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CULTURA

Foto do escritorJorge Campos

Porto 2001 - Odisseia nas Imagens III

Atualizado: 20 de out. de 2023


Este texto resulta basicamente de um dos capítulos da minha tese de doutoramento Viagem pelo(s) Documentário(s). Reporta a acontecimentos com cerca de 20 anos, o que, desde logo, obriga numa visão atual a um esforço de distanciamento. Há, como não podia deixar de ser, informações datadas e até desatualizadas. A leitura, tantas vezes solicitando a consulta de anexos e documentos tão numerosos que seria impossível tê-los aqui presentes, pode suscitar alguma dificuldade. Para mais, sendo a publicação feita em blocos, dada a extensão do trabalho, as notas remissivas acabaram sendo alteradas. No entanto, aquilo que me parece fundamental, é a reflexão levada a cabo quer para efeito da concretização da Odisseia nas Imagens quer para a avaliação sistemática que dela foi sendo feita. Nesse sentido, tratando-se, que eu saiba, da única tese de doutoramento que envolve o Porto 2001- Capital Europeia da Cultura, pareceu-me oportuno dar a conhecer os seus traços fundamentais e, desse modo, suscitar algumas questões que continuam a parecer-me pertinentes em termos da definição de políticas culturais - quero acreditar que ainda faz sentido falar em políticas culturais. Por isso, à medida em que for recolhendo os elementos essenciais, irei acrescentando textos a este texto. É com gratidão que verifico que, ao fim e ao cabo, aqui e ali, sobretudo na área do ensino superior, há marcas da Odisseia na Imagens, mesmo que nenhuma referência lhe seja feita. Para os interessados, fica então este ponto de encontro, o qual não teria sido possível sem os magníficos colaboradores que tive a sorte de ter e com quem muito aprendi. Nota final: entre os 10 eventos tidos por mais relevantes da Programação Cultural do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura, dois são do âmbito da Odisseia nas Imagens: O Olhar de Ulisses e Violência e Paixão - Uma Retrospectiva dos Filmes de Luchino Visconti. Neste texto, começa a falar-se do ponto de partida da Odisseia nas Imagens. Esse ponto de partida teve em linha de conta o legado do cinema feito no Porto, o papel estruturante dos festivais de cinema e da RTP, bem como a articulação com as escolas de Ensino Superior por forma a promover os cursos de Imagem e Som. Por agora, um curto resumo da História do Cinema Português no Porto.


(Continuação da Odisseia nas Imagens II)


Manoel de Oliveira, uma presença recorrente na Odisseia nas Imagens. Fonte: RTP-Arquivos

Ponto de partida da Odisseia nas Imagens


Na declaração de abertura contida no Relatório de Avaliação Final elaborado pelo responsável da Odisseia nas Imagens, afirma-se:


“O ponto de partida para a Programação de Cinema Audiovisual e Multimédia da Sociedade Porto 2001 foi, no âmbito do quadro conceptual definido para o evento Capital Europeia da Cultura, a prestação de um serviço público a partir do qual pudesse equacionar-se a projecção da visibilidade da cidade e da região em função de uma área estratégica, ou negligenciada pelos vários poderes ou encarada numa perspectiva meramente instrumental e à margem do que são hoje os requisitos a partir dos quais se pensam as políticas do audiovisual. Pretendeu-se, pois, lançar as bases de um debate no sentido de indagar qual o papel do Porto no panorama do audiovisual português promovendo, simultaneamente, as bases de uma política descentralizada nesse domínio, bem como as possibilidades de integração de uma produção local na esfera do mercado global. Nessa medida, toda a Programação foi construída em torno de um evento de grande potencial de inovação, pluridisciplinar, de carácter estruturante e de longa duração denominado Odisseia nas Imagens [1]”. 


Porém, até chegar ao conceito da Odisseia nas Imagens foi necessário percorrer um longo caminho de identificação prévia do sector e dos seus protagonistas, em particular da RTP, bem como recuperar a tradição do Porto na História do Cinema Português, aliás, nascido na cidade pela mão de Aurélio da Paz dos Reis. Importava, por isso, reconhecer um conjunto de episódios suficientemente relevantes para serem invocados como factores de legitimação das propostas que viessem a ser apresentadas [2]. Nesse sentido, deviam ser tidos em conta o passado remoto e recente, o presente, os principais criadores, as universidades, os festivais de cinema da área metropolitana do Porto e o serviço público de televisão, neste caso por forma a escrutinar e desafiar o seu papel regulador no quadro de uma paisagem audiovisual prospectivamente descentralizada. 


