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CULTURA

  • Foto do escritorJorge Campos

A Caixa Negra I - A vertigem da realidade

Atualizado: 18 de dez. de 2020

Este texto tem quase 30 anos e tem por base um trabalho académico da altura. Foi publicado num livrinho chamado A Caixa Negra e é sobre a Televisão. Depois de o recuperar e reler, apesar do tempo passado, penso que ainda terá alguma utilidade até porque a memória permite pensar o presente. Reflete sobre o trabalho dos jornalistas e sobre as relações de poder. Nesse aspecto continua a fazer sentido. Abaixo do título, aparecia Discurso de um Jornalista sobre o Discurso da Televisão. É isso mesmo. O jornalista era eu.


Fonte: Pjotr, Anonymous Art of Revolution


INTRODUÇÃO


A caixa negra é coisa de aviões. Pouco sei a seu respeito. Pelo que leio nos jornais trata-se de um instrumento no qual ficam registados os dados de um voo e, em caso de acidente, permite identificar as suas causas. Interessante seria descobrir os mecanismos do registo independentemente da contingência trágica do desastre. Para mim, a caixa negra tem uma vaga ressonância da caixa de Pandora. Ou seja, encerra em si mesma um sentido metafórico cujo alcance se mede a partir de uma outra contingência, esta radicando no facto do autor destas linhas ser jornalista de Televisão, a qual, como se sabe, suscita todas as curiosidades e todas as cobiças, voando muitas vezes sem respeitar as normas de segurança, logo, incorrendo no risco de se despenhar com tripulação e passageiros a bordo. O que seria desagradável, acrescente-se, mas não de todo improvável se atentarmos nos desenvolvimentos da corrida à conquista de audiências legitimada por agendas de poder e pela sacralização do capital.


Um pouco como quem viaja de avião há sempre um momento em que as pessoas se interrogam: e se isto caísse? Normalmente, não cai, nem essas coisas nos acontecem a nós, acontecem quase sempre aos outros. Mas essa pergunta, por sinal insidiosa, persiste ao nível do subconsciente e é, em razoável medida, uma consequência, por um lado, da consciência da falibilidade da técnica e, por outro, do desconhecimento das regras do voo.


Ora é justamente sobre as regras que me interrogo. O resto é aleatório, não depende de mim.


Portanto, a Caixa Negra. Admito que este adjectivo, negra, possa sugerir a presença de um território transcendente da mera problemática das linguagens, induzindo um juízo crítico pessimista. Na verdade, não é bem assim, embora, como se verá, se tenha evitado pactuar com a indulgência perante factos só por si suficientes para transformarem a Televisão num caixote de lixo. Procurei, no entanto, não perder de vista as espantosas possibilidades em aberto tendo em conta que, afinal, o saber exige a consciência de erro e a dimensão de sentido ético.


Sendo trabalho de um jornalista, a Caixa Negra acaba obviamente por reflectir uma experiência profissional de um número de anos não negligenciável, sobretudo na Televisão, mas também na Imprensa e na Rádio. E sendo o jornalista essencialmente um repórter é igualmente perceptível, no plano formal, a presença de algumas técnicas jornalísticas, designadamente da reportagem. É o caso do recurso ao chamado "elemento humano", o qual facilita a leitura de assuntos, por vezes áridos, através da identificação de personagens indissociavelmente ligadas ao mundo da comunição.


Também por via da minha formação profissional adoptei para o texto uma estrutura mosaico, na qual, espero, da interacção das partes possa resultar uma unidade global. O texto comporta um preâmbulo, cinco capítulos e um epílogo, articulando-se em torno de um núcleo central respeitante à linguagem. Esta, porém, é encarada através de uma abordagem tanto quanto possível diacrónica, por forma a integrar a complexidade dos problemas que hoje se põem ao exercício de uma profissão cada vez mais exigente. Daí a relevância atribuída a fenómenos como a propaganda, às relações entre o Poder e a Informação, bem como a algumas teorias da comunicação social, cujos paradigmas permitem ilustrar os contornos dos episódios mediáticos enunciados.


Por razões de legibilidade e de lisibilidade do texto optei por traduzir para Português diversas citações. As traduções são, portanto, da minha responsabilidade. Na bibliografia e notas dou conta, apenas, de publicações efectivamente consultadas.


Segundo Umberto Eco existem várias hipóteses de empenhamento psicológico do espectador. “...vão do distanciamento crítico mais completo (a pessoa que se levanta e se vai embora aborrecida), ao juízo crítico que acompanha a fruição, ao abandono inadvertido a uma evasão responsável, até à participação, à fascinação ou (em casos patológicos) à hipnose propriamente dita”. Fonte: Criática


PREÂMBULO:

“Freud dificilmente poderia curar um esquimó. Mas, perante um adolescente dos nossos dias, estaria totalmente desarmado. Como invocar a história individual de alguém que apenas viu o efémero?" - Tony Schwartz

IMAGENS, SONS: IDEIAS

Em Televisão contam as imagens, os sons, a espectacularidade. Pelo menos, por agora, é assim. No nosso estádio civilizacional exige-se o espectáculo encenado a partir da articulação de signos audio-scripto-visuais, na expressão de Jean Cloutier (1), os quais jogam essencialmente nos grandes planos, num ritmo de edição de imagens acelerado, em textos curtos, quase telegráficos, e em sons de diferentes intensidade, consoante a intenção expressiva que lhes for atribuída. Mensagens assim codificadas, ainda que alegadamente se possam justificar invocando as características do medium, deixam pouco tempo para pensar. Por isso, a classe política, por exemplo, prefere a metáfora, a qual permite a fácil transposição do discurso para o plano da recriação imagética, ou seja, a visualização da palavra. Um aparte acutilante e uma performance adequada vencem qualquer óptima ideia formulada em termos desajustados à natureza do meio.


