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   viagem pelas imagens e palavras do      quotidiano

NDR

  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 11 de dez. de 2020
  • 3 min de leitura

Atualizado: 22 de out. de 2023


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The Spirit of 45 (2013) de Ken Loach

Quando The Spirit of 45 (2013) de Ken Loach chegou às salas inglesas as reacções foram contraditórias. Por vezes, ferozes. Uns viram no filme um apelo à resistência contra a destruição do estado social e, particularmente, do Serviço Nacional de Saúde. É a leitura mais óbvia e razoável. Outros disseram que o documentário é um retrato fantasioso do pós-guerra, escondendo verdades inconvenientes e fazendo uma leitura oblíqua das eleições que ditaram a derrota de Churchill e colocaram no poder o trabalhista Atlee. Finalmente, nos media sistémicos, não faltou quem acusasse o cineasta de não perceber os sinais do tempo, ou seja, a bondade das políticas neoliberais.


No início dos anos 60, Ken Loach começou a trabalhar para a BBC onde deu corpo a alguns do melhores filmes alguma vez feitos para televisão, designadamente o fabuloso Cathy Come Home, cujo impacto obrigou o governo britânico a rever a legislação sobre os sem abrigo. Durante os anos de Margaret Thatcher foi praticamente banido da televisão pública. Diversos documentários seus, entre os quais os que realizou a propósito da épica greve dos mineiros de 1984, foram simplesmente recusados pela BBC. Nesse período, travou uma luta sem quartel com a Dama de Ferro. A sua sua carreira cinematográfica foi praticamente asfixiada.


Mas, a partir do início da década de 90 do século passado, os filmes regressaram, os prémios multiplicaram-se e Ken Loach foi reconhecido como um dos grandes cineastas do nosso tempo. No conjunto da sua obra prevalece um olhar sem concessões sobre as mais controversas questões políticas e sociais, uma atenção permanente à situação dos mais pobres e marginalizados do sistema, um cuidado especial com a classe operária, da qual é ele próprio oriundo. Entre os seus filmes mais conhecidos estão, Kes, Land and Freedom, Sweet Sixteen, My name is Joe, Raining Stones, Riff-Raff e The Wind That Shakes the Barley. Todos eles de um rigor formal e de uma abordagem estética exemplares. Todos eles incómodos porque lancinantes. Grandes filmes.


Em Spirit of 45 Ken Loach recupera os sacrifícios feitos durante a guerra e fundamenta as expectativas de um mundo melhor com direito à saúde, educação e habitação, em função de uma visão sobre o desenvolvimento e o progresso indissociável da construção do estado social. Loach, dispondo de excepcional acervo de imagens de arquivo, muitas das quais com origem em filmes do movimento documentarista britânico, mostra o que foi a esperança criada no pós-guerra, nesse ano de todos os prodígios que foi 1945. Conseguiu também reunir um notável conjunto de testemunhos de pessoas de diferentes classes sociais, todas elas gente comum, habitantes de um tempo saído da bravura do combate e das ruínas da guerra, com os olhos postos no futuro. O futuro, evidentemente, é o estado social.


Esta tese é, hoje, em 2013, inaceitável para os Tories e incómoda para o Labour. Para os Tories porque eles são crentes da religião do mercado e sacerdotes do sistema financeiro. Para o Labour porque há muito se deixou contaminar pelo vírus neoliberal que o levou para a desgraça da terceira via e para a tragédia da guerra do Iraque. Daí a ferocidade de algumas criticas a Spirit of 45. Até porque Ken Loach esteve na génese do Left Unity, um partido que considera que os trabalhistas deixaram de ser parte da solução e passaram a ser parte do problema.


Por mim direi apenas que Spirit of 45 é indispensável.


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Folha de sala do DesobDoc

 
 
 

Atualizado: 16 de dez. de 2020


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a social-democracia em Portugal está em alta, à direita. o professor Marcelo anunciou a recandidatura e declarou-se social-democrata. há não muito tempo, o professor Cavaco publicou um livro a demonstrar ser ele o verdadeiro social-democrata. a prová-lo, os seus formidáveis governos. Rui Rio, evidentemente, também é social-democrata. basta lembrar a sua sensibilidade social quando, eleito para a Câmara do Porto, disse que não haveria cultura, supérflua no seu alto critério, enquanto houvesse pobreza nos bairros sociais. cumpriu. pôs-se a pensar em grande e arranjou algo de tão essencial quanto um festival de francesinhas. depois, inventou uma corrida de calhambeques. finalmente, contratou acrobacias aéreas.


