Chris Marker e Joris Ivens: De Lettre de Sibérie (1957) a ... à Valaparaiso (1963)
- Jorge Campos
- há 4 dias
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Atualizado: há 3 dias
Folha de sala para X-RAYDOC
Lettre de Sibérie (1957) de Chris Marker e ... à Valparaiso (1963) de Joris Ivens são filmes fundamentais. Quer um quer o outro equacionam questões sociais, individuais e culturais relacionando-as com tópicos como território, identidade, passado, presente e futuro. O primeiro faz uma viajem pela Sibéria. O segundo é um mosaico policromático sobre o famoso porto de mar chileno e, também, a primeira colaboração dos dois cineastas.

Sibéria, extensa região predominantemente asiática que vai dos montes Urais ao Oceano Pacífico. Mais de treze milhões de quilómetros quadrados. Clima extremo. Ocupada durante o século XVI, apesar da diversidade etno-linguística, do ponto de vista político e cultural, é profundamente russa. Apesar da riqueza em recursos naturais, sobretudo dos minérios, a população corresponde apenas a um quinto do total do país. 1957. Era o degelo estalinista. Chris Marker acabara de fazer um documentário em Pequim quando foi convidado pelos seus amigos comunistas para filmar a Sibéria. Viajante infatigável, Identificado com o ideário progressista, aceitou o repto. Dispondo de recursos razoáveis, bem como do apoio logístico das autoridades soviéticas, reuniu uma equipa pequena e viajou sem limitações durante um longo período de tempo por terras misteriosas, conhecendo as suas gentes, tradições e modos de vida. Se aos olhos dos ocidentais a Sibéria pouco mais seria do que um lugar de desterro de presos políticos, para a União Soviética era a terra da esperança e do futuro.
Valparaíso, ao contrário da vastidão siberiana, ocupa um território com pouco mais de 400 quilómetros quadrados. A população não chega a trezentos mil habitantes. É o principal porto de mar do Chile, a cidade das quarenta e duas colinas. Lá se guardam memórias de corsários, conquistadores, batalhas, tempestades e incêndios. À medida que se sobe nos morros, assim sobe a escala da pobreza. Teleféricos asseguram o sobe e desce das pessoas. Só não sobem os mais abastados das áreas próximas do litoral. 1961. Nesse ano, o holandês Joris Ivens, cineasta prosélito de revoluções e lutas de libertação nacional, filmava em Cuba na companhia dos “barbudos” de Fidel Castro. Em La Habana, conheceu o então senador da oposição chilena Salvador Allende. Terá sido ele quem intermediou um convite da Universidade de Santiago do Chile no sentido de Ivens fazer um filme integrado no recém-criado departamento de Estudos de Cinema. Essa a génese de ...à Valparaíso. Concretizado dois anos mais tarde é, de certo modo, um filme de escola.
Vinte anos mais velho do que Marker, o holandês, cuja obra remonta ao tempo das vanguardas nos anos 20 com De Brug (1928) e Regen (1929), ganhara reputação universal como cineasta militante. Fotógrafo, editor, escritor, poeta e artista experimental, Marker assinara com Alain Resnais e Ghislain Cloquet o memorável Les statues meurent aussi (1953). Pouco depois fizera Dimanche à Pékin (1956). Partilhava com Ivens a mesma visão transformadora do mundo. Ambos tinham estado na China e na União Soviética, Em 1961, enquanto Ivens se ocupava da mobilização do povo cubano em Carnet de Voyage e Pueblo Armado, Marker concluía Cuba Sí!, um dos melhores filmes feitos sobre a Revolução.

