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  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 18 de dez. de 2020
  • 15 min de leitura

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Fonte: Anonymous ART of Revolution

Este texto tem quase 30 anos e tem por base um trabalho académico da altura. Foi publicado num livrinho chamado A Caixa Negra e é sobre a Televisão. Depois de o recuperar e reler, apesar do tempo passado, penso que ainda terá alguma utilidade até porque a memória permite pensar o presente. Reflete sobre o trabalho dos jornalistas e sobre as relações de poder. Nesse aspecto continua a fazer sentido. Abaixo do título, aparecia Discurso de um Jornalista sobre o Discurso da Televisão. É isso mesmo. O jornalista era eu.


(Continuação de A Caixa Negra 1)


PROPAGANDA, ARMAS E COMUNICAÇÃO


"O instrumental bélico é revelador da tecnologia moderna; ao mesmo tempo que utiliza os inventos disponíveis ligados ao domínio da percepção sensorial, nomeadamente os media visuais e auditivos, associa-se à sua lógica a ponto de acabar por produzir a sua própria tecnologia. Não admira, por isso, que a fotografia, o cinema, o megafone, a telefonia, o telégrafo, a televisão tenham sido logo associados desde os primeiros tempos ao campo militar. A história, senão a origem dos media, depende em grande parte da história das próprias armas." - Adriano Duarte Rodrigues

O PODER DOS MEDIA


No âmbito das Teorias da Comunicação Social há numerosos trabalhos cujos resultados se afastam das teses maximalistas, como aquelas que temos vindo a referir, apontando no sentido da relativização do poder dos mass media. Ainda nos anos 40 e durante a década de 50 o paradigma dos efeitos conheceu inúmeras abordagens. Ficaram célebres, por exemplo, as experiências de Katz e Lazarsfeld que levaram à identificação dos líderes de opinião:


"A função dos líderes de opinião é servir de intermediários entre os meios de comunicação e as pessoas do seu grupo social. Admite-se, de um modo geral, que as informações são obtidas directamente dos jornais, rádio e outros veículos. Contrariamos essa convicção. A maioria das pessoas adquiriu as suas ideias e informações através de contactos pessoais com os seus líderes de opinião, cuja exposição aos media se verificou ser, entretanto, superior à média."(1)


Uma vez estabelecido o princípio da comunicação em duas etapas, para a história ficariam igualmente experiências conclusivas quanto, por exemplo, ao fenómeno da atenção selectiva, ou seja, o receptor expõe-se preferencialmente às mensagens cujos conteúdos vão no sentido de reforçar as suas crenças e pontos de vista, tendendo a rejeitar as opiniões contrárias. Exemplos como este poder-se-iam multiplicar, todos eles convergentes no sentido de relativizar o poder dos media enfatizando, simultaneamente, as interacções de ordem sociológica e psicológica na formação da opinião pública.


De qualquer modo, importa sublinhar que a maioria destes estudos foi feita há quarenta, cinquenta anos na América e um pouco mais recentemente na Europa (Nota do autor: na verdade, seria necessário juntar agora outros trinta anos). Desde então muita coisa mudou. Hoje, a par do reconhecimento da validade dos estudos mencionados, bem como de outros respeitantes ao processo comunicativo através das abordagens mais diversificadas, é consensual o reconhecimento do papel dos mass media na construção da realidade, com destaque para a Televisão. Inúmeros factos o confirmam.


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O Presidente Kennedy fala aos americanos sobre a guerra do Vietname. Fonte: The Middlebury Blog Network

Nos anos 60, episódios como o célebre debate televisivo ente os candidatos à Casa Branca, Richard Nixon e John F. Kennedy, as transmissões em directo dos funerais do então já eleito presidente Kennedy e as reportagens sobre a guerra do Vietname levaram políticos e militares a compreender a necessidade de saber utilizar a Televisão, à semelhança, aliás, do que acontecera nas décadas anteriores com a Rádio. (Nota do autor: hoje, seria indispensável, por exemplo, acrescentar à equação o impacto das redes sociais)


O VERÃO DE 62


Nesse Verão o Departamento de Estado intercedeu junto de Senado dos Estados Unidos no sentido de recomendar uma emenda à Lei das Comunicações de 1934. O Secretário-de-Estado das Relações Exteriores, George W. Ball, sugeriu que fosse dado ao presidente o poder de "autorizar um governo estrangeiro a operar um transmissor de rádio na sede ou nas imediações da sua missão em Washington, quando este governo houvesse concedido privilégios recíprocos aos Estados Unidos para operar um sistema de rádio dentro do seu próprio país."(2)


Herbert I. Schiller, na sua obra sempre muito citada O Império Norte-Americano das Comunicações, nota que o interesse da emenda não era, obviamente, facultar aos governos estrangeiros o acesso a estações de rádio em Washington. Tratava- -se, isso sim, de facilitar as comunicações com os representantes americanos no exterior. Nas suas declarações à comissão do Senado, Ball não poderia ter sido mais claro:


"O nosso problema é o desenvolvimento das comunicações aperfeiçoadas com muitos dos postos mais recentes através do mundo, particularmente na África, Ásia e América Latina. A capacidade de comunicarmos prontamente com estas regiões é um elemento essencial do nosso procedimento nas relações internacionais. Muitas e muitas vezes, vimos a nossa capacidade de enfrentar eficazmente crises nas regiões menos desenvolvidas ser impedida por falta de instalações de comunicação modernas. Por exemplo, um telegrama enviado por telégrafo comercial ao Congo, a Vientiane, a capital do Laos, ou Argel, pode levar até vinte horas. Hoje, em todas essas áreas, um adiantamento de horas pode ter importante significado para os nossos interesses."(3)


Este episódio é apenas um. Na verdade, desde sempre as comunicações estiveram ligadas a estratégias de poder.


O CHEFE DOS CORREIOS


Se recuarmos até quinhentos anos antes da nossa era vamos encontrar como um dos pilares do poderoso império dos Persas um muito bem organizado sistema de correios, no qual o cavalo desempenhava um papel primordial. Dario III, antes de ser imperador, fora chefe desse serviço.


Alguns séculos mais tarde, as estradas romanas rasgadas em todo um vastíssimo território possibilitaram não apenas a passagem das legiões e a eficiência administrativa mas, também, o contacto rápido entre regiões distantes através do mais formidável sistema de troca de mensagens da antiguidade, o correio romano. Tal como o correio persa assentava em casas de muda. Aí se encontravam cavalos, animais de carga, tratadores, veterinários, cavaleiros, burocratas, enfim, todo um conjunto de serviços constituindo uma sólida infra-estrutura concebida no sentido de optimizar as potencialidades do sistema.


