Ucrânia (Parte II): Nacionalismo e Identidade no Tempo dos Monstros, o “nacionalismo moderado”
- Jorge Campos
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2. O “nacionalismo moderado” de Plokhy, Yekelchyk e Matthews
São os pilares do nacionalismo identificados no monumento a Stepan Bandera de Lviv que servem de matriz aos historiadores ucranianos ou de ascendência ucraniana. Com diferentes e, por vezes, substanciais declinações, a maioria procura afastar-se do líder ultranacionalista, promovendo, em simultâneo, a ideia de um novo “nacionalismo moderado”. É o que fazem Plokhy, Yekelchyk e Matthews que, em maior ou menor grau, levam a cabo digressões, medidas em séculos, em busca da identidade da nação. Poderá haver, e há, ponderação diversa de episódios sinalizados, mas partilham os fundamentos de uma mesma matriz histórica legitimadora. A razão é simples. A questão da Ucrânia é existencial.



O Regresso da História. Historiador e diretor do Harvard Ukranian Research Institute, apresentado pelo Financial Times como “o mais importante historiador da Ucrânia”, Serhii Plokhy introduz em A Guerra Russo-Ucraniana - O Regresso Da História, publicado pela Editorial Presença, a diferenciação entre “nacionalismo moderado” e “nacionalismo radical”. Porém, ao longo das 330 páginas do livro escassas linhas se ocupam do nacionalismo “radical”. A par do reconhecimento do papel de organizações extremistas, Plokhy, não omitindo o passado de Stepan Bandera, apoiante do III Reich, cujo colaboracionismo sugere ter sido consequência de uma reação ao Holodomor, realça, em todo o caso, o papel do homem que, no final da guerra, chegou a estar detido num campo de concentração nazi.
Em contrapartida, investe a fundo na tese segundo a qual “A invasão russa destruiu os últimos resquícios da crença de que os Ucranianos e os Russos eram povos irmãos” (p.186), providenciando, nesse sentido, diversos comprovativos. Por exemplo, em Pereiaslav, as autoridades municipais removeram o monumento comemorativo da reunificação da Rússia e Ucrânia, o qual, reportando a 1654, aludia ao juramento de fidelidade prestado pelo atamã Bohdan Khmelnytsky ao Czar russo (p.187). Outro exemplo:
“O monumento da Mãe Pátria a defender a cidade contra a agressão nazi com a espada numa mão e o escudo na outra, erigido pelos soviéticos nos anos 1980 e conhecido como um símbolo de Kiev, permaneceu quase intacto, mas mudou de significado. É agora visto como um símbolo da resistência à invasão russa.” (p.187)



Em A Guerra Russo-Ucraniana - O Regresso Da História está o que se ouve e lê na generalidade dos meios de comunicação em Portugal e no resto da Europa. Tendo a chancela de um cientista social, reforça a crença de quem encara positivamente a narrativa dominante. Vejamos alguns exemplos. Celebra O Regresso do Ocidente (p.229), título de um extenso capítulo em que se debruça exclusivamente sobre a atualidade; em Os Pacificadores (p.244) destaca o papel de Emmanuel Macron, bem como de dirigentes como Johnson e Scholtz, no apoio a Zelensky; congratula-se, adiante, com a Frente Comum (p.247) dos países ocidentais e considera histórica a reunião da Nato de 29 de Junho de 2022, em Madrid, por ter reforçado, por um lado, a unidade transatlântica e, por outro, porque “o comunicado emitido pelo gabinete de imprensa da cimeira designava a Rússia como ‘a ameaça mais significativa e direta para a segurança dos aliados’, designação usada pela primeira vez desde o fim da Guerra Fria.” (p.248).
Escrito entre março de 2022 e fevereiro de 2023 no seguimento da contraofensiva do exército ucraniano que desalojou os russos de várias posições no terreno, o livro foi acrescentado de um Posfácio onde o autor escreve sobre a Nova Ordem Mundial. Corolário da crença na identidade da nação em armas contra o inimigo comum, condição em função da qual a vitória militar estaria assegurada, o Posfácio avança atribuindo à Ucrânia um papel charneira na geoestratégia do ocidente, sob liderança americana. Dá igualmente como adquirido o enfraquecimento da Federação Russa, destinada a uma posição de vassalagem face à China. Mas, Plokhy vai mais longe. Escreve:
“Há indicações claras de que a nação ucraniana emergirá desta guerra mais unida e segura da sua identidade do que em qualquer outro momento da sua história moderna. Além disso, a resistência bem-sucedida da Ucrânia à agressão russa está destinada a promover o próprio projeto de construção nacional da Rússia.” (p.271)

