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    Jorge Campos
  • 12 de dez. de 2020
  • 8 min de leitura

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Paulo Rocha, cineasta de Sereias (2001), uma encomenda da Porto 2001

Este texto resulta basicamente de um dos capítulos da minha tese de doutoramento Viagem pelo(s) Documentário(s). Reporta a acontecimentos com cerca de 20 anos, o que, desde logo, obriga numa visão atual a um esforço de distanciamento. Há, como não podia deixar de ser, informações datadas e até desatualizadas. A leitura, tantas vezes solicitando a consulta de anexos e documentos tão numerosos que seria impossível tê-los aqui presentes, pode suscitar alguma dificuldade. Para mais, sendo a publicação feita em blocos, dada a extensão do trabalho, as notas remissivas acabaram sendo alteradas. No entanto, aquilo que me parece fundamental é a reflexão levada a cabo quer para efeito da concretização da Odisseia nas Imagens quer para a avaliação sistemática que dela foi sendo feita. Nesse sentido, pareceu-me oportuno suscitar algumas questões que continuam a parecer-me pertinentes em termos da definição de políticas culturais - quero acreditar que ainda faz sentido falar em políticas culturais. Para os interessados, fica, então, este ponto de encontro, o qual não teria sido possível sem os magníficos colaboradores que tive a sorte de ter e com quem muito aprendi. Assinalo, desde já, que entre os 10 eventos tidos por mais relevantes da Programação Cultural do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura, dois são do âmbito da Odisseia nas Imagens: O Olhar de Ulisses e Violência e Paixão - Uma Retrospectiva dos Filmes de Luchino Visconti. Neste texto trata-se da consigna Pontes para o Futuro da Capital Europeia da Cultura.


(Continuação da Odisseia nas Imagens I)


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Aguarela de António Cruz, criador de imagens do Porto e protagonista de O Pintor e a Cidade (1956) de Manoel de Oliveira

Pontes para o Futuro


O desafio era difícil, entre outros motivos, porque havia pouco tempo para pôr a Capital da Cultura no terreno sendo certo, igualmente, que o lado mais conservador da cidade, ligado a fortes tradições que tinham de ser respeitadas e até valorizadas, podia vir a constituir-se como reserva de incompreensão face a uma programação cultural mais ousada e inovadora. Mas era, igualmente, aliciante porque se tratava de reforçar e introduzir práticas culturais cujas consequências se pretendia fossem para além de 2001, renovando o imaginário e contribuindo para a capacidade de afirmação da cidade junto de outras cidades europeias [1].


Acresce que o evento era encarado como uma ocasião única para levar a cabo um ambicioso projecto de reabilitação urbana. No relatório da Comissão Instaladora respeitante ao ano de 1998, afirmava-se:


“A vida e o consumo culturais, como factores efectivos de desenvolvimento não devem confundir-se com o uso pretextual das actividades genéricas de cultura para a legitimação póstuma do esvaziamento vivencial dentro da cidade. Em oposição à cidade marcada pelas grandes superfícies, caberá ao Porto 2001 propôr uma acção cultural que magnifique as vantagens de um conceito de cidade herdada e aprofunde o sentido de identidade sem historicismo nem contemplação. A consciência urbana passa, tanto pela genericamente chamada animação cultural, como pelo estímulo à criação em residência e em diálogo com os lugares da cidade. Daí a necessidade de um esforço comum entre a intervenção urbana que a capital estimulará e a Acção Artística [2]”.


Mais:


“2001 não deverá ser a activação de festividades que alimentem no Porto a ilusão de ser uma Capital Europeia de primeira linha, mas uma escolha estratégica de sobressaltos que nos coloquem perante a evidência lúdica das nossas ignorâncias, que estruturem novos desafios e novas rotinas, proporcionando-nos a sua fruição e a confrontação com eles próprios [3]”.


E ainda:


“2001 deverá activar o cruzamento de equipas e experiências internacionais em projectos que só no Porto possam acontecer. Substituir-se-á, assim, à inscrição conjuntural da cidade no obsessivo mercado internacional, a ideia de um lugar de projectos, de encontros e desencontros que ajudem a firmar os nossos valores como referência e desafio aos criadores, produtores e programadores estrangeiros, cuja rota passará a cruzar-se obrigatória e estruturalmente com a nossa [4]”.


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Nesta perspectiva, entendia-se que o Porto 2001 deveria privilegiar a construção de uma rede de relações inovadora tomando como ponto de partida os binómios cidadão/espectador, cidade/palco e criador/obra de arte, a qual permitiria reformular métodos de produção, realização e comunicação ligados à criação artística. Esta teria, portanto, a cidade como pano de fundo, no sentido em que a revitalização urbana de áreas estrategicamente identificadas era encarada como um modo de combater a exclusão de sectores da população tradicionalmente marginalizados no circuito da produção, realização e dos consumos culturais.