Aliás, este "cursus publicus”, bem como todos os outros correios da Antiguidade, foram organizações ao serviço do Estado. No tempo de Augusto, o "cursus publicus" funcionou mesmo como uma autêntica rede de espionagem. Enfim, romanos e persas tinham bem a consciência da importância da velocidade de circulação das informações. Tal como o Secretário-de-Estado George W. Ball.


MARCONI


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Guglielmo Marconi

Especialmente interessante nesta matéria é a história protagonizada por um estudante medíocre de Livorno, Guglielmo Marconi de seu nome, um rapazinho de saúde débil, cuja falta de assiduidade às aulas era compensada por uma imensa curiosidade a respeito dos fenómenos da natureza.


No ano de 1884, com apenas dez anos, Marconi improvisou a construção de um telefone. Aos dezassete construiu um curioso aparelho que fazia disparar uma campaínha quando um relâmpago cortava o céu: estava para chegar a transmissão de sinais eléctricos, o que aconteceu em Agosto de 1894. Marconi era estudante de Física na Universidade de Bolonha quando conseguiu transmitir sinais a trinta metros. No ano seguinte, melhorou a distância por diversas vezes e chegou mesmo a fazer o sinal saltar uma montanha. Em Pontecchio, onde tais prodígios se verificavam, as gentes suspeitavam no jovem Marconi a presença do maligno e acusaram-no de bruxaria. Costella diz que a sorte dele foi ter nascido no século XIX: "Se tivesse nascido na Idade Média, em vez de Telegrafia Sem Fio, talvez nos restasse apenas a notícia de um inventor churrascado".(4)


Quando Marconi procurou interessar as autoridades italianas nas suas experiências deparou com as evasivas próprias de uma incompreensão generalizada. Partiu, pois, para Londres onde requereu a patente do seu invento. Em seguida, fundou a "Wireless Signal Telegraph Company", posteriormente denominada "Marconi Wireless Telegraph Company".


Em 1899, pela primeira vez, dois países, a França e a Inglaterra foram ligados por T.S.F.. Os correios ficaram, naturalmente agradecidos. Mas o que importa salientar é o facto de mal ter chegado a Inglaterra Marconi logo ter sido solicitado a fazer uma demonstração do seu invento perante especialistas da Royal Navy. E a verdade é que, pouco depois, os navios da maior potencia imperial da época ficavam habilitados a comunicar entre si até distâncias de 100 quilómetros. Os Estados Unidos logo copiaram o exemplo britânico.


Marconi viveu o suficiente para assistir à explosão da rádio, bem como às experiências pioneiras de Televisão. Pôde igualmente constatar a precariedade dos estudos sobre a comunicação social durante as primeiras duas décadas deste século. (Nota do autor: século XX) E assistiu à concentração monopolista da imprensa americana nas mãos de alguns magnates. Hearst, por exemplo, chegou a ser proprietário de trinta jornais, duas agências noticiosas, uma das quais a International News, seis revistas e até actualidades cinematográficas, isto numa altura em que o cinema apenas começara a afirmar-se. Proprietário de um sempre recordado castelo gótico na costa californiana, Hearst iria, alguns anos mais tarde, inspirar Orson Welles na composição da figura central do mais famoso de todos os seus filmes, Citizen Kane, titulado em português


O MUNDO A SEUS PÉS


O realizador negou sempre essa inspiração e, valha a verdade, dificilmente poderia ter feito de outro modo: considerando-se desrespeitado, Hearst impedira qualquer crítica, anúncio ou simples menção ao filme nos seus jornais, fazendo saber á produtora de Welles que melhor seria interromper-lhe a carreira.


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Citizen Kane (1942) de Orson Wells

Orson Welles era um homem de múltiplos talentos. Alguns anos antes de fazer Citizen Kane espantara a América com um programa de Rádio, deixando-a em estado de choque. Foi no dia 30 de Outubro de 1938, às oito horas da noite. Ia para o ar uma adaptação da Guerra dos Mundos do escritor H.G. Welles: os marcianos estavam a invadir a Terra. Maurice Bessy recorda esse episódio, aliás, igualmente evocado por Woody Allen nos seus Dias da Rádio:


"A multidão invade as igrejas. Soltam-se os gatunos. As populações agitam-se. A polícia das grandes cidades recebe milhares de chamadas telefónicas. Suicídios, partos prematuros, fugas para as montanhas multiplicam-se. É uma verdadeira histeria colectiva, tanto mais notável por o seu autor continuar tranquilamente o seu programa quando a polícia irrompeu pelos estúdios: belo exemplo de fleuma do aprendiz de feiticeiro perante a inconsciência das multidões."(5) (Nota do autor: sabe-se há muito que não foi exatamente assim).


A Rádio podia criar o pânico. E podia vender tudo. Na década de 30 o mundo estava a seus pés. Tem carácter de massa a partir de 1927, dado o "boom" na construção de receptores. Na América, são os fabricantes de material radio-eléctrico os principais promotores das estações. Já em 1922, David Sarnoff, antigo colaborador de Marconi e, mais tarde, patrão da RCA, considerava o financiamento das estações da competência dos fabricantes, dos distribuidores e dos comerciantes dos aparelhos de rádio. No início dos anos 30, a publicidade ascendia a sessenta milhões de dólares, uma quantia suficientemente importante para levar à falência diversos jornais, já de si debilitados pela grande depressão de 1929.


A GUERRA DOS MUNDOS


Da importância da Rádio cedo se deram conta os nazis na Alemanha. Quando chegaram ao poder em 1933 o seu potencial de propaganda radiofónica não tinha sequer sido ainda testado. Mas, nesse mesmo ano, ao inaugurar a exposição sobre a Rádio, em Berlim, Göebbels já admitia que no século XX a Rádio teria um papel semelhante ao desempenhado pela imprensa no século XIX.


"A verdadeira Rádio é autêntica propaganda" — diria Göebbels, um pouco mais tarde, para logo acrescentar: "A propaganda supõe lutar em todos os campos da batalha do espírito, gerando, multiplicando, destruindo, exterminando, construindo e desfazendo. A nossa propaganda é determinada por aquilo a que nós chamamos a raça, o sangue e a nação alemãs."(6)


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Göebbels mostra a Hitler o novo aparelho de "rádio para o povo" em 1933. Fonte: The Conversation

O sistema de controle desenvolvido por Göebbels teve pontos de contacto com o sistema comunista. Logo em 1930 a rádio soviética fora colocada sob estrito controle estatal e utilizada como instrumento de agitação e propaganda. Ainda assim, Julian Hale sustenta que os propósitos proclamados por nazis e comunistas, fossem eles soviéticos ou chineses, se distinguiam como a água do fogo:


"Hitler e Göebbels só estavam interessados em manter o poder a todo o custo e por qualquer preço; os soviéticos e os chineses acreditam num conjunto de verdades fundamentais e em que a história está inexoravelmente do seu lado."(7)


Hale escrevia, naturalmente, antes da derrocada do bloco da Europa de Leste.