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não sei o que esta gente pensa da social-democracia, mas o raciocínio não deve andar longe do que há anos o então mais jovem deputado da Assembleia da República, Duarte Marques, disse numa entrevista à Antena 1. eu ouvi. para ele, os grandes faróis teóricos da causa eram Durão Barroso e Santana Lopes, certamente dois portentos conceptuais, embora, receio bem, de outros carnavais. vamos ver. o PSD nunca foi da linhagem social-democrata tal como é histórica e teoricamente referenciada. nasceu após o 25 de Abril como PPD (Partido Popular Democrático). atraiu democratas, parte dos bem instalados do Estado Novo e uma legião de conservadores receosos da mudança. também houve pessoas mais inconformadas que julgaram poder criar um verdadeiro partido social-democrata. não sei se resta algum no ativo.


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Sá Carneiro, vindo da ala liberal da Assembleia Nacional, era um democrata. tentou mudar o regime por dentro. chegou a pedir a integração na Internacional Socialista, o que lhe foi negado por Mário Soares. por essa altura, o programa do partido, manifestamente condicionado pelos sinais do tempo, propunha coisas que só podem parecer mirabolantes a qualquer militante, simpatizante ou eleitor do atual PSD. olhando para os cartazes desse tempo é óbvia a busca de um rumo. num, dizia-se o PPD não é de direita. noutro, o PPD é de centro-esquerda. noutro ainda proclamava-se a social-democracia como via para o socialismo.


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quando, há 40 anos, Sá Carneiro morreu no fatídico acidente aéreo de 4 de dezembro, o seu posicionamento político mudara. emergia o perfil autoritário de alguém que apoiava na corrida à Presidência da República um dos generais mais retrógrados das Forças Armadas, Soares Carneiro, candidato contra Ramalho Eanes. a consigna de Sá Carneiro passara a ser “um presidente, um governo, uma maioria”, de certo modo ultrapassando o 25 de Novembro pela direita. da sinuosa disputa sucessória haveria de sair o ”único verdadeiro social-democrata", o professor Cavaco. muito mais tarde, após uma imaginativa sucessão de cocktails ideológicos, apareceu o dr. Passos, obreiro do neoliberalismo mais serôdio e padrinho espiritual de um sujeito de nome Ventura. hoje, ninguém no PSD saberá dizer ao certo o que aquilo é, aliás, em coerência com o seu percurso histórico.


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mantendo a sigla PSD não tem qualquer problema em ser considerado um partido de direita. integra há anos o PPE. para utilizar uma imagem futebolística, bascula, ou seja, vira o jogo de acordo com as circunstâncias e conforme lhe dá jeito. sendo, no essencial, um partido democrático, sempre foi assim. muitas vezes me disseram de dentro, bem vê somos um partido de poder. é certo. e a social-democracia também não é exclusiva de ninguém. mas podiam deixar-se de fantasias. davam à malta mais aguerrida umas aulas de introdução ao pensamento político e largavam a bengalinha SD. era bom para todos. achatavam a curva da crise de identidade, desdramatizavam os problemas existenciais e poupavam brutalmente no espectáculo habitual da psicanálise em grupo. coragem. tentem PDP (Partido da Direita Portuguesa). vá lá…

 
 
 