Da análise do conjunto de recomendações da Comissão Instaladora da Sociedade Porto 2001 visando conferir coerência metodológica à Programação ressalta o intuito reiterado de consolidar eventos já existentes, por um lado, e, por outro, a preocupação de criar novas iniciativas numa perspectiva de continuidade para além do horizonte temporal da Capital Europeia da Cultura [5].  


A construção dessas Pontes para o Futuro pressupunha, assim, a disponibilidade de uma cidade em movimento, sendo que a programação cultural teria necessariamente de integrar um conjunto complementar e diversificado de acções de formação a partir do qual pudessem surgir profissionais qualificados nas áreas da gestão cultural, da produção, da utilização de meios técnicos e da mediação especializada em comunicação, marketing e animação cultural. A necessidade deste tipo de formação impunha-se como uma evidência. Da iniciativa conjugada da autarquia e do governo central tinha anteriormente resultado um número apreciável de grandes e pequenos espaços culturais, todavia sem a necessária dotação de pessoal especializado, o que conduzira, pontualmente, não só a um sub-aproveitamento desses mesmos espaços, mas também a uma falta de profissionalismo comprometedora da boa execução dos projectos. A formação permitiria superar as deficiências abrindo perspectivas de trabalho qualificado a estudantes das escolas profissionais já existentes.  Admitia-se mesmo que “a criação de uma ‘bolsa’ de profissionais nas áreas atrás definidas pode vir a projectar-se para lá do objectivo inicial, gerando projectos privados nas áreas de carácter empresarial ligadas à cultura e ao lazer [6]”.


No seu Relatório a Comissão Instaladora abordava ainda aspectos respeitantes ao Envolvimento da População, à Comunicação e Marketing, a estudos sobre os públicos potenciais e a métodos de avaliação de resultados.


Em relação ao Envolvimento da População tratava-se basicamente de conceber um modo de atrair à programação as pessoas habitualmente arredadas dos espectáculos, exposições e outras actividades culturais, se necessário indo ao seu encontro na rua ou nos bairros. Para tanto, propunham-se essencialmente dois tipos de accções: “as que valorizem a participação das populações dos bairros na melhoria e animação dos seus espaços comuns, recriando tradições significativas da cultura popular com meios técnicos e financeiros acrescidos; as que, pela informação e sedução/provocação que transportem, possam induzir nos cidadãos a vontade de participarem em outros eventos incluídos na programação geral do Porto 2001, mesmo quando realizados noutras zonas na cidade e em equipamentos culturais a que habitualmente não acedem [7]”. Para levar a cabo estes propósitos recomendava-se o envolvimento de instituições públicas e privadas, como as escolas, clubes e associações, às quais deveria ser proporcionado acompanhamento técnico qualificado de modo a incentivar as iniciativas individuais ou de grupo.


Contava-se, também, com a acção de um gabinete de Comunicação e Marketing, ao qual, a par de promover o envolvimento da população, foi cometida a tarefa de planear a estratégia adequada a promover e dar visibilidade à Capital Europeia da Cultura quer no plano nacional, quer no plano internacional.


Reconhecia-se, finalmente, a necessidade do trabalho dos decisores, gestores e programadores assentar em dados concretos para efeito da definição de estratégias de comunicação e de captação de públicos. Nesse sentido, a Comissão Instaladora da Sociedade Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura decidiu encomendar estudos nesses domínios e propôs a criação de uma Comissão de Acompanhamento – entendida como um pólo de reflexão independente e distanciado –, à qual ficaria cometida a incumbência da elaboração de relatórios críticos e de pareceres fundamentados sobre matérias em relação às quais fosse chamada a pronunciar-se.


Do ponto de vista da Programação Cultural foram identificadas duas áreas de importância estratégica: a Música e o Audiovisual e Multimédia [8]. A aposta no Audiovisual e Multimédia, de acordo com o Relatório da Comissão Instaladora justificava-se fundamentalmente em função dos seguintes pressupostos:


“O inevitável percurso para a Sociedade da Informação torna cada vez mais importante a produção de ‘conteúdos’ em Portugal para salvaguardar a permanência da cultura portuguesa no Mundo (...) num momento em que o satélite, o cabo e a difusão terrestre digital aceleram os processos de globalização dos media e o seu impacto entre nós; a produção de conteúdos audiovisuais e multimédia para ser feita com a qualidade que garanta a sua eficácia e difusão internacional é um vasto campo de trabalho para criadores de todas as áreas das artes e das letras, para investigadores e técnicos qualificados, podendo fixar na cidade e área metropolitana a ‘massa crítica’ que tende a fugir-lhe e gerar a criação de organizações empresariais baseadas nesse trabalho eminentemente cultural [9]”.


Estes pressupostos, associados à ideia que aqui se retoma segundo a qual a programação deveria decorrer de uma “escolha estratégica de sobressaltos que nos coloquem perante a evidência lúdica das nossas ignorâncias, que estruturem novos desafios e novas rotinas [10]”, constituíram o ponto de partida para a explicitação da lógica da Programação da área Audiovisual e Multimédia, a qual fez do Documentário a opção prioritária.


