Neste texto, prossegue a elucidação quanto ao ponto de partida da Odisseia nas Imagens. Depois de abordar o legado do cinema do Porto como elemento fundador da programação, seguem-se considerações em torno do papel dos festivais de cinema, das escolas de Ensino Superior ligadas ao ensino da Imagem e do Audiovisual e do Centro de Produção da RTP no Monte da Virgem, então desafiado a participar na aventura da Capital Europeia da Cultura, designadamente, através da possibilidade de criação de um media park. A reflexão em torno destes enunciados constituiu a base da proposta apresentada à Sociedade Porto 2001 para efeito da concretização da programação de Cinema, Audiovisual e Multimédia, posteriormente designada por Odisseia nas Imagens.
(continuação Porto 2001 - Odisseia nas Imagens III)
Odisseia nas Imagens: Os Festivais de Cinema enquanto elementos de regulação
A Revolução de Abril tinha aberto as portas a outras iniciativas, entre as quais há a destacar o aparecimento dos festivais de cinema, os quais, sobretudo no caso do cinema de animação, viriam a ter impacto numa produção local cujo desenvolvimento foi acompanhado da obtenção dezenas de prémios conquistados nos principais festivais de todo o mundo.
Em Espinho, situado na área metropolitana do Porto, reside um dos melhores festivais europeus de cinema de animação, o Cinanima o qual não só permite uma informação actualizada de tudo quanto de melhor se faz, mas também serve de âncora e estímulo à produção nacional:
“... quando há vinte e cinco anos se lançou o Festival, muito mais do que o exercício lúdico que também foi essa iniciativa havia nos promotores uma enraizada ideia de contemporaneidade atenta a formas de dizer até então se não proscritas pelo menos silenciadas ou limitadas a uma circulação restrita e marginal. A Banda Desenhada ou o Cinema de Animação, por exemplo, ocupavam um território relativamente desqualificado ou, na melhor das hipóteses, confinado a um público infanto-juvenil considerado o destinatário natural de bens simbólicos supostamente mais acessíveis do ponto de vista da significação e elaboração artísticas. Mesmo à esquerda, entendida enquanto espaço de progresso e liberdade por oposição ao conservadorismo da direita, durante muito tempo prevaleceram concepções autorais radicadas em modelos do século XIX, cujas consequências resultaram em conclusões apressadas e, como tal, inadequadas ao ritmo e à compreensão das dinâmicas criativas emergentes. Basta recordar a frequência com que a BD ou a Animação foram sumariamente remetidas para a chamada cultura de massas e, por essa via, imediatamente desqualificadas [1]“.
Foi, portanto, necessário o sobressalto democrático de Abril, que foi também um agitador no plano da criação artística, para que a situação evoluísse numa outra direcção. Pioneiros como Vasco Granja e António Gaio, entre outros, entregaram-se à tarefa de fazer crescer uma arte que há muito os seduzia e que, nessa altura, muito por mérito deles próprios, se encontrava numa fase explosiva de divulgação, afirmação e legitimação. Desse impulso resultaram os primeiros workshops de cinema de animação, nos quais participaram os maiores especialistas do mundo e os quais contribuíram para formar a primeira geração de animadores cujo reconhecimento internacional não tardaria, casos de Abi Feijó, Pedro Serrazina e Jorge Neves e, um pouco mais tarde, Regina Pessoa. O Cinanima foi, portanto, o grande responsável pelo salto em frente dado pelo cinema português de animação, atestado, como se disse, pela atribuição de numerosas distinções um pouco por todo o mundo.
As curtas metragens de ficção, por seu turno, constituindo uma parte significativa dos conteúdos simbólicos produzidos pelo audiovisual europeu, têm no jovem cinema português um número significativo de representantes. Atraindo um número sempre crescente de cineastas e desenvolvendo um discurso próprio dão a conhecer os novos criadores que, em Portugal, têm no Festival Internacional de Vila do Conde [2] um fórum especializado. À semelhança do Cinanima também neste caso o festival desempenhava um papel de regulação quer no plano simbólico quer no impulso à produção, na medida em que através da sua Agência da Curta Metragem lhe cabia a responsabilidade da distribuição da produção portuguesa no estrangeiro.
O Fantasporto – Festival de Cinema do Porto – provavelmente o mais popular do País, sendo embora de certo modo atípico na medida em que não tem impacto estruturante comparável ao dos outros festivais mencionados, tem prestígio internacional e é uma bandeira da cidade. Na ressaca da Revolução de Abril, o público começou a deixar as salas, as actividades cineclubistas entraram em declínio e a televisão introduziu uma mudança de hábitos disponibilizando conteúdos de massas até então inéditos, como as telenovelas brasileiras. O Fantasporto contribuiu, de algum modo, para contrariar essa tendência. Logo na sua primeira edição, em 1981 [3], apresentou uma notável retrospectiva de clássicos aparentados com o que então timidamente se designava por cinema fantástico [4].