Sendo uma celebridade da intelligentsia ucraniana, autor de best-sellers como Chernobyl (2018) e Átomos e Cinzas (2022), Plokhy é sempre muito solicitado. Numa entrevista em inglês concedida à maior publicação on line da Ucrânia, o Hrohromadske, de 4 de junho de 2024, face à hipótese da cedência de territórios à Rússia, afirmou: “Border shifts are normal. The main thing is sovereignty and independence, and the ability to maintain them. The Poles today are somehow coping well without Lviv.” É uma diferença assinalável face ao tom geral do livro.
O que toda a gente precisa de saber. Se o livro de Plokhy é interessante porque construído em torno do O Regresso Da História, o de Serhy Yekelchyk, apesar de anterior, é essencial para o entendimento desse ponto de vista. O Regresso Da História, aliás, é tributário de Ucrânia - O Que Toda A Gente Precisa De Saber de Yekelchyk. O próprio Plokhy considera o trabalho do colega como o melhor de entre todos para efeito de introdução ao conflito. Timothy Snyder, académico americano e opositor de Putin, vai mais longe. Autor do sempre citado O Caminho Para O Fim Da Liberdade (2019)) diz que Ucrânia - O Que Toda A Gente Precisa De Saber deveria ser adotado como livro de cabeceira, andar sempre no bolso do casaco e se, porventura, alguém decidisse ler apenas um livro sobre o conflito, então, esse livro só poderia ser o de Yekelchyk. Está lá tudo.
Trata-se, com efeito, de um texto esclarecedor porque responde às questões em função das linhas gerais do que possa ser um eventual contraditório. Recuperando o revisionismo histórico assente nos pilares nacionalistas, introduzindo uma variante bastante criativa sobre o papel da “cultura de massas”, da qual adiante se falará, o livro tem como horizonte temporal o primeiro ano da presidência de Zelensky, em 2020, portanto, anterior à invasão russa. Talvez por isso, dedica particular atenção à guerra lançada contra os separatistas do Donbass a partir de 2014. Os títulos dos sete capítulos permitem identificar o foco do autor. Vejamos: 1. Porquê a Ucrânia? 2. A Terra e o Povo; 3. A construção da moderna Ucrânia; 4. Ucrânia depois do comunismo; 5. A Revolução Laranja e a EuroMaidan; 6. A anexação russa da Crimeia e a guerra no Donbass; 7. A guerra na Ucrânia como questão internacional.
Daqui, facilmente se poderá inferir a presença de uma estrutura baseada na construção de uma ideia de nação. Cada um dos capítulos responde a perguntas, 83 no conjunto, às quais o autor responde de forma precisa e sistemática. No primeiro, desenha uma tela de fundo da atualidade. As perguntas nele contidas são as seguintes: Porque tornou a Ucrânia um assunto-chave na luta política americana? Que é a Praça Maidan e porque se tornou notícia de abertura em todo o mundo? Como e porque motivo a Rússia anexou a Crimeia? Porque se desencadeou um conflito no Leste da Ucrânia na primavera de 2014? Porque causou a crise ucraniana tensões entre a Rússia e o Ocidente?

