Este texto resulta basicamente de um dos capítulos da minha tese de doutoramento Viagem pelo(s) Documentário(s). Reporta a acontecimentos com cerca de 20 anos, o que, desde logo, obriga numa visão atual a um esforço de distanciamento. Há, como não podia deixar de ser, informações datadas e até desatualizadas. A leitura, tantas vezes solicitando a consulta de anexos e documentos tão numerosos que seria impossível tê-los aqui presentes, pode suscitar alguma dificuldade. Para mais, sendo a publicação feita em blocos, dada a extensão do trabalho, as notas remissivas acabaram sendo alteradas. No entanto, aquilo que me parece fundamental é a reflexão levada a cabo quer para efeito da concretização da Odisseia nas Imagens quer para a avaliação sistemática que dela foi sendo feita. Nesse sentido, pareceu-me oportuno suscitar algumas questões que continuam a parecer-me pertinentes em termos da definição de políticas culturais - quero acreditar que ainda faz sentido falar em políticas culturais. Para os interessados, fica, então, este ponto de encontro, o qual não teria sido possível sem os magníficos colaboradores que tive a sorte de ter e com quem muito aprendi. Assinalo, desde já, que entre os 10 eventos tidos por mais relevantes da Programação Cultural do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura, dois são do âmbito da Odisseia nas Imagens: O Olhar de Ulisses e Violência e Paixão - Uma Retrospectiva dos Filmes de Luchino Visconti. Neste texto trata-se da consigna Pontes para o Futuro da Capital Europeia da Cultura.
(Continuação da Odisseia nas Imagens I)
Pontes para o Futuro
O desafio era difícil, entre outros motivos, porque havia pouco tempo para pôr a Capital da Cultura no terreno sendo certo, igualmente, que o lado mais conservador da cidade, ligado a fortes tradições que tinham de ser respeitadas e até valorizadas, podia vir a constituir-se como reserva de incompreensão face a uma programação cultural mais ousada e inovadora. Mas era, igualmente, aliciante porque se tratava de reforçar e introduzir práticas culturais cujas consequências se pretendia fossem para além de 2001, renovando o imaginário e contribuindo para a capacidade de afirmação da cidade junto de outras cidades europeias [1].
Acresce que o evento era encarado como uma ocasião única para levar a cabo um ambicioso projecto de reabilitação urbana. No relatório da Comissão Instaladora respeitante ao ano de 1998, afirmava-se:
“A vida e o consumo culturais, como factores efectivos de desenvolvimento não devem confundir-se com o uso pretextual das actividades genéricas de cultura para a legitimação póstuma do esvaziamento vivencial dentro da cidade. Em oposição à cidade marcada pelas grandes superfícies, caberá ao Porto 2001 propôr uma acção cultural que magnifique as vantagens de um conceito de cidade herdada e aprofunde o sentido de identidade sem historicismo nem contemplação. A consciência urbana passa, tanto pela genericamente chamada animação cultural, como pelo estímulo à criação em residência e em diálogo com os lugares da cidade. Daí a necessidade de um esforço comum entre a intervenção urbana que a capital estimulará e a Acção Artística [2]”.
Mais:
“2001 não deverá ser a activação de festividades que alimentem no Porto a ilusão de ser uma Capital Europeia de primeira linha, mas uma escolha estratégica de sobressaltos que nos coloquem perante a evidência lúdica das nossas ignorâncias, que estruturem novos desafios e novas rotinas, proporcionando-nos a sua fruição e a confrontação com eles próprios [3]”.
E ainda:
“2001 deverá activar o cruzamento de equipas e experiências internacionais em projectos que só no Porto possam acontecer. Substituir-se-á, assim, à inscrição conjuntural da cidade no obsessivo mercado internacional, a ideia de um lugar de projectos, de encontros e desencontros que ajudem a firmar os nossos valores como referência e desafio aos criadores, produtores e programadores estrangeiros, cuja rota passará a cruzar-se obrigatória e estruturalmente com a nossa [4]”.
Nesta perspectiva, entendia-se que o Porto 2001 deveria privilegiar a construção de uma rede de relações inovadora tomando como ponto de partida os binómios cidadão/espectador, cidade/palco e criador/obra de arte, a qual permitiria reformular métodos de produção, realização e comunicação ligados à criação artística. Esta teria, portanto, a cidade como pano de fundo, no sentido em que a revitalização urbana de áreas estrategicamente identificadas era encarada como um modo de combater a exclusão de sectores da população tradicionalmente marginalizados no circuito da produção, realização e dos consumos culturais.
Da análise do conjunto de recomendações da Comissão Instaladora da Sociedade Porto 2001 visando conferir coerência metodológica à Programação ressalta o intuito reiterado de consolidar eventos já existentes, por um lado, e, por outro, a preocupação de criar novas iniciativas numa perspectiva de continuidade para além do horizonte temporal da Capital Europeia da Cultura [5].