Em diferentes escalas, quer um quer outro intervieram no movimento de renovação do documentário e da curta-metragem resultante da ação do chamado Grupo dos Trinta, em França, no pós-guerra. De uma maneira ou de outra, ambos evitaram a retórica dos esquemas lineares de persuasão de causa e efeito. Pelo contrário, construíram os seus filmes através de uma explicitação reflexiva conducente a uma visão política, todavia, poética, do mundo, nem sempre do agrado dos correligionários. Quando Lettre de Sibérie estreou em Paris perante uma plateia onde se encontrava o embaixador soviético, este, terminada a projeção, apressou-se a abandonar a sala na companhia das vinte pessoas da sua comitiva. Interpelado sobre o filme disse laconicamente que a Sibéria não era tão pobre como o filme deixava entrever.
Lettre de Sibérie vem da tradição do travelogue. A viagem começa com imagens da tundra às quais se junta o texto de Marker, redigido no estilo epistolar do poeta Hentri Michaux, seu amigo, e dito na voz inconfundível do discípulo Robert Flaherty, Georges Rouquier, autor do lendário Farrebique (1946):
"Je vous écris d'un pays lointain. On l'appelle la Sibérie. À la plupart d'entre nous, il n'évoque rien d'autre qu'une Guyane gelée, et pour le général tsariste Andréiévitch, c'était "le plus grand terrain vague du monde". Il y a heureusement plus de chose sur la terre et sous le ciel, fussent-ils sibériens, que n'en ont rêvées tous les généraux..."
Na verdade, a Sibéria pode ser muitas coisas. Depende do ponto de vista. A dada altura, o cineasta repete três vezes a mesma sequência: em Yakut, um autocarro cruza com um automóvel tendo um edifício de construção recente em fundo; trabalhadores de joelhos fazem sincronizados o nivelamento do asfalto; um homem vestido modestamente passa por eles. O texto que acompanha a sequência tem três versões. Primeiro, faz a apologia da construção do socialismo, depois indicia os malefícios do totalitarismo, finalmente, aproxima-se da mediação jornalística. É uma sequência célebre da história do cinema documental. Traz para dentro da narrativa a questão teórica essencial do ponto de vista. Quanto ao mais, Marker deita mão de todo o tipo de recursos, da animação à imagem fixa, da cor ao preto e branco, da música ao silêncio, da palavra à voz, dando corpo a um caleidoscópio de sons e imagens, emoções e reflexões, que fazem de Lettre de Sibérie um marco do cinema ensaístico. Até o bestiário, um dos traços essenciais da sua obra, já lá se encontra.

Se a incursão siberiana de Marker aponta aos filmes de viagens, a visita de Ivens ao porto de mar chileno recupera, de certa maneira, a tradição das sinfonias das cidades consagrada por mestres como Walther Ruttmann (Berlin – Die Sinfonie der Großstadt, 1927) ou Dziga Verov (O Homem da Câmara de Filmar, 1929). De início a preto e branco, ... à Valparaiso começa num dia escuro, enevoado, com o mar encapelado a rebentar nas rochas costeiras. São imagens figurativas que, ainda assim, sinalizam a memória dos filmes mais abstratos do cineasta nos anos 20, ideia, aliás, reiterada pelo contraponto do fogo de artifício lançado em noite de festa, bem como pelas citações subtis de clássicos como o surrealista Entr’acte (1924) de René Clair e o formalista Couraçado Potemkine (1925) de Sergei Eisenstein. Adiante surgem, também, alusões a Le Sang des Bêtes (1949) de Georges Franju. O mais são as colinas, Pablo Neruda a sair de uma casa nas alturas, o pulsar da vida, as gentes no dia a dia dando corpo a um fresco social cuja razão de ser exige a presença da memória e o contar da História. Diria o cineasta:
"Pendant trois semaines je me suis baladé à travers la ville et j'ai flané comme un jeune homme."
Assim terá sido. Para mais com o complemento do extraordinário texto de Chris Marker dito por um ator de primeira água como Roger Pigaut, cuja voz parece feita à medida das imagens tantas vezes articuladas como se da coreografia de um bailado se tratasse. Quando, súbito, o ecrã reverte em cor de sangue como que a fazer explodir a atmosfera até então subliminar das tempestades, batalhas e outros episódios traumáticos do imaginário de Valparaíso, vemos para além do que é mostrado. Imaginamos. Consuma-se o milagre do cinema.
Lettre de Sibérie (1957)
Realização: Chris Marker / Câmara: Sacha Vierny / Comentário: Chris Marker, dito por Georges Rouquier/ Música: Pierre Barbaud / Chef d’Orchestre: Georges Delerue / Solista: Ella Timourkhan / Efeitos especiais e animação: Équipe Arcady / Desenhos: Remo Forlany / Montagem: Anne Sarraute / Voz: Catherine Le Couey e Henri Pichett / Produção: Studios Marignan, Laboratoires Éclair / Duração: 67 minutos / Estreia: Paris, 29 de outubro de 1958.
…à Valparaiso (1963)
Realização: Joris Ivens / Assistentes de Realização: Sergio Bravo, A. Altez, Rebecca Yanez, Joaquim Olalla e Carlos Böker / Câmara: Ceorges Strouvé / Assistentes Operadores: Patricio Guzman e Leonarde Martinez / Montagem: Jean Ravel / Música: Gustava Becerra / Canção: “Nous Irons à Valparaiso” por Germaine Montero / Comentário: Chris Marker dito por Roger Pigaut.Produção: Argos Films (Paris) e Cinema Experimental da Universidade do Chile (Santiago doChile) / Assistente de Produção: Luis Carnegio / Duração: 27 minutos / Estreia: Paris, Junho de1963.
Jorge Campos
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