Quanto aos Estados Unidos, só tardiamente a Casa Branca sentiu necessidade de dispor de serviços centrais de propaganda orientados de acordo com uma estratégia global. A Voz da América nasceu de uma situação de emergência, após o ataque japonês a Pearl Harbour, em 1942. O mundo estava em guerra e a América fora dela. Quando entrou teve de se armar para


A GUERRA DAS ONDAS


Nessa altura, era impensável delinear qualquer iniciativa de propaganda ou contrapropaganda, informação ou contra-informação, espionagem ou contra-espionagem sem o recurso ao envio de mensagens através das ondas hertzianas.


Durante a guerra, ficaram célebres os serviços de espionagem soviéticos — a famosa Orquestra Vermelha — os quais conseguiram organizar um notável conjunto de "pianistas", nome dado aos agentes operando em território ocupado pelo inimigo a partir do teclado de aparelhos de rádio clandestinos. As informações veiculadas, em código, foram muitas vezes determinantes na evolução dos acontecimentos. Redes de "pianistas" acabaram, de resto, por ser montadas por todos os países beligerantes.


Na Europa, assolada pelas tropas alemãs, a Rádio tinha, portanto, prioridade. Era o meio de comunicação por excelência. A tal ponto que a II Guerra Mundial ficaria conhecida como a Guerra da Rádio.


Nesta conjuntura, segundo Hale, em termos técnicos, de propaganda e de objectivos, a propaganda radiofónica norte-americana teve mais coisas em comum com o modelo comunista do que com as alternativas nazis ou da BBC:


"A Voz da América, Rádio Liberdade, a Rádio Europa Livre, a rede das Forças Norte-Americanas, e a Rádio do sector Norte-Americano (RIAS) operam com fundos oficiais veiculados através de diversos canais. A sua política é fixada por um conjunto de directivas (...) apoiado num forte compromisso ideológico: a verdade a transmitir é uma verdade conscientemente norte-americana-democrática-anticomunista."(8)


A participação da BBC na guerra das ondas foi diferente. Os ingleses evitaram abusar da retórica ideológica marcante dos discursos soviético e americano e, por maioria de razão, afastaram-se diametralmente do discurso eriçado de lanças, sangue e espadas dos nazis. A objectividade da BBC pode ou não ter sido um mito cuidadosamente cultivado. O que não é um mito é a sua reputação de dizer a verdade. Durante e depois da guerra. Sir Hugh Greene, o organizador dos programas da BBC para a Alemanha, pôs em prática o seguinte modelo básico:


"...dizer a verdade dentro dos limites da informação disponível, e dizê-la de uma forma consistente e franca. Isto supunha a decisão de não desvalorizar um fracasso. (...) Deste modo, o nosso público na Alemanha, bem como as tropas alemãs, tendo-nos ouvido falar com franqueza das nossas derrotas, acreditar-nos-ia quando falássemos das nossas vitórias; esperava-se, assim, que a capacidade de resistência deles ante uma situação desesperada haveria de diminuir eficazmente."(9)


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George Orwell trabalhou em propaganda na BBC entre 1941-43. Essa experiência foi decisiva para "1984", a sua obra mais conhecida. Ideias como a "novilíngua" e o "duplo pensar" são também tributárias desse tempo. De algum modo, Orwell põe em causa o mito criado em torno do serviço público de rádio britânico. Foto: BBC

É problemático concluir se as transmissões da BBC desmoralizaram as tropas alemãs, mas não restam dúvidas quanto ao facto dessas transmissões lhe terem granjeado uma reputação de credibilidade. Aliás, a BBC foi a única estação a evitar a utilização de locutores de nacionalidade alemã, de modo a impossibilitar a identificação do programa como a voz dos traidores...


No começo da II Guerra Mundial vinte e seis países tinham serviços internacionais de Rádio. A Alemanha emitia em trinta e seis línguas, a União Soviética em vinte e duas, a BBC batia toda a concorrência emitindo em trinta e nove línguas diferentes. Durante o conflito este esforço acentuou-se a ponto de, no início de 1945, os alemães reivindicarem emissões em cinquenta e duas línguas.


Adriano Duarte Rodrigues afirma que no período compreendido entre 1939-45 a Rádio desempenhou, pelo menos, três funções militares imprescindíveis: "a de arma de desmoralização do adversário, a de apoio moral às populações e às tropas, a de elo de ligação com os combatentes entrincheirados em território inimigo ou com os resistentes isolados."(10)


Paul Virilio diria que "abater o adversário é menos capturá-lo do que cativá-lo, é infligir-lhe, antes da morte, o espectro da morte."(11)


A Rádio também cumpriu essa função.


ORIGEM DOS MEDIA, HISTÓRIA DAS ARMAS


Não há técnica militar sem dispositivos de sideração neutralizadora do adversário. Voltando a citar Duarte Rodrigues, "sideração é o processo de estupefacção provocado pelos dispositivos sensoriais do ruído uniforme e cadenciado tanto da marcha compacta do exército como do estrondo das armas e do clarão que torna diáfana a transparência das coisas e dos corpos."(12)


Os media podem operar nesse sentido. Diáfanas são as imagens de Televisão. Durante a Guerra do Golfo foram veiculadas em catadupa. Muita vezes, apareceram repórteres fazendo o relato de acontecimentos em directo. Porém, agora e à distância, sabe-se como a lógica da guerra mediática determinada pela instância militar se sobrepôs à lógica informativa baseada nos critérios jornalísticos. Obteve-se um efeito muito semelhante ao efeito de sideração visando, neste caso, não apenas desmoralizar o inimigo, mas também ganhar a opinião pública através da mitificação da realidade, reduzindo a guerra à dimensão dos jogos de computador.


O tempo passado diante do pequeno ecrã como que se retraía entre um passado que fugia sem cessar, não podendo ser retido, e um futuro que se aproximava sem, todavia, permitir ao espectador apropriar-se dele, visto ter sido construído com o único intuito de o surpreender.