A construção dessas Pontes para o Futuro pressupunha, assim, a disponibilidade de uma cidade em movimento, sendo que a programação cultural teria necessariamente de integrar um conjunto complementar e diversificado de acções de formação a partir do qual pudessem surgir profissionais qualificados nas áreas da gestão cultural, da produção, da utilização de meios técnicos e da mediação especializada em comunicação, marketing e animação cultural. A necessidade deste tipo de formação impunha-se como uma evidência. Da iniciativa conjugada da autarquia e do governo central tinha anteriormente resultado um número apreciável de grandes e pequenos espaços culturais, todavia sem a necessária dotação de pessoal especializado, o que conduzira, pontualmente, não só a um sub-aproveitamento desses mesmos espaços, mas também a uma falta de profissionalismo comprometedora da boa execução dos projectos. A formação permitiria superar as deficiências abrindo perspectivas de trabalho qualificado a estudantes das escolas profissionais já existentes. Admitia-se mesmo que “a criação de uma ‘bolsa’ de profissionais nas áreas atrás definidas pode vir a projectar-se para lá do objectivo inicial, gerando projectos privados nas áreas de carácter empresarial ligadas à cultura e ao lazer [6]”.
No seu Relatório a Comissão Instaladora abordava ainda aspectos respeitantes ao Envolvimento da População, à Comunicação e Marketing, a estudos sobre os públicos potenciais e a métodos de avaliação de resultados.
Em relação ao Envolvimento da População tratava-se basicamente de conceber um modo de atrair à programação as pessoas habitualmente arredadas dos espectáculos, exposições e outras actividades culturais, se necessário indo ao seu encontro na rua ou nos bairros. Para tanto, propunham-se essencialmente dois tipos de accções: “as que valorizem a participação das populações dos bairros na melhoria e animação dos seus espaços comuns, recriando tradições significativas da cultura popular com meios técnicos e financeiros acrescidos; as que, pela informação e sedução/provocação que transportem, possam induzir nos cidadãos a vontade de participarem em outros eventos incluídos na programação geral do Porto 2001, mesmo quando realizados noutras zonas na cidade e em equipamentos culturais a que habitualmente não acedem [7]”. Para levar a cabo estes propósitos recomendava-se o envolvimento de instituições públicas e privadas, como as escolas, clubes e associações, às quais deveria ser proporcionado acompanhamento técnico qualificado de modo a incentivar as iniciativas individuais ou de grupo.
Contava-se, também, com a acção de um gabinete de Comunicação e Marketing, ao qual, a par de promover o envolvimento da população, foi cometida a tarefa de planear a estratégia adequada a promover e dar visibilidade à Capital Europeia da Cultura quer no plano nacional, quer no plano internacional.
Reconhecia-se, finalmente, a necessidade do trabalho dos decisores, gestores e programadores assentar em dados concretos para efeito da definição de estratégias de comunicação e de captação de públicos. Nesse sentido, a Comissão Instaladora da Sociedade Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura decidiu encomendar estudos nesses domínios e propôs a criação de uma Comissão de Acompanhamento – entendida como um pólo de reflexão independente e distanciado –, à qual ficaria cometida a incumbência da elaboração de relatórios críticos e de pareceres fundamentados sobre matérias em relação às quais fosse chamada a pronunciar-se.
Do ponto de vista da Programação Cultural foram identificadas duas áreas de importância estratégica: a Música e o Audiovisual e Multimédia [8]. A aposta no Audiovisual e Multimédia, de acordo com o Relatório da Comissão Instaladora justificava-se fundamentalmente em função dos seguintes pressupostos:
“O inevitável percurso para a Sociedade da Informação torna cada vez mais importante a produção de ‘conteúdos’ em Portugal para salvaguardar a permanência da cultura portuguesa no Mundo (...) num momento em que o satélite, o cabo e a difusão terrestre digital aceleram os processos de globalização dos media e o seu impacto entre nós; a produção de conteúdos audiovisuais e multimédia para ser feita com a qualidade que garanta a sua eficácia e difusão internacional é um vasto campo de trabalho para criadores de todas as áreas das artes e das letras, para investigadores e técnicos qualificados, podendo fixar na cidade e área metropolitana a ‘massa crítica’ que tende a fugir-lhe e gerar a criação de organizações empresariais baseadas nesse trabalho eminentemente cultural [9]”.
