicionalismos e se comportem, diante da notícia, como profissionais assépticos, ou como a objectiva de uma máquina fotográfica, registando o que acontece sem imprimir, ao fazer o seu relato, as emoções e as impressões puramente pessoais que o facto neles provocou.(13)


Não será uma perspectiva arriscada? Pelo contrário, é o único ponto de vista seguro para produzir boa informação: apostar na alta qualidade técnica e profissional do jornalista. De resto, ao contrário do que é dito na citação, nem sequer a objectiva da câmara opera de forma a reproduzir a realidade tal qual.


CONSIDERAÇÕES


É universalmente válido o princípio, segundo o qual o bom jornalista de Televisão, o apresentador de notícias incluído, deve ter um apurado sentido de reportagem. O domínio da linguagem do medium começa por aí. A CBS, por exemplo, escolheu Dan Rather para substituir Walter Conkrite, provavelmente o anchorman mais conhecido de toda a história da Televisão. Quando eclodiu a crise do Golfo, com a invasão do Kweite pelo Iraque, Rather foi dos primeiros a partir para a linha da frente. Claro que o envio de um apresentador-vedeta para um cenário de guerra comporta alguns riscos, nomeadamente aquele que decorre da própria notoriedade da vedeta, suficiente, por vezes, para ensombrar a pertinência dos factos, uma vez que pode tender a substituí-los.


Walter Conkrite. Fonte: Newsweek

Há mesmo quem entenda que nada justifica a ida de um apresentador em reportagem. De qualquer modo, Rather também tinha reputação de repórter. Antes dele, Conkrite já fizera história com as suas reportagens sobre a Guerra do Vietname, a tal ponto que, após ter deixado a Casa Branca, Lyndon Johnson admitiu ter percebido que os Estados Unidos estavam a perder a guerra após ter visto os trabalhos do jornalista da CBS. Em comum, sendo ambos vedetas, Conkrite e Rather tinham o facto de serem repórteres capazes, aliando a competência técnica à maturidade jornalística.(14)


Essa competência e essa maturidade adquirem-se ao longo dos anos, com trabalho, curiosidade, estudo e oportunidades, muitas vezes a partir da abordagem de assuntos aparentemente insignificantes. Aliás, é suspeito quando um jornalista destacado em serviço de reportagem regressa com frequência de mãos a abanar, argumentando com alegada falta de interesse do assunto. Na verdade, na maioria dos casos não se deu sequer ao trabalho de procurar uma solução. Quando, afinal, a realidade é tão estimulante que é quase sempre possível encontrar motivos de interesse mesmo em casos banais. Tudo depende da formação profissional do repórter.


Repórteres bem preparados são altamente rentáveis. Ao invés, repórteres impreparados ficam demasiado caros e são causadores de prejuízos que repercutem em cadeia, como veremos adiante. Gontijo Teodoro, que foi director do departamento de Telejornalismo da TV Tupi do Rio de Janeiro e titular de um dos programas de maior impacto da história da Televisão brasileira, o Repórter Esso, chamou a atenção para esse facto. Segundo ele, ao prevalecer a lógica da vedeta, ou do "talento", como lhe chamam os brasileiros, mesmo se a vedeta se limita ao papel de repetidor, ou de "papagaio", como lhe chamamos nós em Portugal, ao prevalecer a lógica da vedeta — dizia — descura-se a formação profissional dos repórteres. Estes, na maioria dos casos, não passam de simples locutores, afirma Teodoro, "transportados para a rua de outros ambientes, caricaturando uma função importante que, se bem desempenhada, daria mais impacto e força às reportagens realizadas no "campo de batalha".


"O repórter deveria apanhar, ele próprio, as informações que divulga — acrescenta o jornalista — e não ser o que geralmente temos visto nos vídeos: moças e rapazes charmosos, ledores de textos e informações corrigidas e redigidas por outros, alheios ao desenrolar dos factos, mais 'por fora' do que um recém--nascido diante de um livro de química."(15)


Quando Dan Rather (de costas) respondeu à letra ao presidente dos Estados Unidos. Richard Nixon: "O senhor está a pretender fazer algum número de circo ?" Dan Rather: "Eu não, presidente, porquê, o senhor está?"