Atualizado: 20 de out. de 2023


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Cinema de Fernando Lopes

Quando se fala do filme documentário e se procura no Porto algum tipo de equivalente ocorre imediatamente Douro, Faina Fluvial de Manoel de Oliveira. Obra singular no panorama do cinema português, realizado com meios precários no período de transição para o cinema sonoro, o filme de Oliveira pode ser citado sem receio de perder na comparação com outras sinfonias associadas às vanguardas artísticas como Berlim de Waltter Ruttman ou O Homem da Câmara de Filmar de Dziga Vertov. O cinema documental na cidade conheceu, no entanto, outros episódios, o mais ambicioso dos quais foi a programação da Odisseia nas Imagens no âmbito do Porto - Capital Europeia da Cultura de 2001. Por um período de dois anos, o documentário esteve no centro de um debate cujos efeitos, mais ou menos explícitos ou difusos, se fizeram sentir em diversos domínios. Mas não só isso. O plano apresentado foi multidisciplinar com forte envolvimento educativo. O que se segue são algumas notas soltas, publicadas em 2007, destinadas a enquadrar o que foi a Odisseia nas Imagens, bem como a fazer um balanço sumário. Recupero-as agora dos arquivos numa altura em que passam 20 anos sobre a Capital Europeia da Cultura. Noutra altura, darei opinião detalhada sobre um trabalho cujo principal objetivo foi contribuir para fazer do Porto uma cidade mais ousada e cosmopolita.


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A Ribeira do Porto de Nadir Afonso, Pontes para o Futuro

1.0 Ponto de partida: construir Pontes para o Futuro; elaborar um projeto em função do qual a cidade pudesse transformar-se num grande centro de Cinema, Audiovisual e Multimédia com utilização adequada da capacidade instalada no Centro de Produção do Porto da RTP, criação de um Media Park e envolvimento de festivais e escolas do ensino superior; recuperar a memória da cidade de imagens que o Porto sempre foi, de modo a reconhecer-lhe uma identidade a partir da qual fosse possível legitimar um projeto de futuro; recolocar uma questão fundamental do novo milénio: a centralidade da imagem nas suas múltiplas expressões, lançando o desafio da aventura do olhar, ou seja: respirar Cinema, ver uma imagem e tentar compreendê-la enquanto fenómeno perceptivo, procurar entender quais os dispositivos reguladores da sua relação com o espectador, debater os seus mecanismos de significação explorando, transversal e criativamente, as tecnologias a ela associadas na esfera social da arte do século XXI.


2.0 Zona nuclear da aventura do olhar: o(s) documentário(s): um jogo narrativo de permanente afirmação e negação, ocultação e descoberta, cuja matriz dominante reside no Cinema, mas que interage com outros media, como a televisão – e, também, com a fotografia, a rádio e até com a literatura e o teatro; e, cada vez mais, com a parafernália multiméida.


2.1 Programar as narrativas documentais: alguns pressupostos: ficção e não-ficção: a tentativa de distinguir ficção e documentário corresponde a marcar encontro com um conjunto reiterado de evidências, ou seja, quanto mais se avança na reflexão sobre o modo como se constroem os documentários, tanto mais é forçoso reconhecer a presença de técnicas e artifícios comuns à produção ficcionada; contudo, tratando-se de um argumento sobre o mundo histórico, o documentário, ao promover a representação do real, fá-lo na base de um contrato estabelecido com o destinatário: esse contrato prescreve uma norma e contém uma cláusula de negação - a norma: a presença do olhar documentário combina a apresentação da matéria prima do mundo sócio-histórico com a imaginação criadora; a cláusula de negação: o que é dado a ver não é entendido pelo público como ficção; William Guynn: “é precisamente contra a ficção e as suas tradições que se foi constituindo a teoria do documentário”; Jack Ellis: o documentário distingue-se de outro tipo de filmes em função dos assuntos de que trata, do modo como articula objectivos/ ponto de vista/ abordagem, da sua forma, das suas técnicas e métodos de produção, da sua relação com o público; encarar o percurso das imagens num contexto lúdico de modos de revelação e, enquanto tal, indutor do saber e do saber fazer; assegurar combinações criativas do documentário com as demais modalidades cinematográficas, nomeadamente o grande cinema de autor, bem como com áreas de produção simbólica exteriores ao cinema, numa perspetiva de transversalidade; contrariar a crítica hiperbólica e tentativas dogmáticas de tutela do gosto.