Perguntas, na verdade, que qualquer pessoa faria, sendo essa uma das razões da eficácia retórica do livro. Uma vez respondidas, porém, resulta evidente a presença de um ponto de vista analítico com um juízo moral subjacente. Segue-se, parafraseando Plokhy, o “regresso à História”. O método, legítimo, consiste em estabelecer as premissas e retirar as conclusões. As primeiras resultam da particular interpretação de Yekelchyk a propósito da complexa rede política, geoestratégica e étnico-linguística, cujas raízes tanto mergulham no tempo quando são aplicáveis a episódios mais recentes, alguns dos quais envoltos em controvérsia. Entre eles, o massacre de Odessa. É visto pelo autor como um confronto entre manifestantes pró-russos e pró-Maidan que “terminou num banho de sangue quando uma coluna conjunta de adeptos de futebol e de ativistas da EuroMaidan entraram em confronto com uma parada de forças pró-russas no centro da cidade.” (p. 207)
Acrescenta o autor:
“Depois das primeiras vítimas, a luta moveu-se para a praça onde os ativistas tinham assentado campo. Ali, muitos ativistas pró-russos refugiaram-se num edifício sindical abandonado e dezenas morreram, aparentemente, devido à inalação de fumo quando o edifício pegou fogo, em circunstâncias ainda por esclarecer. Nesse dia houve 48 mortos na cidade, todos, exceto seis, pró-russos, e centenas de pessoas foram feridas.” (p. 207)
A versão de Yekelchyk, não mais do que uma breve passagem do livro, diverge da que levou as autoridades europeias a pedirem explicações a Kiev, exigindo o apuramento de responsabilidades, bem como, mais tarde, já em março de 2016, o Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU (OHCHR) a elaborar um relatório sobre os sucessivos adiamentos e entorses da justiça ucraniana. Seriam ainda elaborados outros dois relatórios, cujas consequências foram nulas. A dada altura, o massacre de Odessa passou a ser considerado quer em Kiev quer no ocidente como “propaganda russa”, apesar das evidências. Por exemplo, sabe-se que quem incendiou a Casa dos Sindicatos foi Demyan Ganul, comandante de milícias de rua constituídas para perseguir a população pró-russa. Conhecem-se, também, pessoas que participaram na carnificina e, na ocasião, exibiram fotos de congratulação nas redes sociais. Uma delas é Ievgeniia Kraizman, ativista do grupo Femen, alegadamente feminista e admiradora de Bandera.


As conclusões extraídas por Yekelchyk em função das suas premissas são, com frequência, bastante ousadas. É o que sucede quanto à questão étnico-linguística, decisiva para compaginar de modo coerente o que se entende por “ucranianos”. Tendo a Ucrânia acedido à independência apenas em 1991, a noção de “ucranianos” ou “nação ucraniana”, segundo Yekelchyk, “é ainda entendida como referindo-se a ucranianos étnicos.” Com efeito, a Constituição do País proclama como fonte da sua soberania “o povo ucraniano – cidadãos da Ucrânia de todas as nacionalidades”, distinguindo, no entanto, “entre este conceito cívico de nação e nação ucraniana étnica.” Nas últimas décadas, contudo, escreve o autor:
“(...) os falantes de ucraniano aceitaram gradualmente um entendimento ocidental de ‘Ucranianos’ como tratando-se de todos os cidadãos da Ucrânia. Uma tal mudança linguística reflete o moroso desenvolvimento de um patriotismo cívico baseado na aliança com o Estado em vez de com a nação étnica.” (p. 46).
Para se entender a questão, a qual, na verdade, parece algo nebulosa, Yekelchyk defende ser necessário compreender a natureza da nação étnica ucraniana que “também vindo a mudar”. Vejamos como:
“Os nacionalistas acreditam em nações étnicas, orgânicas, primordiais, definidas pelo sangue; mas os estudiosos modernos argumentam o contrário. Demonstram que as nações modernas emergiram quando a educação e os media ajudaram as massas a ‘imaginarem-se” a si mesmas como parte da nação. A cultura folclórica do campesinato serviu como fundação das modernas nações na Europa do Leste, mas foi necessário o esforço de intelectuais patriotas para definir as nações étnicas dentro dos impérios, que eram como mantas de retalhos, desenhando a partir de elementos folclóricos uma cultura moderna nobre que servisse de alicerce para a identidade nacional contemporânea.” (p. 47)
Dada a complexidade etno-linguística da Ucrânia, e para quem busca as raízes profundas da identidade, entregar a tarefa a historiadores patriotas fazer fé na cultura de massas, não será passar um pouco das marcas?


Continua com Ucrânia (Parte III): Nacionalismo e Identidade no Tempo dos Monstros, passar das marcas




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