“Apesar do fantástico aparecer claramente associado à imaginação e ao maravilhoso, numa linha que remonta a Méliès, e num contexto que nenhum cinéfilo desprezaria, a verdade é que o Fantasporto logo apareceu associado nas páginas dos jornais à ideia de sangue, vampirismo, terror e outras enormidades. Na verdade, o que havia era uma programação a pensar na captação de públicos, ora articulando a exibição de filmes recentes aguardados com expectativa com obras de referência da História do Cinema, ora dando a conhecer cinematografias menos conhecidas ou propondo uma releitura de filmes relativamente marginais, sem deixar de convocar os cineastas portugueses [5]”.
Portanto, numa altura em que se acentuavam sinais de depressão, o Fantasporto veio marcar nova viragem na História do Cinema do Porto e da sua área metropolitana ao ousar novos caminhos que permitiram a captação de muitos jovens, cúmplices da aventura empreendida. O Fantasporto juntava-se, assim, ao percurso iniciado alguns anos antes pelo Cinanima – a partir do qual, como se disse, viriam a lançar-se as bases da mais importante produção cinematográfica do norte do País, o cinema de animação, em torno de produtoras como a Filmógrafo e a Alfândega Filmes – e, posteriormente, prosseguido pelo Festival Internacional de Curtas Metragens de Vila do Conde.
A partir das considerações em torno da presença do Porto na História do Cinema Porttuguês, da sua memória e do seu presente, surgiu uma primeira sistematização de questões a ter em conta para efeito da definição das linhas gerais da Programação. Essas questões foram as seguintes:
- Qual o grau de identificação da realidade existente com a memória e tradição da cidade em matéria de produção cinematográfica?
- Qual o papel dos cineclubes e o seu grau de adequação às exigências da modernidade no cinema e ao fomento da produção nacional?
- Qual a importância relativa dos festivais existentes na área metropolitana do Porto no quadro das tendências, consensos e políticas europeias para o cinema e audiovisual que apontam para o incremento de uma produção diferenciada e competitiva em relação à grande produção americana?
(Continuar a ler após estas notas remissivas)
Notas remissivas
[1] . Anexo I, p. 180.
[2] . Ver Anexo I – 2.0, 30.0.
[3] . Anexo I – pp. 40-44.
[4] .“Alguns títulos: “O Vento”, de Sjostrom; “O Testamento de Orfeu” e “A Bela e o Monstro”, de Cocteau; “A Atlãntida”, de Jacques Feyder; “O Gabinete do dr. Caligari”, de Robert Wiene; “Metropolis”, “A Mulher na Lua” e “Dr. Mabuse”de Fritz Lang; “Nosferatu”, de Murnau; “O Feiticeiro de Oz”, de Victor Flemming. Da selecção faziam ainda parte cineastas como Hitchcock, Vadim, Malle, Fellini, Tarkovsky, Bergman e Polanski, aos quais se juntavam Werner Herzog, De Palma, Peter Weir, Kaufman e Nicholas Roeg. bem como alguns dos filmes de culto da Hammer Films, entre os quais “Dracula”. – Nota do Autor.
[5] . Anexo I – p. 42.
Odisseia nas Imagens: O Audiovisual e o Ensino Superior
A par dos festivais de cinema, cuja consolidação era um dado adquirido, outros factores contribuíam para introduzir alterações na paisagem audiovisual da cidade, entre os quais as universidades e o ensino superior politécnico com os seus cursos de Imagem e Som, Cinema e Vídeo e, também, de Jornalismo e Comunicação Social. A partir de meados da década de 80, mas, sobretudo nos anos 90, o meio universitário foi sensível ao mundo das Ciências da Informação e da Comunicação, tendo igualmente manifestado um interesse renovado pelas áreas criativas. Surgiram cursos de Jornalismo na Escola Superior de Jornalismo do Porto e na Universidade Fernando Pessoa, cursos de Cinema e Vídeo na Escola Superior Artística do Porto e um curso de Imagem e Som na Universidade Católica Portuguesa. Na Universidade do Minho, com sede em Braga, havia também uma especialização em Jornalismo no âmbito de um curso de Ciências da Informação e Comunicação. E no Instituto Politécnico do Porto surgira o Curso de Tecnologia da Comunicação Audiovisual do qual saía um número apreciável de técnicos para o sector audiovisual.
Por outro lado, uma nova geração de protagonistas formados nestas escolas foi ocupando lugares nos departamentos de Informação e de Programação dos operadores televisivos, ao mesmo tempo que outros iam dando corpo a uma indústria embrionária de conteúdos, nalguns casos com elevado potencial de internacionalização como o cinema de animação produzido pela Filmógrafo ou os seriados televisivos de animação em 3D da autoria da Miragem, cujo Major Alvega viria a revelar-se um êxito de vendas no exterior, pelo menos tendo em conta a habitual omissão de Portugal nos mercados mais representativos.
Em torno destas matérias e da sua articulação com os pontos anteriores, surgiu um segundo conjunto de questões:
- Onde e como se criam e desenvolvem os saberes?
- Qual a relevância da produção escolar?