Haverá algum exagero nestas afirmações, pelo menos quando interpretadas à luz da realidade de alguns países europeus, mas não deixa de ser verdadeira a tendência bastante generalizada para lançar jovens jornalistas no terreno da reportagem televisiva sem lhes proporcionar uma preparação adequada ou, sequer, um acompanhamento mínimo. Os resultados não são abonatórios. Do ponto de vista cultural e de conhecimentos elementares sobre a história moderna e contemporânea, a ignorância chega a espantar, embora apareça quase sempre mascarada, ora pela informação do telex, ora pelos estereótipos que os próprios media se encarregam de forjar. Do ponto de vista técnico, é fácil constatar o desconhecimento da linguagem da Televisão, quer por parte de jornalistas inexperientes, quer de jornalistas com experiência doutros meios de comunicação, mas não do jornalismo electrónico. Muitas das peças produzidas são apenas textos ilustrados. O resultado é inapelavelmente frouxo.


Vamos aos prejuízos. Há, desde logo, um problema de credibilidade resultante do trabalho mal executado o que, em regime de concorrência, pode levar à perda de audiência. Depois, em termos estritamente financeiros, esse trabalho mal executado sai por um preço exorbitante e, como atrás se disse, repercute em cadeia em toda a estrutura operacional dos departamentos de Informação. Exagero? Vejamos a seguinte hipótese.


Um jovem jornalista sai para o terreno com uma equipa de E.N.G. e não sabe como pedir imagens ao operador. Muito menos tem a noção do que possa ser um argumento ou um guião, logo, não imagina sequer como vai contar a sua história. Desconhece o assunto. Grava uma entrevista de quinze ou vinte minutos, da qual apenas terá de aproveitar alguns segundos. Utiliza o microfone como bloco de apontamentos. Quando o jornalista regressa à estação leva uma cassete cujo conteúdo desconhece. Apercebe-se do facto de ter de seleccionar o seu minuto ou minuto e meio de imagens a partir de uma gravação interminável, na qual avulta uma enorme e despropositada entrevista. Perde imenso tempo a visionar o material ocupando uma máquina e, eventualmente, um operador de montagem. Por fim, lá decide qual a parte da entrevista a destacar, redige um texto e debita-o em banda áudio. Depois começa a cobrir o texto de imagens, procurando fazer coincidir palavras e imagens, esforço vão, pois inevitavelmente faltar-lhe-ão imagens, o senhor fulano de tal não aparece, nem o outro envolvido no caso e assim por diante. Supõe estar a fazer uma montagem quando, na verdade, perante a impotência do editor de imagem faz uma colagem de planos com o tempo de corte à palavra, portanto, à revelia da gramática das imagens.


Procedimentos deste género estão tão vulgarizados que chegam a parecer razoáveis. Não o são. Muito pelo contrário, repetidos no dia a dia conduzem ao bloquear da criatividade, à institucionalização da rotina de mal fazer, à descrença de quantos são obrigados a conviver com esta engrenagem, uma equipa cujos jogadores chutam cada um para seu lado com manifesto prejuízo de espectáculo. Os equipamentos são indevidamente rentabilizados, os custos sobem, perde-se a paciência, o ambiente deteriora-se. Perde--se muito dinheiro. E quando se permite que as coisas cheguem a este ponto, multiplicam-se as soluções administrativas, prevalece a lógica tentacular dos burocratas e o produto informativo só pode ser de baixa ou muito baixa qualidade.


A informação na Televisão não pode ser isso.


Complemento da dedicatória de José Rodrigues para A Caixa Negra, 1993.

A MENSAGEM


Estas considerações remetem para a codificação da mensagem televisiva. Esta, tal como acontece com as mensagens de quaisquer outros media, só faz sentido em função de receptor, o qual protagoniza um duplo processo de assimilação dos estímulos informativos: opera, por um lado, uma acção cognoscitiva baseada na percepção, no sentido de descodificar a mensagem; simultaneamente, é agente de uma participação emocional, de carácter eminentemente psíquico, caracterizada pelos aspectos interactivos da emoção e da atenção. Ora acontece frequentemente a emoção prevalecer sobre a atenção. Barroso García considera ser essa uma das causas da chamada descodificação aberrante. Mas há outras, como sejam o desconhecimento do código por parte do receptor, a incorrecta articulação da mensagem, a eventual polissemia e ambiguidade das imagens e o contexto cultural da audiência. O mesmo autor adverte:


"Com mais frequência do que poderíamos imaginar e desejar, a Televisão converte-se num excelente meio de não informação — há um número suficiente de trabalhos experimentais a respeito da exígua percentagem da informação emitida que é captada pelo espectador e sobre a incapacidade persuasiva do meio. Dando estimativas globais como referência, pode calcular-se que numa situação de recepção favorável apenas 30-35 por cento da informação emitida é efectivamente retida, enquanto em situações desfavoráveis a percentagem baixa até 10-8 por cento, em consequência tanto das circunstâncias ambientais, como das características da personalidade e atributos socio-culturais do receptor."(16)


Estas afirmações poderão ser controversas, mas não são, de modo algum, gratuitas. Controversas porque a eficácia persuasiva do medium não pode medir-se apenas em função da mensagem singular. Passa pela técnica da repetição de palavras--chave aliada a um envolvimento sensorial, uma espécie de ressonância, como lhe chama Tony Schwartz(17) decorrente do próprio modo de operar do medium num determinado contexto cultural. Mas o ponto de vista de García é pertinente quando chama a atenção para o facto do telespectador ser apenas medianamente atento, visto a sua atenção se dispersar pelo ruído ambiente proveniente das mais diversas fontes. O que quer dizer que o repórter é obrigado a reflectir sobre o modo de contrariar essa tendência para a dispersão, ou seja, tem de codificar correctamente a sua mensagem, sob pena de contribuir para a perda de interesse por parte da audiência. Até porque enfrenta ainda alguns


EFEITOS PARADOXAIS


Deparamos com imagens em toda a parte: nos cartazes de anúncios publicitários, na propaganda eleitoral, no cinema, nas artes plásticas, no teatro, na televisão, nos múltiplos sinais indicadores de uma regulação social que passa, por exemplo, pelos semáforos e placas de trânsito, etc. É a civilização da imagem. A realidade aparece-nos, pois, globalmente reproduzida pelo sentido da visão aliado, frequentemente, ao sentido da audição. Contudo, apesar da multiplicidade de signos icónicos e sonoros a cuja organização correspondem códigos e linguagens específicos o facto, como assinala McLuhan (18), é que a sociedade parece olhar o mundo pelo retrovisor. Prevalece a linearidade de cinco séculos de Gutenberg. Há na vida social como que um desfasamento gramatical. A Televisão, por exemplo, sendo um medium audiovisual, confronta--se com estruturas mentais organizadas nos termos das civilizações da escrita linear. Por isso, é mais fácil ao telespectador descodificar a mensagem contida no texto escrito (lido) ou falado, do que decifrar o conjunto de signos visuais inscritos na composição e articulação dos planos. Dito de outra maneira, melhor ou pior o telespectador conhece a gramática das palavras, mas desconhece a gramática das imagens. Desta relativa incapacidade do telespectador ler Televisão resulta um primeiro efeito paradoxal: sendo o impacto da sensorialidade imediato, prevalece, ainda assim, uma maior disponibilidade interiorizada, porque se trata de algo de cultural, para descodificar os textos escritos.


Fonte: Anonymous ART of Revolution.

Eco abordou o problema com perspicácia:


"A comunicação de uma palavra põe em actividade, na minha consciência, todo um campo semântico que corresponde ao conjunto das diferentes acepções do termo (com as conotações afectivas que cada uma das acepções comporta); o processo de compreensão exacta realiza-se porque, à luz do contexto, o meu cérebro, por assim dizer, inspecciona o campo semântico e individualiza a acepção pretendida excluindo as outras (ou mantendo-as em fundo). A imagem, por sua vez, apanha-me precisamente na maneira inversa: concreta e não geral como o termo linguístico, comunica-me todo o conjunto de emoções e significados ligados a ela, obriga-me a captar instantaneamente um todo indiviso de significados e de sentimentos, sem poder isolar aquilo de que preciso."(19)


Estamos, assim, perante dois tipos de saber:


"(...) um saber lógico que produz efeitos comportamentais (à ordem 'dá-me o livro' eu distingo o significado exacto da frase e o meu saber determina o comportamento consequente), e a visão de efeitos comportamentais em acto (a cena representada) que se tornam causas de um meu saber alógico, complexo, entretecido de reacções fisiológicas (tal como aconteceria se, por via verbal, me fossem comunicados não termos referenciais, mas exclamações de efeito imperativo, como 'alto!', 'basta!', 'atenção!' e assim por diante."(20)


Ver resulta, portanto, de um outro efeito paradoxal, na medida em que consiste numa operação de descodificação tanto mais simples, quanto mais a Televisão "mente", ou seja, quanto mais profunda for a ilusão da realidade criada.