Porto, cidade de imagens. Foto da inauguração da Livraria Lello, em 3 de janeiro de 1906, da autoria de Paz dos Reis. Fonte: Observador

O Porto na História do Cinema Português


A História do Cinema Português passa pelo Porto, mas, salvo um ou outro episódio, a cidade foi sempre periférica em relação à produção global do País. A par do pioneirismo de Paz dos Reis e das experiências da Invicta Film e da Caldevilla Film, já destacados em capítulos anteriores, cumpre chamar a atenção para o papel desempenhado por algumas revistas que surgiram no período áureo correspondente ao ciclo do Porto, para a tradição cineclubista que ganhou peso a partir do final dos anos 50 e que viria a estar ligada à luta política de resistência à ditadura e para algumas figuras cujo expoente é Manoel de Oliveira. Numa fase posterior à Revolução de Abril vieram os festivais de cinema.


Durante algum tempo as revistas especializadas tiveram expressão relevante. O Porto Cinematográfico, fundado em 1919 por Alberto Armando só viria a extinguir-se em 1925. Em 1923, acompanhando de perto a actividade da Invicta Film, Roberto Lino fundou a Invicta Cine, a qual foi publicada regularmente até 1936. Qualquer das revistas investiu no apoio ao cinema português, sem perder de vista aquilo que ia pelo mundo e dedicando parte do seu espaço à crítica. A Invicta Cine envolveu-se na polémica que envolveu o advento do som assumindo um papel pioneiro em sua defesa. Foi devido ao entusiasmo de alguns dos seus responsáveis “que se criou, no Porto, a primeira associação cinematográfica, pioneira do futuro movimento cineclubista [3]”. Essa Associação dos Amigos do Cinema, fundada em 1924, apesar de relativamente limitada na acção que desenvolveu, propunha-se “defender o cinema nacional, moralizar o cinema por meio da palavra escrita ou falada, fomentar o entusiasmo pela Arte do Silêncio e produzir películas logo que a situação financeira o permitisse [4]”.


O movimento cineclubista teve o seu momento mais alto nos anos 60. Desde o final da Invicta Film até essa altura a produção deixara praticamente de existir, salvo algumas raras excepções. As mais notáveis são dois filmes de Oliveira Aniki-Bóbó (1941) – uma obra forte a ponto de ainda hoje ser parte do imaginário do Porto – e O Pintor e a Cidade (1956), uma curta-metragem de cunho documental que tem como ponto de partida as aguarelas de um artista muito conhecido, António Cruz, porventura o maior aguarelista português. Em qualquer dos filmes, muito diferentes entre si, o Porto tem uma presença filtrada através do olhar do cineasta que descobre nele características peculiares como, aliás, acontecera já com Douro, Faina Fluvial. Episodicamente, um ou outro realizador rodou cenas de filmes no Porto, mas sem que isso correspondesse a algum interesse particular de descoberta. Manuel Guimarães, porém, com a Costureirinha da Sé (1958), inteiramente rodado na cidade, embora seguindo a fórmula então em voga das operetas que serviam para fazer aparecer na tela os cançonetistas mais populares, conseguiu fazer passar um retrato sociológico da população da sua zona histórica. Já O Passarinho da Ribeira (1959) de Augusto Fraga nada trouxe de relevante.


Aniki-Bóbó (1942) de Manoel de Oliveira

Nos anos 60 o Cineclube do Porto, através da sua Secção de Cinema Experimental, começou também a produzir alguns filmes. Lopes Fernandes filmou o Auto de Floripes (1960), um ritual popular da aldeia das Neves, em Viana do Castelo, mas, de um modo geral, essa produção não deu lugar a outras obras relevantes embora se discuta o seu valor enquanto documento. Em contrapartida, Manoel de Oliveira fez a partir do Porto mais três curtas-metragens que são outras tantas obras-primas do cinema português: O Acto da Primavera (1962), eventualmente inspirado no filme de Lopes Fernandes, que foi seu assistente neste filme, A Caça (1963) e as As Pinturas do Meu Irmão Júlio (1965). Nesta altura, o Cineclube do Porto era já o mais importante do País, sendo Henrique Alves Costa a sua figura mais destacada. Foi ele o artífice, em 1967, da Semana do Novo Cinema Português, evento que contou com a presença da maioria dos jovens realizadores e cujas conclusões viriam a ter uma importância determinante no futuro da cinematografia nacional.


Com o passar dos anos, após a Revolução de Abril de 1974, a actividade do Cineclube do Porto, minada por disputas partidárias e incapaz de se adaptar a um cinema que ia colocando novos desafios, foi esmorecendo. Houve ainda uma cisão que deu origem ao Cineclube do Norte, mas ao tempo da Capital Europeia da Cultura, ambas as instituições tinham uma presença meramente residual no contexto da vida cultural portuense.   