Estes pressupostos, associados à ideia que aqui se retoma segundo a qual a programação deveria decorrer de uma “escolha estratégica de sobressaltos que nos coloquem perante a evidência lúdica das nossas ignorâncias, que estruturem novos desafios e novas rotinas [10]”, constituíram o ponto de partida para a explicitação da lógica da Programação da área Audiovisual e Multimédia, a qual fez do Documentário a opção prioritária.
Uma vez feita essa opção, por razões de coerência teórica e metodológica, considerou-se essencial valorizar o papel do Cinema, pelo que se entendeu alterar a designação da área para Cinema, Audiovisual e Multimédia, a qual viria, posteriormente, a ser conhecida por Odisseia nas Imagens.
Notas remissivas
[1]. A Programação Cultural da Sociedade Porto 2001, sob a coordenação de Manuela Melo, numa primeira fase, ficou a cargo de Álvaro Domingues (Relações Institucionais), Paulo Cunha e Silva (Ciência e Literatura; Relações com Roterdão), Pedro Burmester (Música), Miguel Von Haffe Pérez (Artes Plásticas), Jorge Campos (Cinema, Audiovisual e Multimédia), Isabel Alves Costa (Artes de Palco), João Teixeira Lopes (Envolvimento da População) e Júlio Moreira (Animação da Cidade). Posteriormente, as equipas iniciais foram reforçados com novos elementos. - Nota do Autor. [2] . Relatório da Comissão Instaladora da Sociedade PORTO 2001 S.A. de Setembro de 1998, sem páginas numeradas. [3] . ibid. [4] . ibid. [5] . É a seguinte a lista de recomendações avançadas no Relatório da Comissão Instaladora da PORTO 2001 S. A.: “- sedimentação de eventos e/ou áreas de criação já existentes (ou com potencialidades) na cidade, e criação de novos eventos cíclicos em áreas estratégicas, que nasçam com uma qualidade a manter depois de 2001”; - fomento da criatividade dos artistas portugueses, através de encomendas, apresentação e divulgação do seu trabalho (inclusive em outras áreas geográficas, com destaque para Roterdão) e, sempre que possível, desenvolvendo no Porto projectos conjuntos com artistas de outros países; - apresentação de produções inéditas, seja porque trazem à cidade pela primeira vez obras essenciais da cultura europeia e mundial, seja pelo carácter artístico inovador que transportam; - valorização da cidade como espaço informal de contacto entre criadores e cidadãos, despertando o interesse global pela articulação activa nos projectos incluídos no Porto 2001; - integração das programações específicas das diversas áreas, para que o programa global do Porto 2001 se desenvolva ao longo do ano harmonicamente, seja no que respeita à distribuição dos pontos altos, seja na sua ligação a projectos de menor dimensão que os possam amplificar (no campo dos criadores e dos públicos), seja ainda para, em cada momento, haver uma oferta diversificada, adequada às condições dos equipamentos culturais e dos espaços públicos que os ligam; - articulação da Programação Porto 2001 com projectos de instituições culturais da Área Metropolitana do Porto, desde que se enquadrem no conceito global definido e se encontrem formas de co-financiamento fora do orçamento da Capital Europeia da Cultura; - privilegiar eventos e actividades que potenciem a requalificação urbana também integrada no Porto 2001, com destaque para a revitalização da ‘baixa’, a criação de ‘circuitos culturais’ ancorados nos equipamentos e no património existente, o centro histórico, as frentes ribeirinha e marítima e espaços informais (fábricas, armazéns, jardins, pátios de bairros, etc.); - estabelecer pontes entre a criação artística e o universo empresarial, para que a criatividade de designers, arquitectos, estilistas e artistas plásticos possa conferir a indústrias (tradicionais ou emergentes) uma marca própria de qualidade e contemporaneidade de que cada vez mais necessitam; - não esquecer o carácter festivo e lúdico que toda a cidade deve apresentar ao longo do ano, para o que é necessário cuidado especial com a defesa (pelos cidadãos e pelas entidades responsáveis) do ambiente, nomeadamente com a limpeza de ruas e a renovação do imobiliário urbano, da qualidade do alojamento, restauração e locais nocturnos de diversão, da sinalização cuidada e cenográfica de obras, eventos e actividades diversas incluídas no Projecto Porto 2001”. - in Relatório da Comissão Instaladora da PORTO 2001 SA de Setembro de 1998, sem páginas numeradas. [6] . Relatório da Comissão Instaladora da PORTO 2001 SA de Setembro de 1998, sem páginas numeradas. [7] . ibid. [8] . O Relatório da Comissão Instaladora segue de perto, nesta matéria, o conteúdo das Linhas Gerais da Programação da Área Audiovisual e Multimédia in Anexo III pp. 15-23. - Nota do autor. [9] . Relatório da Comissão Instaladora da PORTO 2001 SA de Setembro de 1998, sem páginas numeradas. [10] . ibid.
(Continua)
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