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17 de janeiro de 1991, a Tempestade do Deserto, início da primeira guerra do Iraque. O fascínio da Televisão enquanto vídeojogo. Foto: Encyclopaedia Britannica

Perturbador é o facto de ter sido impossível contrariar o turbilhão de imagens e de informações contraditórias originadas no cenário de guerra a partir de uma intervenção jornalística consequente, ou seja, afinal as armas dos jornalistas dos meios audiovisuais revelaram-se inadequadas para ultrapassar o intuito de fazer deles meros mensageiros, peças de uma engrenagem avassaladora orientada no sentido da propaganda, mitigada, embora, (e nem sempre) pela presença em estúdio de especialistas em diversas áreas. Faz sentido, por isso, dizer com Duarte Rodrigues:


"O instrumental bélico é revelador da tecnologia moderna; ao mesmo tempo que utiliza os inventos disponíveis ligados ao domínio da percepção sensorial, nomeadamente os media visuais e auditivos, associa-se à sua lógica a ponto de acabar por produzir a sua própria tecnologia. Não admira, por isso, que a fotografia, o cinema, o megafone, a telefonia, o telégrafo, a televisão tenham sido logo associados desde os primeiros tempos ao campo militar. A história, senão a origem dos media, depende em grande parte da história das próprias armas."(13)


A TEORIA "HIPODÉRMICA" REVISITADA


Os factos enunciados a propósito da explosão dos media e, em particular da Rádio, aliados à conjuntura internacional, foram responsáveis pelo aparecimento de numerosos estudos de um modo ou de outro relacionados com a comunicação. Nos anos 20 e 30 já havia estantes repletas de livros chamando a atenção para os elementos retóricos e psicológicos utilizados pelos propagandistas. São dessa época obras hoje consideradas clássicas como Public Opinion, de Lippmann, The Rape of the Masses, de Chakhotin, Psychology of Propaganda, de Doobs e Propaganda Technique in the World War, de Lasswell. Os media eram, então, olhados como meros suportes de mensagens, as quais, uma vez atingidos os destinatários, produziam efeitos persuasivos, condicionando o seu comportamento.


Não cabe aqui uma análise pormenorizada deste ponto de vista. Importa, no entanto, reter o aspecto da crença no poder dos media apoiada numa "teoria" da sociedade de massa e num modelo de comunicação operativo a partir de uma teoria psicológica da acção, o behaviourismo. Resumindo:


"Se as mensagens da propaganda conseguem alcançar os indivíduos que constituem a massa, a persuasão é facilmente 'inoculada'. Isto é, se o alvo é atingido, a propaganda obtém o êxito que antecipadamente se estabeleceu."(14)


Era a teoria "hipodérmica" ou "bullet theory" como lhe chamou Schramm, uma teoria da propaganda e sobre a propaganda.


O modo de pensar os media está, portanto, ligado às circunstâncias históricas. Nesse contexto se inscreve a teoria "hipodérmica”, bem como à evolução tecnológica, ela própria determinante de novas paisagens civilizacionais. Pois bem, as questões relacionadas com a propaganda, agora redimensionada e sensorializada pelos meios electrónicos, voltaram à primeira linha das preocupações dos especialistas. Por exemplo, no que respeita aos jornais televisivos.


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Paul Virilio: "As armas bélicas estão intimamente associadas as armadilhas dos media que simulam a realidade e prendem os beligerantes nas suas teias sensoriais. Guerra e media convertem-se numa gigantesca máquina de gestação de efeitos especiais, de desrealização, o que não impede que funcionam segundo uma lógica hiper-real.". Foto: Thought Leader

TELEJORNAL?


O telejornal é constituído por um conjunto de temas debitados a alta velocidade e organizados de determinada maneira, prosseguindo objectivos previamente determinados, tal como na propaganda. O Telejornal não exige reflexão por parte do espectador, o qual pouco retém daquilo que viu e ouviu. Simplesmente, o Telejornal vai para o ar todos os dias veiculando sempre os mesmos pontos de vista, eventualmente com novas roupagens de modo a sugerir a ideia do novo, e projectando os estereótipos que hão-de permitir ao espectador proceder ao reforço das suas crenças e à construção dos seus mitos. É, novamente, o que se passa com a propaganda.


Segundo Aor da Cunha, o telejornal não cumpre a função de noticiar ou divulgar factos respeitantes à sociedade, reflectindo-a. Pelo contrário, a função do Telejornal é a de "moldar, esticar ou comprimir imagens com textos que reproduzam a vida política, social, cultural e económica à sua maneira, conforme critérios ideológicos e particulares do momento não só dos jornalistas, mas também segundo os proprietários de emissores e dos seus patrocinadores da indústria e do comércio. Quando a Televisão mostra o excepcional, diferente, estranho, curioso, insólito rompe a estabilidade psíquica do telespectador e ameaça sua 'consciência feliz'."(15)


A ser assim, o jornalista aparece como intérprete de uma actividade meramente metafórica, ou seja, não é mais o agente em busca de notícias, o repórter, mas o intermediário entre propagandista e o propagandeado, uma pequena peça de engrenagem dos factos agendados e noticiados de acordo com estratégias no seio das quais os chamados critérios jornalísticos funcionam como álibis de uma propaganda global.


O repórter move-se, pois, no terreno de uma ambiguidade resultante da convergência de múltiplos factores, entre os quais a (in)definição do que sejam as notícias no serviço da agenda.


A imagem que a população acaba por constituir do seu próprio país e do país dos outros é fortemente influenciada pelas notícias as quais, segundo Aor da Cunha, cumprem "uma finalidade não incomodante, não provocadora de tensão", ao mesmo tempo que conseguem "fazer a industrialização da cabeça."(16)


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Fonte: Anonymous ART of Revolution

(Continua)



Notas remissivas


1. KATZ, E., LAZARSFELD, P.

Personal Influence: The Part Played by People in the Flow of Mass Comunications, Free Press, New York, 1955. Mauro Wolf, em "Teorias da Comunicação", editorial Presença, Lisboa, 1987, chama a atenção para o facto da comunicação em duas etapas, tal como foi formulada, ter sido posta em causa após a Televisão se ter transformado no medium dominante: "É provável, por isso, que a maior parte das mensagens das comunicações de massa seja recebida de uma forma directa, não necessitando, para ser difundida, do nível de comunicação interpessoal: esta apresenta-se como 'conversa' acerca do conteúdo dos mass media (opinion-sharing) mais do que como instrumento da passagem da influência da comunicação de massa para os destinatários (opinion-giving)".

