Ucrânia (Parte I): Nacionalismo e Identidade no Tempo dos Monstros, a batalha pela História
- Jorge Campos
- há 23 horas
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Após a invasão da Ucrânia pela Federação Russa numerosas publicações de autores portugueses e estrangeiros encheram os escaparates das livrarias. Como se esperava, a atividade editorial acompanhou a vaga de condicionamento simbólico necessária ao respaldo de uma opinião pública favorável à guerra apoiada pelos Estados Unidos e pela União Europeia. Agora, após anos de incontáveis tragédias, quando parecia aberta uma janela para a diplomacia, verifica-se que, afinal, o futuro é cada vez mais uma incógnita. Durante todo este tempo li centenas de páginas sobre a guerra e consultado inúmeros documentos. Se dissipei algumas dúvidas, outras, dada a complexidade da situação, avolumaram-se. Sendo possível identificar o fundamento das narrativas, da Ucrânia e seus aliados, por um lado, e da Federação Russa, República Popular da China e Sul global, por outro, há uma nebulosa que parece toldar a razão. Chama-se nacionalismo. Quando isso acontece, havendo raízes profundas de ordem histórico-cultural, fica aberta a porta ao mito. E é inevitável uma intensa disputa ideológica.


Essa disputa é evidente nas publicações que consultei, a maioria com um ponto de vista favorável ao regime de Kiev, até porque o bloqueio imposto à informação do outro lado, desde logo, a proibição da RT, canal de notícias em inglês da Federação Russa, dificulta enormemente a tarefa. Ainda assim, o ciberespaço permite aceder a dados alternativos em suporte digital. Por isso, qualquer pessoa, observadas as cautelas indispensáveis de verificação de factos e fontes - tarefa complexa dado a vertigem de propaganda em circulação – pode avançar na busca do conhecimento. Aliás, pode avançar e recuar, posto que amiúde é necessário afinar premissas e conclusões.
Dito isto, devo acrescentar que não tenho como adquirido que os media tradicionais, em especial as televisões, sejam fiáveis. Pelo contrário, veiculam muita informação enviesada por exemplo, em programas ou edições especiais onde muito do que por lá passa tem origem, com forte probabilidade, em canais de serviços de inteligência. É dos livros. (Nota: sobre manipulação mediática e crise do jornalismo, ver aqui.)
O que se segue também é sobre livros, mas em torno da guerra russo-ucraniana. De autores pró-ucranianos e de ascendência ucraniana, são: A Guerra Russo-Ucraniana - O Regresso Da História (2023) de Serhii Plokhi; Ucrânia - O Que Toda A Gente Precisa De Saber (2020) de Serhy Yekelchyk; Passar das Marcas (2022) de Owen Matthews. O quarto livro, em contraponto é Este é o Tempo dos Monstros (2022) de António Avelãs Nunes. Farei breves recensões, não prescindindo de tecer alguns comentários, bem como de abordar matérias raramente tratadas nos media tradicionais. Como ponto de partida constato que a opinião dominante é estruturada em função de cinco eixos retóricos essenciais, a saber:
a) identificação de um agressor e de um agredido segundo o normativo da ordem internacional “tal como a conhecemos”; b) o mito da “ameaça russa” e a “luta do ocidente pela liberdade”; c) defesa do regime de Kiev e construção da persona do herói, Zelensky; d) demonização do Kremlin e construção da persona do vilão, Putin; e) exaltação da resistência ucraniana em nome do direito à autodeterminação e independência.
Estes cinco eixos estão declinados nas obras dos autores mencionados. Em diferentes modulações, são o pano de fundo do tema central deste texto cujo foco incide no problema da identidade e do nacionalismo ucranianos. É nesse campo que se trava uma batalha titânica pela História vista como determinante não só para o entendimento do conflito, mas também para delinear os caminhos de uma eventual solução futura a qual, a meu ver, terá de passar por uma reconfiguração das fronteiras.
1. A Batalha pela História
Considerações. Dando por adquirida a vulgata construída em torno da bondade da antiga república soviética face ao opressor russo, raramente os media do ocidente se dão ao trabalho de investir na busca das raízes profundas que determinam contexto. Fazendo prevalecer a tese do agressor e do agredido, impõem o juízo moral como pêndulo de avaliação. Isso é óbvio nas obras dos autores de ascendência ucraniana. Contudo, quanto à pertença dos territórios, as coisas são mais complexas e eles não o ignoram. Por isso, de diferentes maneiras, sentem como imperativo encontrar uma matriz identitária da nação, mesmo se, para isso, tiverem de criar novos critérios de ponderação científica. Ao cabo e ao resto, se é defensável admitir que a Ucrânia e a Rússia são parte de um mesmo tronco comum ancestral é, igualmente, legítimo reivindicar a existência de uma linhagem ucraniana diferenciada. Como facilmente se compreende é esta última que suporta o nacionalismo do regime de Kiev.
Os nacionalismos sempre suscitaram controvérsia. O ucraniano não foge à regra. Emergiu na sua forma mais radical desde a II Guerra Mundial após a independência, em 1991. Nessa altura, a Ucrânia passou a ser vista como uma espécie de terra prometida dos grupos de extrema-direita, tendo, inclusivamente, campos de treino militar neonazis na região ocidental junto à fronteira com a Polónia, na antiga região da Galícia. A imagem projetada para o exterior com a perseguição exacerbada dos russos étnicos e a suspensão do ensino da língua e da cultura russas, levou o governo de Kiev, a partir a partir dos desmandos de 2014, a tomar medidas para atenuar essa percepção. Pressionado pela União Europeia, igualmente preocupada com a corrupção generalizada, o regime fê-lo, no entanto, de modo inconsequente. Promoveu a guerra contra os separatistas do Donbass e fechou os olhos à repressão noutras regiões, designadamente ao massacre de Odessa de 2 de maio de 2014 que fez dezenas de mortos e centenas de feridos entre manifestantes pró russos.
Segundo os dirigentes ucranianos, a expressão da extrema-direita é, hoje, meramente residual. Sê-lo-á. Ou não. Em termos eleitorais a sua expressão é reduzida. Porém, a verdade é que a maioria dos radicais mais influentes transitou para novas formações políticas, vistas como aceitáveis no ocidente, que surgiram ao longo do agitado processo político subsequente à chamada Revolução Laranja de 2004. A título de exemplo, Andriy Parouby, ex-presidente da Rada, um dos fundadores, em 1991, do Partido Nacional Social, mais tarde, Partido Svoboda, foi eleito deputado, em 2007, pelo Partido Nossa Ucrânia de Victor Yuschenko, e, posteriormente, pela Frente Popular de Arseni Yatseniuk. O seu nome está ligado à coordenação das manifestações na Praça Maidan, em 2014, bem como ao massacre de Odessa. Enquanto Secretário da Comissão de Segurança e Defesa Nacional coordenou a guerra desencadeada contra os independentistas do Donbass. Era um partidário da NATO e da integração europeia.