Se durante o período do cinema mudo a produção fora relevante a verdade é que “em 70 anos de cinema sonoro, apenas 14 longas-metragens (o que dá um filme por cada 5 anos!) escolheram a cidade como tema e cenário da intriga. Dessas, três são da autoria de Saguenail, um realizador de origem francesa que vive e fez a sua obra no Porto, e que é, por sinal, um dos mais interessantes, originais e desconhecidos autores que alimentaram o imaginário cinematográfico português [5]”.


Feitas as contas, pensando em filmes indissociáveis do imaginário da cidade, sobram meia dúzia de títulos e de entre todos destacam-se três filmes de Oliveira Douro, Faina Fluvial, Aniki-Bóbó e O Pintor e a Cidade. Qualquer deles faz parte do património monumental do Porto, mas o primeiro é algo de inseparável da sua memória e do seu imaginário [6]. Depois da pateada na estreia em 1931, apesar dos elogios da crítica estrangeira e de alguns dos mais destacados intelectuais portugueses, como José Régio [7] e Adolfo Casais Monteiro, Douro, Faina Fluvial só viria a ser reposto em sala em 1934, no Teatro de São João do Porto, como complemento do filme Gado Bravo, de António Lopes Ribeiro, onde foi, então, espontânea e prolongadamente aplaudido.  


Mais tarde, Oliveira esteve de passagem pelo Porto, nomeadamente em Inquietude (1988), Paulo Rocha filmou O Rio do Ouro (1998) e António Pedro Vasconcelos em Jaime (1999) voltou a colocar a cidade no centro das atenções. Um ou outro cineasta estrangeiro também passou pelo Porto, mas nenhum deles realmente interessado na sua identidade. John Malkovitch, por exemplo, encontrou nele ambientes urbanos semelhantes aos da América do Sul e em The Dancer Upstairs (2000) algumas ruas da cidade passaram a fazer parte do Peru e do Equador.  


A Revolução de Abril tinha, entretanto, aberto as portas a outras iniciativas, entre as quais há a destacar o aparecimento dos festivais de cinema, os quais, sobretudo no caso do cinema de animação, viriam a ter impacto numa produção local cujo desenvolvimento foi acompanhado da obtenção dezenas de prémios conquistados nos principais festivais de todo o mundo.



(Continua)

Notas remissivas

[1] . Relatório de Avaliação Final do Departamento de Cinema Audiovisual e Multimédia da Sociedade Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura, sem páginas numeradas. [2] . A este propósito ver o Capítulo II – pp.117-125. - Nota do Autor [3] . Costa, Alves – Breve história do cinema português – 1896-1962, Biblioteca Breve, Instituto de Cultura Portuguesa, Ministério da Educação e da Investigação Científica, Lisboa, 1978. [4] . ibid. [5] . Vasconcelos, António Pedro in Andrade, Sérgio C. – O Porto na História do Cinema, Porto Editora/Porto 2001, 2002, p. 7. [6] .  Vale a pena retomar em pormenor o que foi a estreia do filme no Salão Foz, em Lisboa, no decorrer do Congresso Internacional da Crítica: “Esta ante-estreia foi um escândalo. Perante a surpresa dos congressistas estrangeiros, os espectadores portugueses, na sua maioria, vaiaram ruidosamente o filme. O tema, o ritmo, a montagem rápida de algumas sequências, irritaram o público (em grande parte selecto e burro). A projecção foi sublinhada com constantes assobios e terminou com uma estrondosa pateada. Ao intervalo e, ainda, já terminado o espectáculo, muitos espectadores e alguns dos críticos (!?) portugueses ferviam de indignação: ‘um sem jeito aquelas imagens vertiginosas! uma vergonha mostrar a estrangeiros aquelas mulheres enfarruscadas, com carretos de carvão à cabeça, de pé desclaço... aquelas nojentas vielas do Porto... aqueles prédios leprosos do Barrêdo’ (Parece que ninguém se indignou por existirem aquelas desumanas condições de trabalho dos carregadores do porto... parece que ninguém se indignou por se viver ainda em péssimas condições de habitação e salubridade no velho, degradado e populoso bairro do Barrêdo...)” - in Costa, Alves, op. citada, p. [7] . De Douro, Faina Fluvial disse Régio: “A moderna poesia do ferro e do aço, o encanto da natureza através dos seus vários aspectos e ‘nuances’, a tonalidade das horas, a alegria e a miséria do homem sócio do animal na luta pelo pão de cada dia – tudo, ao longo de um dia de actividade na margem do Douro, nos é dado com verdadeira grandeza. Precioso como documentário o ‘Douro’ excede assim, e em muito o valor dum mero documentário”. – Andrade, Sérgio C. – O Porto na História do Cinema, Porto Editora/ Porto 2001, 2002, p. 46.




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