2. SCHILLER, Herbert I.

O Império Norte-Americano das Comunicações, Editora Vozes, Petrópolis, 1976

3. Ibidem

4. COSTELLA, António

Comunicação - Do Grito ao Satélite, Editora Mantiqueira, São Paulo, 1984

5. BESSY, Maurice

Orson Welles, Editorial Presença, Lisboa, 1965

6. HALE, Julian

Radio Power - Propaganda and International Broadcasting, Eleks Books Limited, London, 1975

7. Ibidem

8. Ibidem

9. Ibidem

10. RODRIGUES, Adriano Duarte

Estratégias da Comunicação - Questão Comunicacional e Formas de Sociabilidade, Editorial Presença, Lisboa, 1990

11. Ibidem

Duarte Rodrigues cita Virilio, Guerre et Cinéma 1. Logistique de la Disparition, Paris, Galilée, 1984. Para Virilio, "a primeira vítima de uma guerra é o conceito de realidade". Acrescenta Rodrigues: "As armas bélicas estão intimamente associadas as armadilhas dos media que simulam a realidade e prendem os beligerantes nas suas teias sensoriais. Guerra e media convertem-se numa gigantesca máquina de gestação de efeitos especiais, de desrealização, o que não impede que funcionam segundo uma lógica hiper-real."

13. Ibidem

14. SCHRAMM. Wilbur

The Process of Effects of Mass Comunication, University of Illinois Press, Chicago, 1972

15. AOR DA CUNHA, Albertino

Tele-Jornalismo, Editora Atlas S.A., São Paulo, 1990

16. Ibidem



 
 
 
  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 16 de dez. de 2020
  • 8 min de leitura

Atualizado: 20 de out. de 2023


Este texto resulta basicamente de um dos capítulos da minha tese de doutoramento Viagem pelo(s) Documentário(s). Reporta a acontecimentos com cerca de 20 anos, o que, desde logo, obriga numa visão atual a um esforço de distanciamento. Há, como não podia deixar de ser, informações datadas e até desatualizadas. A leitura, tantas vezes solicitando a consulta de anexos e documentos tão numerosos que seria impossível tê-los aqui presentes, pode suscitar alguma dificuldade. Para mais, sendo a publicação feita em blocos, dada a extensão do trabalho, as notas remissivas acabaram sendo alteradas. No entanto, aquilo que me parece fundamental, é a reflexão levada a cabo quer para efeito da concretização da Odisseia nas Imagens quer para a avaliação sistemática que dela foi sendo feita. Nesse sentido, tratando-se, que eu saiba, da única tese de doutoramento que envolve o Porto 2001- Capital Europeia da Cultura, pareceu-me oportuno dar a conhecer os seus traços fundamentais e, desse modo, suscitar algumas questões que continuam a parecer-me pertinentes em termos da definição de políticas culturais - quero acreditar que ainda faz sentido falar em políticas culturais. Por isso, à medida em que for recolhendo os elementos essenciais, irei acrescentando textos a este texto. É com gratidão que verifico que, ao fim e ao cabo, aqui e ali, sobretudo na área do ensino superior, há marcas da Odisseia na Imagens, mesmo que nenhuma referência lhe seja feita. Para os interessados, fica então este ponto de encontro, o qual não teria sido possível sem os magníficos colaboradores que tive a sorte de ter e com quem muito aprendi. Nota final: entre os 10 eventos tidos por mais relevantes da Programação Cultural do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura, dois são do âmbito da Odisseia nas Imagens: O Olhar de Ulisses e Violência e Paixão - Uma Retrospectiva dos Filmes de Luchino Visconti. Neste texto, começa a falar-se do ponto de partida da Odisseia nas Imagens. Esse ponto de partida teve em linha de conta o legado do cinema feito no Porto, o papel estruturante dos festivais de cinema e da RTP, bem como a articulação com as escolas de Ensino Superior por forma a promover os cursos de Imagem e Som. Por agora, um curto resumo da História do Cinema Português no Porto.


(Continuação da Odisseia nas Imagens II)


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Manoel de Oliveira, uma presença recorrente na Odisseia nas Imagens. Fonte: RTP-Arquivos

Ponto de partida da Odisseia nas Imagens


Na declaração de abertura contida no Relatório de Avaliação Final elaborado pelo responsável da Odisseia nas Imagens, afirma-se:


“O ponto de partida para a Programação de Cinema Audiovisual e Multimédia da Sociedade Porto 2001 foi, no âmbito do quadro conceptual definido para o evento Capital Europeia da Cultura, a prestação de um serviço público a partir do qual pudesse equacionar-se a projecção da visibilidade da cidade e da região em função de uma área estratégica, ou negligenciada pelos vários poderes ou encarada numa perspectiva meramente instrumental e à margem do que são hoje os requisitos a partir dos quais se pensam as políticas do audiovisual. Pretendeu-se, pois, lançar as bases de um debate no sentido de indagar qual o papel do Porto no panorama do audiovisual português promovendo, simultaneamente, as bases de uma política descentralizada nesse domínio, bem como as possibilidades de integração de uma produção local na esfera do mercado global. Nessa medida, toda a Programação foi construída em torno de um evento de grande potencial de inovação, pluridisciplinar, de carácter estruturante e de longa duração denominado Odisseia nas Imagens [1]”. 


Porém, até chegar ao conceito da Odisseia nas Imagens foi necessário percorrer um longo caminho de identificação prévia do sector e dos seus protagonistas, em particular da RTP, bem como recuperar a tradição do Porto na História do Cinema Português, aliás, nascido na cidade pela mão de Aurélio da Paz dos Reis. Importava, por isso, reconhecer um conjunto de episódios suficientemente relevantes para serem invocados como factores de legitimação das propostas que viessem a ser apresentadas [2]. Nesse sentido, deviam ser tidos em conta o passado remoto e recente, o presente, os principais criadores, as universidades, os festivais de cinema da área metropolitana do Porto e o serviço público de televisão, neste caso por forma a escrutinar e desafiar o seu papel regulador no quadro de uma paisagem audiovisual prospectivamente descentralizada. 


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Porto, cidade de imagens. Foto da inauguração da Livraria Lello, em 3 de janeiro de 1906, da autoria de Paz dos Reis. Fonte: Observador

O Porto na História do Cinema Português


A História do Cinema Português passa pelo Porto, mas, salvo um ou outro episódio, a cidade foi sempre periférica em relação à produção global do País. A par do pioneirismo de Paz dos Reis e das experiências da Invicta Film e da Caldevilla Film, já destacados em capítulos anteriores, cumpre chamar a atenção para o papel desempenhado por algumas revistas que surgiram no período áureo correspondente ao ciclo do Porto, para a tradição cineclubista que ganhou peso a partir do final dos anos 50 e que viria a estar ligada à luta política de resistência à ditadura e para algumas figuras cujo expoente é Manoel de Oliveira. Numa fase posterior à Revolução de Abril vieram os festivais de cinema.