Parouby não é um caso isolado. Após Maidan, Oleksandr Sych ficou com a pasta essencial dos Assuntos Económicos, Serhiy Kvit assumiu a Educação, Andriy Makhnyk foi nomeado ministro da Ecologia, Ihor Shvaiko ficou com a Agricultura e Oleh Makhnitsky tornou-se o Procurador Geral da Ucrânia. Têm em comum o facto de pertencerem todos ao partido Svoboda. Mas há numerosos outros casos documentados.
Conhecendo os antecedentes, saber se os radicais exercem ainda influência sobre o regime de Kiev foi a questão colocada por Paul Millar num artigo publicado em 11 de Outubro de 2024 no site do canal France 24, edição inglesa, intitulado: “Should Zelensky's government be afraid of far-right groups?”
Millar começa por fazer referência ao duro embate verbal entre o deputado Oleksandr Merezhko do partido Servos do Povo, o partido de Zelensky, e militares dispostos a lutar contra os russos até ao último homem, não admitindo sequer discutir a eventualidade de cedência de qualquer território. Após uma virulenta troca de insultos, Merezhko denunciou o recrudescimento das forças extremistas na Ucrânia o que, para ele, era uma situação perigosa. Os militares acusaram-no de cobardia. O assunto, apesar das cautelas, começou a ser discutido no espaço público no final do ano passado.
Lendo o artigo de Millal fica-se com a ideia de que se os partidos fascistas e neonazis falharam em transformar o nacionalismo mais agressivo em votos, melhor sorte tiveram as milícias armadas cujos representantes, agora integrados no exército regular, se movem com à vontade nos círculos do poder. Lesia Bidochko, historiadora, especialista em media e propaganda, leitora da Academia Kyiv-Mohyla, disse ao France 24, que a extrema-direita ganhou legitimidade após a participação em Maidan, bem como na guerra do Donbass:
“Faced with growing pro-Russian separatism, the government made the controversial decision to arm and utilise far-right militias as a key force in resisting separatist movements (...) This development not only fuelled domestic tensions but also played into Moscow’s propaganda, which sought to legitimise its intervention by painting Ukraine as being overrun by extremist elements.” (artigo completo publicado de Paul Millal, aqui).