3.0 Zona de intervenção formal: criação de uma rede de parcerias protocoladas capaz de garantir a sustentabilidade do projeto e de fazer reverter o declínio da produção de cinema e audiovisual do Porto; considerar parceiros estratégicos: as universidades e outros estabelecimentos de ensino superior do Porto, a Cinemateca Portuguesa, o serviço público de televisão, os festivais de cinema da área metropolitana, produtores independentes e outros agentes culturais; promover a internacionalização através de contactos com criadores e especialistas contemporâneos, bem como com instituições como a Universidade de Santiago de Compostela, os principais festivais de cinema documental europeus; convocar sinergias no sentido de dar coesão e coerência a estruturas e iniciativas já existentes ou, entretanto, criadas, em função, por um lado, da identificação de tendências e oportunidades na paisagem audiovisual europeia e, por outro, do reconhecimento da importância do investimento na excelência do discurso como condição de futuro; criação de condições para o fomento, a médio prazo, da visibilidade local e regional com base numa produção audiovisual regular dirigida a nichos de mercado privilegiando produções de referência com destaque para o documentário.


4.0 Esboço de uma base de dados de filmes documentais feitos no Porto para efeito de conferir à memória um sentido prospectivo


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Alfredo Nunes de Matos, Invicta Film

Contemporâneo de Louis e Auguste Lumière, Paz dos Reis mostrou a Saída do Pessoal Operário da Camisaria Confiança a 12 de Dezembro de 1896 numa sessão no Palácio do Príncipe Real, no Porto, da qual constavam igualmente outros filmes da sua autoria. O Jornal de Notícias desse dia anunciava a exibição de “12 perfeitíssimos quadros, sete nacionais e cinco estrangeiros”. Exibidos durante o intervalo de uma zarzuela, muito do agrado do público da época, os quadros tiveram maior êxito do que o até então obtido pelas vistas estrangeiras.


Este tipo de reportagem ou filme documental seria a imagem quase exclusiva do cinema português do final do século XIX e do início do século XX. Paz dos Reis foi, portanto, não só o nosso primeiro cineasta, mas também o nosso primeiro repórter de imagens em movimento. A maioria dos operadores de imagem da época permaneceu no anonimato. Poucos alcançaram a notoriedade. Entre estes, Manuel Maria da Costa Veiga e João Freire Correia, um antigo colaborador de Paz dos Reis, mas ambos desenvolveram a maior parte do seu trabalho em Lisboa.


A experiência da Invicta Film, com sede no Porto, corresponde ao primeiro grande ciclo do cinema português e está associada à primeira tentativa de levar a cabo uma produção nacional à escala europeia. Entre 1910 e 1925 produziu mais de uma centena de películas documentais.


Alfredo Nunes de Matos foi a figura central deste ciclo do Porto. Em 1910, ano da implantação da República, produziu numerosas reportagens cinematográficas, sobretudo no Norte, fazendo simultaneamente pequenos filmes publicitários de encomenda. Contratou talentosos operadores como Manuel Cardoso e Thomas Mary Rosell, cujos princípios de rodagem observavam a fidelidade à temática portuguesa. Nunes de Matos conseguiu inclusivamente interessar os jornais de actualidades da Pathé e da Gaumont, em França, dos quais passou a ser correspondente.


Durante a I Guerra Mundial a Invicta Film produziu, entre outros, O Embarque das Tropas Expedicionárias para Angola e Moçambique, Exercícios de Artilharia e Grandes Manobras de Tancos, todos eles sobre a preparação de Portugal para entrar no conflito. Produziu igualmente vistas panorâmicas sobre temas de agrado do público como operações de bombeiros, treinos de aviadores, festas e romarias. Em suma, um retrato do País.


A partir de 1918, o prestígio da Invicta ficou a dever-se aos filmes de enredo. Construiu estúdios modernos, criando condições para que o Porto fosse durante alguns anos a capital do cinema português. Apesar das críticas por ter procurado agradar a um público muito vasto, a Invicta Film percebeu a importância do ser genuinamente português para ser mais europeu, formando muita gente do cinema e conseguindo exportar um ou outro filme. Nesse esforço foi acompanhada pela Caldevilla Film, fundada em 1920, e pela Fortuna Filme, criada em 1922. Em conjunto, as três empresas, entre 1818 e 1925, fizeram 25 longas metragens de ficção. Todos os géneros de que o cinema português viria a ocupar-se mais tarde, à excepção da comédia popular, já se encontram no Ciclo do Porto.