Durante algum tempo as revistas especializadas tiveram expressão relevante. O Porto Cinematográfico, fundado em 1919 por Alberto Armando só viria a extinguir-se em 1925. Em 1923, acompanhando de perto a actividade da Invicta Film, Roberto Lino fundou a Invicta Cine, a qual foi publicada regularmente até 1936. Qualquer das revistas investiu no apoio ao cinema português, sem perder de vista aquilo que ia pelo mundo e dedicando parte do seu espaço à crítica. A Invicta Cine envolveu-se na polémica que envolveu o advento do som assumindo um papel pioneiro em sua defesa. Foi devido ao entusiasmo de alguns dos seus responsáveis “que se criou, no Porto, a primeira associação cinematográfica, pioneira do futuro movimento cineclubista [3]”. Essa Associação dos Amigos do Cinema, fundada em 1924, apesar de relativamente limitada na acção que desenvolveu, propunha-se “defender o cinema nacional, moralizar o cinema por meio da palavra escrita ou falada, fomentar o entusiasmo pela Arte do Silêncio e produzir películas logo que a situação financeira o permitisse [4]”.


O movimento cineclubista teve o seu momento mais alto nos anos 60. Desde o final da Invicta Film até essa altura a produção deixara praticamente de existir, salvo algumas raras excepções. As mais notáveis são dois filmes de Oliveira Aniki-Bóbó (1941) – uma obra forte a ponto de ainda hoje ser parte do imaginário do Porto – e O Pintor e a Cidade (1956), uma curta-metragem de cunho documental que tem como ponto de partida as aguarelas de um artista muito conhecido, António Cruz, porventura o maior aguarelista português. Em qualquer dos filmes, muito diferentes entre si, o Porto tem uma presença filtrada através do olhar do cineasta que descobre nele características peculiares como, aliás, acontecera já com Douro, Faina Fluvial. Episodicamente, um ou outro realizador rodou cenas de filmes no Porto, mas sem que isso correspondesse a algum interesse particular de descoberta. Manuel Guimarães, porém, com a Costureirinha da Sé (1958), inteiramente rodado na cidade, embora seguindo a fórmula então em voga das operetas que serviam para fazer aparecer na tela os cançonetistas mais populares, conseguiu fazer passar um retrato sociológico da população da sua zona histórica. Já O Passarinho da Ribeira (1959) de Augusto Fraga nada trouxe de relevante.


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Aniki-Bóbó (1942) de Manoel de Oliveira

Nos anos 60 o Cineclube do Porto, através da sua Secção de Cinema Experimental, começou também a produzir alguns filmes. Lopes Fernandes filmou o Auto de Floripes (1960), um ritual popular da aldeia das Neves, em Viana do Castelo, mas, de um modo geral, essa produção não deu lugar a outras obras relevantes embora se discuta o seu valor enquanto documento. Em contrapartida, Manoel de Oliveira fez a partir do Porto mais três curtas-metragens que são outras tantas obras-primas do cinema português: O Acto da Primavera (1962), eventualmente inspirado no filme de Lopes Fernandes, que foi seu assistente neste filme, A Caça (1963) e as As Pinturas do Meu Irmão Júlio (1965). Nesta altura, o Cineclube do Porto era já o mais importante do País, sendo Henrique Alves Costa a sua figura mais destacada. Foi ele o artífice, em 1967, da Semana do Novo Cinema Português, evento que contou com a presença da maioria dos jovens realizadores e cujas conclusões viriam a ter uma importância determinante no futuro da cinematografia nacional.


Com o passar dos anos, após a Revolução de Abril de 1974, a actividade do Cineclube do Porto, minada por disputas partidárias e incapaz de se adaptar a um cinema que ia colocando novos desafios, foi esmorecendo. Houve ainda uma cisão que deu origem ao Cineclube do Norte, mas ao tempo da Capital Europeia da Cultura, ambas as instituições tinham uma presença meramente residual no contexto da vida cultural portuense.   


Se durante o período do cinema mudo a produção fora relevante a verdade é que “em 70 anos de cinema sonoro, apenas 14 longas-metragens (o que dá um filme por cada 5 anos!) escolheram a cidade como tema e cenário da intriga. Dessas, três são da autoria de Saguenail, um realizador de origem francesa que vive e fez a sua obra no Porto, e que é, por sinal, um dos mais interessantes, originais e desconhecidos autores que alimentaram o imaginário cinematográfico português [5]”.


Feitas as contas, pensando em filmes indissociáveis do imaginário da cidade, sobram meia dúzia de títulos e de entre todos destacam-se três filmes de Oliveira Douro, Faina Fluvial, Aniki-Bóbó e O Pintor e a Cidade. Qualquer deles faz parte do património monumental do Porto, mas o primeiro é algo de inseparável da sua memória e do seu imaginário [6]. Depois da pateada na estreia em 1931, apesar dos elogios da crítica estrangeira e de alguns dos mais destacados intelectuais portugueses, como José Régio [7] e Adolfo Casais Monteiro, Douro, Faina Fluvial só viria a ser reposto em sala em 1934, no Teatro de São João do Porto, como complemento do filme Gado Bravo, de António Lopes Ribeiro, onde foi, então, espontânea e prolongadamente aplaudido.  


Mais tarde, Oliveira esteve de passagem pelo Porto, nomeadamente em Inquietude (1988), Paulo Rocha filmou O Rio do Ouro (1998) e António Pedro Vasconcelos em Jaime (1999) voltou a colocar a cidade no centro das atenções. Um ou outro cineasta estrangeiro também passou pelo Porto, mas nenhum deles realmente interessado na sua identidade. John Malkovitch, por exemplo, encontrou nele ambientes urbanos semelhantes aos da América do Sul e em The Dancer Upstairs (2000) algumas ruas da cidade passaram a fazer parte do Peru e do Equador.  


A Revolução de Abril tinha, entretanto, aberto as portas a outras iniciativas, entre as quais há a destacar o aparecimento dos festivais de cinema, os quais, sobretudo no caso do cinema de animação, viriam a ter impacto numa produção local cujo desenvolvimento foi acompanhado da obtenção dezenas de prémios conquistados nos principais festivais de todo o mundo.