Tal como os líderes políticos extremistas, também as milícias armadas sofrearam uma metamorfose quando integradas na Guarda Nacional. O Batalhão Azov, por exemplo, em 2014, tornou-se a 12ª Brigada de Forças Especiais. Oficialmente, deixou de ser uma organização de voluntários da extrema-direita e tornou-se numa unidade profissional de combate. Um dos seus principais comandantes, Denys Prokopenko, haveria de distinguir-se na defesa de Mariupol. Capturado pelo exército russo seria depois libertado numa troca de prisioneiros. Outro líder do Azov original e seu fundador, Andriy Biletsky foi designado comandante do 3º Corpo do Exército com o objetivo de nele concentrar as melhores práticas das suas milícias anteriores. É hoje um homem chave do regime de Kiev. Com passado neonazi, conhecido por ligações ao supremacismo branco, distinguiu-se de tal forma no campo militar que se tornou numa figura de culto. É agora um defensor da democracia, segundo o próprio. Esteve algum tempo na Verkhovna Rada, o Parlamento ucraniano, mas é a coordenar a frente de batalha que melhor se move. No The Times de 14 de agosto de 2025, Maxim Tucker escreve:
“Biletsky says he envisages a future in the military, but his reputation as an effective leader is making him an ever more powerful political force in wartime Ukraine. He was not afraid to criticise Zelensky’s recent attempt to grab control of Ukraine’s anti-corruption bodies. (...) His vision for the future, he says, involves a permanently militarised society, effectively becoming the army and the arsenal of a Europe that has proved alarmingly slow to build its own.” (artigo completo de Maxim Tucker, aqui).

Historicamente, se líderes como Roman Shukhvych (comandante do Exército Insurgente Ucraniano que combateu pelo III Reich e participou no massacre de polacos em Volínia) e Yaroslav Stetsko (o ideólogo que chegou a ser presidente da efémera República da Ucrânia proclamada no início da invasão nazi) continuam a ser figuras de referência, a verdade é que o destaque como principal protagonista da linhagem nacionalista vai para Stepan Bandera. O seu culto, outrora exibido em marchas silenciosa à luz de tochas de inequívoco pendor nazi-fascista, sempre no primeiro dia de janeiro, em Kiev, é agora mais reservado. Contudo, a sua memória continua presente em dezenas de espaços e monumentos distribuídos pelo território, sobretudo a oeste, na antiga Galícia e em regiões adjacentes, ou seja, naquela a que alguns chamam a “Ucrânia ucraniana”.
O monumento mais importante fica no centro de Lviv. Criação do escultor Mykola Posikirae e do arquitecto Mykhailo Fedyk, maioritariamente financiado pelo município, foi construído em 2003. A estátua de bronze de Bandera tem sete metros de altura e é enquadrada por um arco do triunfo com quatro colunas de 30 metros. A primeira representa a Rússia de Kiev, considerada o primeiro estado eslavo, no qual, entre os séculos IX e XIII houve diferentes arranjos políticos; a segunda representa o Hetemanato Cossaco que se lhe seguiu; a terceira é o símbolo da República Popular da Ucrânia; a quarta corresponde à moderna Ucrânia Independente.


Continua com Parte II: O “nacionalismo moderado” de Plokhy, Yekelchyk e Matthews
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