A partir de 1922, a Invicta Film começou a sentir dificuldades financeiras para as quais não encontrou solução. O último filme, de 1924, foi um documentário intitulado III Exposição Internacional de Automóveis, Aviação e Sport. Os estúdios reabriram, ainda, uma ou outra vez, a título de aluguer, como aconteceu com as fitas de Reinaldo Ferreira, um jornalista famoso com o pseudónimo de Repórter X. Em Junho de 1931 fechou as portas definitivamente. Nesse ano, morreu Aurélio da Paz dos Reis e Manoel de Oliveira realizou Douro, Faina Fluvial.


Também as revistas especializadas tiveram importância. O Porto Cinematográfico, fundado em 1919 por Alberto Armando, só viria a extinguir-se em 1925. Em 1923, acompanhando de perto a actividade da Invicta Film, Roberto Lino fundou a Invicta Cine, a qual foi publicada regularmente até 1936 e desempenhou um papel pioneiro na defesa do cinema sonoro. A partir desta última revista foi criada, em 1924, a Associação dos Amigos do Cinema, pioneira do futuro movimento cine-clubista.


O movimento teve o seu momento alto nos anos 60. Desde o final da Invicta Film até essa altura a produção deixara praticamente de existir, salvo algumas raras excepções. As mais notáveis são dois filmes de Oliveira Aniki-Bóbó (1941) e O Pintor e a Cidade (1956), uma curta metragem de cunho documental com ponto de partida nas aguarelas do pintor António Cruz. Ambas são hoje parte do imaginário do Porto.


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O Pintor e a Cidade de Manoel de Oliveira

Através da Secção de Cinema Experimental, por onde passou António Reis, o Cineclube, na tentativa de reanimar a produção da cidade, levou Lopes Fernandes a filmar o Auto de Floripes (1960), um ritual popular da aldeia das Neves, em Viana do Castelo. Manoel de Oliveira fez, por sua vez, três curtas-metragens que são outras tantas obras-primas do cinema português: O Acto da Primavera (1962), eventualmente inspirado no filme de Lopes Fernandes, seu assistente neste filme, A Caça (1963) e As Pinturas do Meu Irmão Júlio (1965).


Em 1967, liderado por Henrique Alves Costa, o Cine-Clube do Porto organizou a Semana do Novo Cinema Português, na qual contou com a presença da maioria dos cineastas mais jovens. As conclusões viriam a ter uma importância determinante para o futuro. Com o passar dos anos, após a Revolução de Abril de 1974, a actividade do Cine-Clube do Porto foi esmorecendo. A produção de documentários, porém, conheceu uma renovação a partir de meados dos anos 90, fosse através de trabalhos para a televisão, fosse pela mão de cineastas independentes como Saguinail e Regina Guimarães. Por outro lado, Manoel de Oliveira, setenta anos após Douro, Faina Fluvial reincidiu com O Porto da Minha Infância (2001), uma encomenda da Odisseia nas Imagens.


5.0 Apontamentos sobre o documentário e a Odisseia nas Imagens


Organizada em módulos, os quais por sua vez se desdobraram em ciclos e iniciativas complementares, a Odisseia nas Imagens foi construída numa perspectiva de work in progress. Os primeiros passos foram dados ainda durante o ano de 2000. A par da recepção e apreciação de cerca de uma centena de projectos externos e de contactos com festivais internacionais cujas experiências pudessem ser adaptadas, foram estabelecidas diversas parcerias de carácter institucional, quer com protagonistas do Porto e da sua área metropolitana, quer com outros agentes no âmbito de uma estratégia de internacionalização conducente à afirmação global da realidade local.


O grau de exigência da Odisseia nas Imagens permitiu mostrar muito do melhor Cinema – e, sobretudo, do filme documentário – alguma vez feito, como facilmente se constata através da programação do ciclo O Olhar de Ulisses. A diversidade dos quatro episódios da Odisseia nas ImagensO Homem e a Câmara, O Som e a Fúria, Apocalípticos e Integrados e Como Salvar o Capitalismo/ Outras Paisagens – bem como a multiplicidade das suas iniciativas torna difícil fazer um balanço dos resultados alcançados. No entanto, os dados já apurados quanto ao cinema e ao documentário permitem uma estimativa que deverá estar bastante próxima de um retrato final, pelo menos em termos quantitativos.