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(Continua)

Notas remissivas

[1] . Relatório de Avaliação Final do Departamento de Cinema Audiovisual e Multimédia da Sociedade Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura, sem páginas numeradas. [2] . A este propósito ver o Capítulo II – pp.117-125. - Nota do Autor [3] . Costa, Alves – Breve história do cinema português – 1896-1962, Biblioteca Breve, Instituto de Cultura Portuguesa, Ministério da Educação e da Investigação Científica, Lisboa, 1978. [4] . ibid. [5] . Vasconcelos, António Pedro in Andrade, Sérgio C. – O Porto na História do Cinema, Porto Editora/Porto 2001, 2002, p. 7. [6] .  Vale a pena retomar em pormenor o que foi a estreia do filme no Salão Foz, em Lisboa, no decorrer do Congresso Internacional da Crítica: “Esta ante-estreia foi um escândalo. Perante a surpresa dos congressistas estrangeiros, os espectadores portugueses, na sua maioria, vaiaram ruidosamente o filme. O tema, o ritmo, a montagem rápida de algumas sequências, irritaram o público (em grande parte selecto e burro). A projecção foi sublinhada com constantes assobios e terminou com uma estrondosa pateada. Ao intervalo e, ainda, já terminado o espectáculo, muitos espectadores e alguns dos críticos (!?) portugueses ferviam de indignação: ‘um sem jeito aquelas imagens vertiginosas! uma vergonha mostrar a estrangeiros aquelas mulheres enfarruscadas, com carretos de carvão à cabeça, de pé desclaço... aquelas nojentas vielas do Porto... aqueles prédios leprosos do Barrêdo’ (Parece que ninguém se indignou por existirem aquelas desumanas condições de trabalho dos carregadores do porto... parece que ninguém se indignou por se viver ainda em péssimas condições de habitação e salubridade no velho, degradado e populoso bairro do Barrêdo...)” - in Costa, Alves, op. citada, p. [7] . De Douro, Faina Fluvial disse Régio: “A moderna poesia do ferro e do aço, o encanto da natureza através dos seus vários aspectos e ‘nuances’, a tonalidade das horas, a alegria e a miséria do homem sócio do animal na luta pelo pão de cada dia – tudo, ao longo de um dia de actividade na margem do Douro, nos é dado com verdadeira grandeza. Precioso como documentário o ‘Douro’ excede assim, e em muito o valor dum mero documentário”. – Andrade, Sérgio C. – O Porto na História do Cinema, Porto Editora/ Porto 2001, 2002, p. 46.




 
 
 
  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 16 de dez. de 2020
  • 6 min de leitura

Atualizado: 18 de dez. de 2020

Este texto tem quase 30 anos e tem por base um trabalho académico da altura. Foi publicado num livrinho chamado A Caixa Negra e é sobre a Televisão. Depois de o recuperar e reler, apesar do tempo passado, penso que ainda terá alguma utilidade até porque a memória permite pensar o presente. Reflete sobre o trabalho dos jornalistas e sobre as relações de poder. Nesse aspecto continua a fazer sentido. Abaixo do título, aparecia Discurso de um Jornalista sobre o Discurso da Televisão. É isso mesmo. O jornalista era eu.


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Fonte: Pjotr, Anonymous Art of Revolution


INTRODUÇÃO


A caixa negra é coisa de aviões. Pouco sei a seu respeito. Pelo que leio nos jornais trata-se de um instrumento no qual ficam registados os dados de um voo e, em caso de acidente, permite identificar as suas causas. Interessante seria descobrir os mecanismos do registo independentemente da contingência trágica do desastre. Para mim, a caixa negra tem uma vaga ressonância da caixa de Pandora. Ou seja, encerra em si mesma um sentido metafórico cujo alcance se mede a partir de uma outra contingência, esta radicando no facto do autor destas linhas ser jornalista de Televisão, a qual, como se sabe, suscita todas as curiosidades e todas as cobiças, voando muitas vezes sem respeitar as normas de segurança, logo, incorrendo no risco de se despenhar com tripulação e passageiros a bordo. O que seria desagradável, acrescente-se, mas não de todo improvável se atentarmos nos desenvolvimentos da corrida à conquista de audiências legitimada por agendas de poder e pela sacralização do capital.


Um pouco como quem viaja de avião há sempre um momento em que as pessoas se interrogam: e se isto caísse? Normalmente, não cai, nem essas coisas nos acontecem a nós, acontecem quase sempre aos outros. Mas essa pergunta, por sinal insidiosa, persiste ao nível do subconsciente e é, em razoável medida, uma consequência, por um lado, da consciência da falibilidade da técnica e, por outro, do desconhecimento das regras do voo.


Ora é justamente sobre as regras que me interrogo. O resto é aleatório, não depende de mim.


Portanto, a Caixa Negra. Admito que este adjectivo, negra, possa sugerir a presença de um território transcendente da mera problemática das linguagens, induzindo um juízo crítico pessimista. Na verdade, não é bem assim, embora, como se verá, se tenha evitado pactuar com a indulgência perante factos só por si suficientes para transformarem a Televisão num caixote de lixo. Procurei, no entanto, não perder de vista as espantosas possibilidades em aberto tendo em conta que, afinal, o saber exige a consciência de erro e a dimensão de sentido ético.


Sendo trabalho de um jornalista, a Caixa Negra acaba obviamente por reflectir uma experiência profissional de um número de anos não negligenciável, sobretudo na Televisão, mas também na Imprensa e na Rádio. E sendo o jornalista essencialmente um repórter é igualmente perceptível, no plano formal, a presença de algumas técnicas jornalísticas, designadamente da reportagem. É o caso do recurso ao chamado "elemento humano", o qual facilita a leitura de assuntos, por vezes áridos, através da identificação de personagens indissociavelmente ligadas ao mundo da comunição.


Também por via da minha formação profissional adoptei para o texto uma estrutura mosaico, na qual, espero, da interacção das partes possa resultar uma unidade global. O texto comporta um preâmbulo, cinco capítulos e um epílogo, articulando-se em torno de um núcleo central respeitante à linguagem. Esta, porém, é encarada através de uma abordagem tanto quanto possível diacrónica, por forma a integrar a complexidade dos problemas que hoje se põem ao exercício de uma profissão cada vez mais exigente. Daí a relevância atribuída a fenómenos como a propaganda, às relações entre o Poder e a Informação, bem como a algumas teorias da comunicação social, cujos paradigmas permitem ilustrar os contornos dos episódios mediáticos enunciados.


Por razões de legibilidade e de lisibilidade do texto optei por traduzir para Português diversas citações. As traduções são, portanto, da minha responsabilidade. Na bibliografia e notas dou conta, apenas, de publicações efectivamente consultadas.