- Que se produz no Porto em matéria de cinema, audiovisual e multimédia, quem produz, como se produz e em função de que capacidades instaladas e saberes existentes?
- Que potencial de internacionalização tem essa produção?
- Em função das capacidades instaladas e dos saberes existentes o que valeria a pena produzir para o mercado global e com que protagonistas?
- Faria sentido a aposta em nichos de mercado?
Odisseia nas Imagens: O Serviço Público de Televisão numa perspectiva descentralizada
Entendeu-se que a resposta às questões enunciadas deveria ser equacionada em função da possibilidade de uma proposta de redefinição estratégica do papel do serviço público de televisão, cuja componente regional denotava a par de uma evidente capacidade de produção instalada um manifesto sub-aproveitamento dessa mesma capacidade. No texto de base [1] elaborado para servir de ponto de partida à proposta de integração da RTP/Porto nos projectos do Porto 2001, numa altura em que estava ainda no poder o governo do Partido Socialista que sucedera aos governos de centro-direita de Cavaco Silva, podia ler-se:
“Qualquer avaliação do Centro de Produção do Porto da RTP é indissociável das medidas levadas a cabo nos últimos anos do cavaquismo. Dir-se-á que foram medidas avulsas, implementadas conjunturalmente, sem uma estratégia previamente definida, enfim, sem uma ideia relativa aos objectivos a atingir, embora orientadas por um princípio geral de contornos indeterminados ao qual poder-se-ia chamar crescimento. A situação actual parece ser a de uma gestão precária da herança recebida [2]”.
Acrescentava-se de seguida:
“Aparentemente, as decisões tomadas ao longo dos tempos foram resultantes de actos voluntaristas, num quadro reivindicativo bipolar, ou seja, às tendências tradicionalmente centralizadoras de Lisboa foi respondendo o Porto, e mais por intervenção da classe política, com desígnios de uma autonomia crescente do seu Centro de Produção. Ninguém terá procurado responder com rigor a uma pergunta tão simples quanto esta: autonomia para fazer o quê [3]”?
Nunca tendo sido dada resposta adequada a esta pergunta, o crescimento do Centro de Produção do Porto da RTP teve um efeito paradoxal: “uma notável capacidade instalada de produzir televisão ora sub-aproveitada ora simplesmente desactivada [4]”. Face a este diagnóstico, e tendo em conta a introdução das tecnologias do cabo e do digital, bem como a abertura da televisão aos operadores privados, resultava evidente a caducidade de modelos e processos longamente interiorizados pela RTP. Assumia-se que por razões políticas e de cidadania a questão do serviço público adquiria novos contornos e maior relevância, nomeadamente em termos do reconhecimento de uma identidade a preservar e de uma cultura a defender “na base de uma diversidade que valoriza o regional, exige a excelência do discurso e prossegue a via da internacionalização [5]”.
Como corolário do exposto, afirmava-se no documento:
“É neste quadro que deve encontrar-se uma solução para o Centro de Produção do Porto, de tal modo que o seu estatuto de dependência crónica seja revisto e transformado num estatuto de parceria e complementaridade no âmbito da RTP. Essa revisão não deve, no entanto, ser feita a partir de um registo de cedências ou reivindicações, antes deve ser encarado como uma necessidade do serviço público no seu conjunto, por forma a exponenciar as mais-valias da sua componente regional [6]”.
Resultava daqui um terceiro conjunto de questões:
- Qual o papel a desempenhar pelo Centro de Produção do Porto da RTP?
- Qual a capacidade e vontade de intervenção do Centro de Produção do Porto enquanto elemento regulador de uma produção audiovisual de âmbito local e regional?
- Quais as possibilidades de internacionalização do Centro de Produção do Porto da RTP, nomeadamente em termos de co-produções, num quadro de televisão segmentada e de conquista de nichos no mercado global?
- Qual a abertura da RTP para aceitar debater políticas de intervenção descentralizadas?
Naturalmente, a abordagem destas matérias revestia-se de aspectos delicados. Sendo certo que o documento contemplava questões cuja relevância era indiscutível para alguns sectores da RTP, sobretudo aqueles mais ligados à sua componente regional, nem por isso deixava de se correr o risco de outros verem nas considerações avançadas uma tentativa de intromissão na vida interna da empresa. Para mais, constando da proposta a criação de um media park no qual a RTP Porto poderia assumir um papel central. Fortemente centralizada e quase sempre encarada numa perspectiva instrumental pelo poder político, a RTP tinha uma longa tradição de resistência a reflectir sobre si própria. De qualquer modo, apesar do risco de eventuais más interpretações, lançar Pontes para o Futuro no domínio do Cinema, Audiovisual e Multimédia não poderia deixar de interpelar o serviço público de televisão [7].
(Continua)
Notas remissivas
[1] . Anexo III – pp. 25-31.
[2] . Anexo III – p. 27.
[3] . ibid.
[4] . ibid.
[5] . ibid.
[6] . ibid.
[7] . Ver Anexo III – p. 33.
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