O que nos leva ao problema da linguagem.

(Continua)


Notas remissivas


CAPÍTULO II


1. COSTELLA, António

Comunicação - Do grito ao Satélite, Editora Mantiqueira, São Paulo, 1984

2. Ibidem

3. RIZZINI, Carlos

O Jornalismo antes da Tipografia, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1977

4. Ibidem

5. BAPTISTA, J. e VALDEMAR, A.

Repórteres e Reportagens de Primeira Página, Conselho de Imprensa, Lisboa, 1990. Prado Coelho é diversas vezes citado nesta obra. Todavia, não é feita referência bibliográfica ao seu Dicionário de Literatura, uma obra que tem conhecido diversas edições.

6. Ibidem

7. Ibidem

Fernando Pessoa é citado a partir das suas páginas de Estética, Teoria Crítica Literárias, Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.

8. GAILLARD, Philippe

O Jornalismo, Publicações Europa-América, Lisboa, 1974

9. MORIN, Edgar

L'Espirit du Temps, Essai sur la culture de masse , Grasset, Paris, 1962

10. Ibidem

11. SCHAEFFER, Pierre

Les Machines à Communiquer, Éditions du Seuil, Paris, 1970

12. ROSSI, Clóvis

O que é o Jornalismo, Brasiliense, São Paulo, 1980

13. Ibidem

14. O percurso de Rather na CBS, de facto, está longe de ter sido pacífico. De resto, ele

tem a fama de ser uma pessoa controversa no seu relacionamento com o pessoal da estação e o seu nome surge publicamente, com alguma frequência, ligado a episódios que fazem duvidar da sua estabilidade emocional. No entanto, todos lhe reconhecem a sua excelência como repórter. Como outros da sua geração passou pelo baptismo de fogo jornalístico dos anos sessenta e, como costuma dizer-se, esteve em todas: lutas pelos direitos cívicos dos negros americanos, assassínio dos Kennedy e Martin Luther King, uma temporada no Vietname. Tornou-se especialmente notado quando correspondente da CBS na Casa Branca onde ousou afrontar o presidente Nixon, respondendo-lhe à letra. Nixon, a uma pergunta de Rather respondeu-lhe de forma insultuosa com outra pergunta do género: "O senhor está a pretender fazer algum número de circo ?" Ao que Rather contrapôs: "Eu não, presidente, porquê, o senhor está?" Particularmente detestado pelos republicanos após este incidente e de outro mais tarde, com o presidente Reagan, Rather, aliás, um conservador, foi especialmente visado em 1985 quando políticos ligados à presidência lançaram uma campanha para comprar a CBS cuja consigna era: "Comprem vinte acções da CBS e tornem-se patrões de Rather."

15. TEODORO, Gontijo

Jornalismo na TV, Editora Tecnoprint, S.A., Rio de Janeiro, 1980

16. GARCIA, Jaime Barroso

Tratamiento de la Information en Television, Instituo Oficial de Radio Y Television/Ente Publico RTVE, Madrid, 1987

17. SCHWARTZ, Tony

Mídia: O Segundo Deus, Summus Editorial, São Paulo, 1985

18. McLUHAN, Marshall

A Galáxia de Gutenberg, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1977

19. ECO, Humberto

Apocalípticos e Integrados, Difel, Lisboa, 1991

20. Ibidem

Apocalípticos e Integrados foi publicado pela primeira vez em Itália em 1964. Desde então conheceu várias actualizações e outras tantas edições. Na parte respeitante aos Apontamentos sobre Televisão, Eco afirma: "A percepção do mundo circundante é fundamental para a formação de um indivíduo e para a orientação da sua conduta; ora, esta percepção do mundo (esta soma de experiências) prepara-se para se tornar hipertrófica, maciça, superior às possibilidades de assimilação; e, inicialmente idêntica para todos os habitantes do globo. Por outro lado, este acréscimo de experiência ocorre segundo modalidades qualitativamente novas: por via sensorial e não conceptual; não enriquecendo a imaginação e a sensibilidade segundo as modalidades da "catarse" estética (a qual exige consciência da ficção, racionalização do evento representado e o seu julgamento), mas impondo-se com a evidência da realidade indiscutível; e — o que é mais perturbante — invertendo as proporções que regulavam a relação quantitativa entre informações acerca dos eventos passados e informações acerca dos eventos simultaneamente presentes."

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