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Segundo Umberto Eco existem várias hipóteses de empenhamento psicológico do espectador. “...vão do distanciamento crítico mais completo (a pessoa que se levanta e se vai embora aborrecida), ao juízo crítico que acompanha a fruição, ao abandono inadvertido a uma evasão responsável, até à participação, à fascinação ou (em casos patológicos) à hipnose propriamente dita”. Fonte: Criática


PREÂMBULO:

“Freud dificilmente poderia curar um esquimó. Mas, perante um adolescente dos nossos dias, estaria totalmente desarmado. Como invocar a história individual de alguém que apenas viu o efémero?" - Tony Schwartz

IMAGENS, SONS: IDEIAS

Em Televisão contam as imagens, os sons, a espectacularidade. Pelo menos, por agora, é assim. No nosso estádio civilizacional exige-se o espectáculo encenado a partir da articulação de signos audio-scripto-visuais, na expressão de Jean Cloutier (1), os quais jogam essencialmente nos grandes planos, num ritmo de edição de imagens acelerado, em textos curtos, quase telegráficos, e em sons de diferentes intensidade, consoante a intenção expressiva que lhes for atribuída. Mensagens assim codificadas, ainda que alegadamente se possam justificar invocando as características do medium, deixam pouco tempo para pensar. Por isso, a classe política, por exemplo, prefere a metáfora, a qual permite a fácil transposição do discurso para o plano da recriação imagética, ou seja, a visualização da palavra. Um aparte acutilante e uma performance adequada vencem qualquer óptima ideia formulada em termos desajustados à natureza do meio.


O espectador do futuro poderá, porventura, vir a estabelecer um relacionamento diferente com a Televisão dando preferência ao espectáculo do pensamento, à força dos argumentos no quadro da sabedoria de uma humanidade tolerante, a qual, à semelhança dos antigos gregos, encontraria prazer na arte de pensar. Não é certo, porém, que isso venha a acontecer, pelo menos, não nestes termos. Na verdade, uma civilização não pode definir-se independentemente do seu sistema de difusão e, como tal, não é previsível a possibilidade de existência de uma cultura em si, a priori, ideal. Existem, sim, culturas moldadas pelos meios de comunicação, adaptadas a eles, e das quais os media são o elemento determinante. Logo, o futuro será sempre condicionado por esta lógica sistémica, intrínseca.


Umberto Eco adverte que "a civilização democrática salvar-se-á unicamente se da linguagem da imagem se fizer um estímulo à reflexão crítica e não um convite à hipnose."(2) E Jean Baudrillard sustenta que a "comunicação de massa não nos fornece a realidade, mas a vertigem de realidade."(3) Segundo ele, as relações dos indivíduos com os media configuram uma situação de recusa do real, baseada na apreensão ávida e na multiplicidade dos seus signos. Este ponto de vista está relacionado com aquilo a que alguns autores chamam


A DITADURA DOS INSTANTES


Baudrillard afirma que ao indivíduo seria necessária a violência e inumanidade do mundo exterior para que a segurança não só se experimente como tal, com maior profundidade, mas também para que se sinta justificada em si mesma: uma espécie de economia moral de salvação. Diz ele, aludindo à violência na televisão:


"A quotidianidade como enclausuramento, como Verborgenheit, seria insuportável sem o simulacro do mundo, sem o álibi de uma participação no mundo. Tem necessidade de alimentar-se das imagens e dos signos multiplicados da vertigem da realidade e da história. A sua tranquilidade precisa, para se exaltar, de uma perpétua violência consumida. Tal é a sua obscenidade. É gulosa de acontecimentos e de violência, contanto que lhe seja servida em casa.(4)


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Jean Baudrillard: “A quotidianidade como enclausuramento seria insuportável sem o simulacro do mundo, sem o álibi de uma participação no mundo (...) precisa, para se exaltar, de uma perpétua violência consumida. Tal é a sua obscenidade. É gulosa de acontecimentos e de violência, contanto que lhe seja servida em casa.” Fonte: The Irish Times

Outro autor, Tony Schwartz — guru dos comerciais da Televisão americana — defende uma lógica mediática, decorrente do modo de operar dos meios de comunicação, no interior e a partir da qual se perspectivariam as questões sociais. A propósito da Televisão, Schwartz formula uma ideia curiosa:


"Freud dificilmente poderia curar um esquimó. Mas, perante um adolescente dos nossos dias estaria totalmente desarmado. Como invocar a história individual de alguém que apenas viu o efémero?"(5)


Jacques Piveteau, por seu turno, num dos ensaios mais contundentes alguma vez publicados sobre a Televisão, afirma que ela se instala em nossas casas como um parente longínquo recebido por favor que gradualmente se transforma em pai de família autoritário, gerador de efeitos hemiplégicos no seio da família. Inibidora da vontade de agir sobre o mundo, a Televisão deveria a sua espectacularidade — em especial, a violência espectacular — à síntese da sua natureza tecnológica com os gostos por ela própria suscitados junto dos espectadores. Segundo Piveteau, "o espectacular transformou-se numa droga cujos efeitos não podem acalmar-se senão através do consumo sempre acrescido de doses cada vez maiores."(6)


(Continua)


Notas remissivas


1. CLOUTIER, Jean

A Era de EMEREC ou A Comunicação audio-scripto-visual na hora dos self-media, Instituto de Tecnologia Educativa, Lisboa, s/data

2. ECO, Humberto

Apocalípticos e Integrados, Difel, Lisboa (1991). Citando Cohen Séat, Eco mostra que existem várias hipóteses de empenhamento psicológico do espectador, "que vão do distanciamento crítico mais completo (a pessoa que se levanta e se vai embora aborrecida), ao juízo crítico que acompanha a fruição, ao abandono inadvertido a uma evasão responsável, até à participação, à fascinação ou (em casos patológicos) à hipnose propriamente dita". Prossegue Eco: "Ora parece que, ao contrário do que se pensa, as possibilidades de vigilância crítica são escassísimas, até nos profissionais que vão ao cinema na sua função de críticos (os quais geralmente só alcançam esse distanciamento, ao segundo visionamento do filme”; de facto, o espectador culturalmente dotado encontra--se a oscilar habitualmente entre uma vigilância muito branda e a participação, ao passo que as massas se deslocam de repente do fortuitismo inicial para um estado de participação--fascinação."

3. BAUDRILLARD, Jean

A Sociedade de Consumo, Edições 70, Lisboa , 1981

4. Ibidem

5. SCHWART, Tony

The Responsive Chord, Anchor Press/Doubleday, New York, 1973

6. PIVETEAU, Jacques

L'Extase de la Télévision, insep editions, Paris, 1984


 
 
 
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Imagens do Real Imaginado (IRI) do Instituto Politécnico do Porto foi o ponto de partida para o primeiro Mestrado em Fotografia e Cinema Documental criado em Portugal. Teve início em 2006. A temática foi O Mundo. Inspirado no exemplo da Odisseia nas Imagens do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura estabeleceu numerosas parcerias, designadamente com os departamentos culturais das embaixadas francesa e alemã, festivais e diversas universidades estrangeiras. Fiz o IRI durante 10 anos contando sempre com a colaboração de excelentes colegas. Neste segmento da Programação cabe outro tipo de iniciativas, referências aos meus filmes, conferências e outras participações. Sem preocupações cronológicas. A Odisseia na Imagens, pela sua dimensão, tem uma caixa autónoma.

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