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William Klein, um dos participantes em Como Salvar o Capitalismo. Fonte: Cinémathèque Francaise

No conjunto foram exibidos 791 filmes, não se incluindo, por se tratar de programação autónoma embora integrada na Programação Oficial da Odisseia nas Imagens, os filmes do Fantasporto, do Festival Internacional de Curtas Metragens de Vila do Conde e do Cinanima. Tão pouco, se incluem quer os vídeos passados em diversos eventos como o Media Lounge, quer as dezenas de produções escolares exibidas na secção competitiva do Festival Internacional do Documentário e Novos Média.


Esses 791 filmes, na sua maioria da esfera do documentário ou obedecendo a olhares cruzados sobre o real, foram exibidos em 324 sessões em contextos muito diversificados: em O Olhar de Ulisses, cuja programação foi destacada no site dos Cahiers du Cinéma, numa perspectiva cinéfila, com a participação de numerosos realizadores e especialistas; numa perspectiva de interpelação cidadã, combinando a lógica dos estudos fílmicos e dos estudos culturais, em Como Salvar o Capitalismo ou no ciclo O Choque das Imagens; num sentido de exploração da transversalidade de linguagens em iniciativas como a retrospectiva integral de Errol Morris, os filmes concerto e alguns dos eventos centrados no Media Lounge; no âmbito do trabalho teórico sobre o real, convergindo no documentário, em masterclasses como Os Lugares da Imagem; ou simplesmente debatendo as questões do documentário contemporâneo nas materclasses do ciclo Como Salvar o Capitalismo, cuja tónica se centrou na relação do documentário com a televisão.


Em complemento das principais iniciativas foi publicado um conjunto de catálogos convocando especialistas nacionais e estrangeiros, no qual são recorrentes as matérias respeitantes à História e Teoria do Documentário – O Homem e a Câmara; O Som e a Fúria; Utopia do Real; Resistência; Mr. Death, A América de Errol Morris; Digital Cinema; Visconti, Violência e Paixão; Odisseia nas Imagens.


No seu conjunto a Odisseia nas Imagens teve cerca de 64.500 espectadores de cinema. Este número, porém, não entra em linha de conta com os festivais da área metropolitana do Porto, com os eventos de entrada livre em espaços públicos onde não foi feito controle de presenças, como sucedeu, por exemplo, com as masterclasses, conferências e painéis de debate – na sua maioria esgotaram a lotação das salas – e com as exposições e instalações associadas ao cinema, audiovisual e multimédia. Os 64.500 espectadores respeitam, portanto, apenas aos eventos em relação aos quais foi feito controle de bilheteira, o que não quer dizer que todos os ingressos tenham sido pagos, visto uma parte da lotação das salas estar destinada aos estudantes e professores das universidades e estabelecimentos do ensino superior protocolarmente envolvidas na produção escolar patrocinada pela Sociedade Porto 2001.


Quanto ao índice de ocupação dos espaços utilizados regularmente foi possível identificar uma linha evolutiva de crescimento. A título de exemplo, a principal iniciativa da programação no Pequeno Auditório do Rivoli -Teatro Municipal, O Olhar De Ulisses, registou nos seus quatro módulos as seguintes taxas de ocupação: 41%, 62%, 90%, 61%. Esta quebra final parece ser uma consequência do número invulgar de iniciativas a decorrer em simultâneo não apenas na Odisseia nas Imagens, mas também no conjunto da Programação da Capital Europeia da Cultura. De qualquer modo, em números absolutos, o último episódio da Odisseia nas Imagens foi o que teve maior número de espectadores, cerca de 24 mil.


Para efeito da concretização da Programação global foram estabelecidas 113 parcerias institucionais, sendo que um mesmo parceiro pode ter sido contabilizado por mais de uma vez em função do número de iniciativas em que participou. Critério idêntico é aplicável às 637 participações individuais.


Cruzando dados algumas conclusões poderão ser avançadas.


Em primeiro lugar, não parece excessivo ver nesta evolução do índice de participação um ponto a favor da bondade da estratégia de criação de novos públicos, aliás, de algum modo confirmada pelo estudo efectuado pelo Observatório das Actividades Culturais quando releva a presença de jovens universitários entre os principais frequentadores da Odisseia nas Imagens. Na verdade, todos os indicadores sugerem que a maioria dos novos públicos foi conquistada entre os jovens e, para tanto, certamente terá contribuído quer o envolvimento proporcionado ao nível de acções de formação, quer as parcerias estabelecidas com os estabelecimentos de ensino superior, designadamente em termos de produções escolares.