O espectador do futuro poderá, porventura, vir a estabelecer um relacionamento diferente com a Televisão dando preferência ao espectáculo do pensamento, à força dos argumentos no quadro da sabedoria de uma humanidade tolerante, a qual, à semelhança dos antigos gregos, encontraria prazer na arte de pensar. Não é certo, porém, que isso venha a acontecer, pelo menos, não nestes termos. Na verdade, uma civilização não pode definir-se independentemente do seu sistema de difusão e, como tal, não é previsível a possibilidade de existência de uma cultura em si, a priori, ideal. Existem, sim, culturas moldadas pelos meios de comunicação, adaptadas a eles, e das quais os media são o elemento determinante. Logo, o futuro será sempre condicionado por esta lógica sistémica, intrínseca.


Umberto Eco adverte que "a civilização democrática salvar-se-á unicamente se da linguagem da imagem se fizer um estímulo à reflexão crítica e não um convite à hipnose."(2) E Jean Baudrillard sustenta que a "comunicação de massa não nos fornece a realidade, mas a vertigem de realidade."(3) Segundo ele, as relações dos indivíduos com os media configuram uma situação de recusa do real, baseada na apreensão ávida e na multiplicidade dos seus signos. Este ponto de vista está relacionado com aquilo a que alguns autores chamam


A DITADURA DOS INSTANTES


Baudrillard afirma que ao indivíduo seria necessária a violência e inumanidade do mundo exterior para que a segurança não só se experimente como tal, com maior profundidade, mas também para que se sinta justificada em si mesma: uma espécie de economia moral de salvação. Diz ele, aludindo à violência na televisão:


"A quotidianidade como enclausuramento, como Verborgenheit, seria insuportável sem o simulacro do mundo, sem o álibi de uma participação no mundo. Tem necessidade de alimentar-se das imagens e dos signos multiplicados da vertigem da realidade e da história. A sua tranquilidade precisa, para se exaltar, de uma perpétua violência consumida. Tal é a sua obscenidade. É gulosa de acontecimentos e de violência, contanto que lhe seja servida em casa.(4)


Jean Baudrillard: “A quotidianidade como enclausuramento seria insuportável sem o simulacro do mundo, sem o álibi de uma participação no mundo (...) precisa, para se exaltar, de uma perpétua violência consumida. Tal é a sua obscenidade. É gulosa de acontecimentos e de violência, contanto que lhe seja servida em casa.” Fonte: The Irish Times

Outro autor, Tony Schwartz — guru dos comerciais da Televisão americana — defende uma lógica mediática, decorrente do modo de operar dos meios de comunicação, no interior e a partir da qual se perspectivariam as questões sociais. A propósito da Televisão, Schwartz formula uma ideia curiosa:


"Freud dificilmente poderia curar um esquimó. Mas, perante um adolescente dos nossos dias estaria totalmente desarmado. Como invocar a história individual de alguém que apenas viu o efémero?"(5)


Jacques Piveteau, por seu turno, num dos ensaios mais contundentes alguma vez publicados sobre a Televisão, afirma que ela se instala em nossas casas como um parente longínquo recebido por favor que gradualmente se transforma em pai de família autoritário, gerador de efeitos hemiplégicos no seio da família. Inibidora da vontade de agir sobre o mundo, a Televisão deveria a sua espectacularidade — em especial, a violência espectacular — à síntese da sua natureza tecnológica com os gostos por ela própria suscitados junto dos espectadores. Segundo Piveteau, "o espectacular transformou-se numa droga cujos efeitos não podem acalmar-se senão através do consumo sempre acrescido de doses cada vez maiores."(6)


(Continua)


Notas remissivas


1. CLOUTIER, Jean

A Era de EMEREC ou A Comunicação audio-scripto-visual na hora dos self-media, Instituto de Tecnologia Educativa, Lisboa, s/data

2. ECO, Humberto

Apocalípticos e Integrados, Difel, Lisboa (1991). Citando Cohen Séat, Eco mostra que existem várias hipóteses de empenhamento psicológico do espectador, "que vão do distanciamento crítico mais completo (a pessoa que se levanta e se vai embora aborrecida), ao juízo crítico que acompanha a fruição, ao abandono inadvertido a uma evasão responsável, até à participação, à fascinação ou (em casos patológicos) à hipnose propriamente dita". Prossegue Eco: "Ora parece que, ao contrário do que se pensa, as possibilidades de vigilância crítica são escassísimas, até nos profissionais que vão ao cinema na sua função de críticos (os quais geralmente só alcançam esse distanciamento, ao segundo visionamento do filme”; de facto, o espectador culturalmente dotado encontra--se a oscilar habitualmente entre uma vigilância muito branda e a participação, ao passo que as massas se deslocam de repente do fortuitismo inicial para um estado de participação--fascinação."

3. BAUDRILLARD, Jean

A Sociedade de Consumo, Edições 70, Lisboa , 1981

4. Ibidem

5. SCHWART, Tony

The Responsive Chord, Anchor Press/Doubleday, New York, 1973

6. PIVETEAU, Jacques

L'Extase de la Télévision, insep editions, Paris, 1984


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