Estas atingiram os objetivos tendo, inclusivamente, ultrapassado o número de filmes inicialmente acordado, embora, como sublinhou o júri de pré-selecção da Competição de Escolas, a qualidade fosse muito desigual. O júri seleccionou 34 filmes (nove eram documentários), os quais, independentemente da sua valia, se constituíram como um dos legados da Odisseia nas Imagens e ponto de partida para uma atenção renovada à produção escolar de um modo geral e ao documentário em particular. A tal não terá sido alheio o facto de uma parte significativa da Programação ter integrado, numa primeira fase, os planos curriculares de diversos cursos, evoluindo, numa fase posterior, para a realização de seminários, para a introdução de unidades curriculares relacionadas com o documentário e para criação de novos cursos de pós-graduação, dos quais o primeiro, com coordenação da minha responsabilidade, foi O Documentário: O Desafio do Real promovido pela Faculdade de Jornalismo e Ciências da Comunicação da Universidade do Porto.


A avaliar pelo panorama atual (nota: em 2007), não será arriscado afirmar que a experiência antecipou procedimentos contemplados na Declaração de Bolonha, designadamente quanto à aproximação do meio universitário ao mundo do trabalho. Logo no ano lectivo de 2002/2003 o recém constituído curso de Jornalismo da Universidade do Porto ofereceu um mestrado em Cultura e Comunicação, sendo uma das especializações, justamente, O Documentário. De um modo geral, os cursos superiores apostaram mais decididamente na produção escolar, a qual tem evoluído tanto no plano quantitativo, quanto qualitativo. Essa dinâmica permitiu que surgissem vários pequenos festivais de enfoque audiovisual como Black & White da Universidade Católica e ciclos de fotografia e cinema documental como sucede com as Imagens do Real Imaginado do Curso de Tecnologia da Comunicação Audiovisual do Instituto Politécnico do Porto, o qual, aliás, se prepara para oferecer o primeiro mestrado profissionalizante em Portugal em Fotografia e Cinema Documental (Nota: o mestrado continua pujante em 2020).


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The Misfits - Exposição da Magnum na Odisseia das Imagens. Foto de Elliott Erwin

Para além do sumariamente elencado, caso venha a fazer-se um estudo mais exaustivo da Odisseia nas Imagens, verificar-se-á a existência de um outro legado não negligenciável. Abreviadamente, ficaram os filmes feitos por encomenda sobre o Porto, as edições em DVD de clássicos do cinema documental, a Casa da Animação, o Museu da Pessoa, associações como Os Filhos de Lumière, o reconhecimento unânime – ou quase – da excelência da Programação, contribuições teóricas para efeito de concretização de políticas descentralizadas para o audiovisual, modelos para a concretização de parcerias, etc., etc... O projecto era para continuar e aprofundar e até tinha algumas garantias. Não foi possível. Paciência. Melhores dias virão. (Nota: a presidência da Câmara Municipal do Porto pelo PSD de Rui Rio não ajudou nada, mesmo nada, muito pelo contrário).


Jorge Campos

Porto, 25 de Setembro de 2007


Publicado em O Cinema no Porto – O Estado da Arte / Revista da Escola Superior Artística do Porto nº.3, 2007. Revisto em 2020.




 
 
 
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Imagens do Real Imaginado (IRI) do Instituto Politécnico do Porto foi o ponto de partida para o primeiro Mestrado em Fotografia e Cinema Documental criado em Portugal. Teve início em 2006. A temática foi O Mundo. Inspirado no exemplo da Odisseia nas Imagens do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura estabeleceu numerosas parcerias, designadamente com os departamentos culturais das embaixadas francesa e alemã, festivais e diversas universidades estrangeiras. Fiz o IRI durante 10 anos contando sempre com a colaboração de excelentes colegas. Neste segmento da Programação cabe outro tipo de iniciativas, referências aos meus filmes, conferências e outras participações. Sem preocupações cronológicas. A Odisseia na Imagens, pela sua dimensão, tem uma caixa autónoma.

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