Uma vez feita essa opção, por razões de coerência teórica e metodológica, considerou-se essencial valorizar o papel do Cinema, pelo que se entendeu alterar a designação da área para Cinema, Audiovisual e Multimédia, a qual viria, posteriormente, a ser conhecida por Odisseia nas Imagens.  


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Notas remissivas

[1]. A Programação Cultural da Sociedade Porto 2001, sob a coordenação de Manuela Melo, numa primeira fase, ficou a cargo de Álvaro Domingues (Relações Institucionais), Paulo Cunha e Silva (Ciência e Literatura; Relações com Roterdão), Pedro Burmester (Música), Miguel Von Haffe Pérez (Artes Plásticas), Jorge Campos (Cinema, Audiovisual e Multimédia), Isabel Alves Costa (Artes de Palco), João Teixeira Lopes (Envolvimento da População) e Júlio Moreira (Animação da Cidade). Posteriormente, as equipas iniciais foram reforçados com novos elementos. - Nota do Autor. [2] . Relatório da Comissão Instaladora da Sociedade PORTO 2001 S.A. de Setembro de 1998, sem páginas numeradas. [3] . ibid. [4] . ibid. [5] . É a seguinte a lista de recomendações avançadas no Relatório da Comissão Instaladora da PORTO 2001 S. A.: “- sedimentação de eventos e/ou áreas de criação já existentes (ou com potencialidades) na cidade, e criação de novos eventos cíclicos em áreas estratégicas, que nasçam com uma qualidade a manter depois de 2001”;  - fomento da criatividade dos artistas portugueses, através de encomendas, apresentação e divulgação do seu trabalho (inclusive em outras áreas geográficas, com destaque para Roterdão) e, sempre que possível, desenvolvendo no Porto projectos conjuntos com artistas de outros países;  - apresentação de produções inéditas, seja porque trazem à cidade pela primeira vez obras essenciais da cultura europeia e mundial, seja pelo carácter artístico inovador que transportam;  - valorização da cidade como espaço informal de contacto entre criadores e cidadãos, despertando o interesse global pela articulação activa nos projectos incluídos no Porto 2001;  - integração das programações específicas das diversas áreas, para que o programa global do Porto 2001 se desenvolva ao longo do ano harmonicamente, seja no que respeita à distribuição dos pontos altos, seja na sua ligação a projectos de menor dimensão que os possam amplificar (no campo dos criadores e dos públicos), seja ainda para, em cada momento, haver uma oferta diversificada, adequada às condições dos equipamentos culturais e dos espaços públicos que os ligam;  - articulação da Programação Porto 2001 com projectos de instituições culturais da Área Metropolitana do Porto, desde que se enquadrem no conceito global definido e se encontrem formas de co-financiamento fora do orçamento da Capital Europeia da Cultura;  - privilegiar eventos e actividades que potenciem a requalificação urbana também integrada no Porto 2001, com destaque para a revitalização da ‘baixa’, a criação de ‘circuitos culturais’ ancorados nos equipamentos e no património existente, o centro histórico, as frentes ribeirinha e marítima e espaços informais (fábricas, armazéns, jardins, pátios de bairros, etc.);  - estabelecer pontes entre a criação artística e o universo empresarial, para que a criatividade de designers, arquitectos, estilistas e artistas plásticos possa conferir a indústrias (tradicionais ou emergentes) uma marca própria de qualidade e contemporaneidade de que cada vez mais necessitam;  - não esquecer o carácter festivo e lúdico que toda a cidade deve apresentar ao longo do ano, para o que é necessário cuidado especial com a defesa (pelos cidadãos e pelas entidades responsáveis) do ambiente, nomeadamente com a limpeza de ruas e a renovação do imobiliário urbano, da qualidade do alojamento, restauração e locais nocturnos de diversão, da sinalização cuidada e cenográfica de obras, eventos e actividades diversas incluídas no Projecto Porto 2001”. - in Relatório da Comissão Instaladora da PORTO 2001 SA de Setembro de 1998, sem páginas numeradas. [6] . Relatório da Comissão Instaladora da PORTO 2001 SA de Setembro de 1998, sem páginas numeradas. [7] . ibid. [8] . O Relatório da Comissão Instaladora segue de perto, nesta matéria, o conteúdo das Linhas Gerais da Programação da Área Audiovisual e Multimédia in Anexo III pp. 15-23. - Nota do autor. [9] . Relatório da Comissão Instaladora da PORTO 2001 SA de Setembro de 1998, sem páginas numeradas. [10] . ibid.


(Continua)


 
 
 
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  • 12 de dez. de 2020
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Atualizado: 6 de ago.


George Heindrick Breitner - O Dam, 1891
George Heindrick Breitner - O Dam, 1891


na praça dam, amesterdam, com seus elegantes edifícios anunciando os mistérios do crepúsculo, ouço o rumor distante do silêncio e sinto a brisa gélida deste inverno onde tudo, porém, está certo, salvo, talvez, a tua ausência. penso na amável conjugação dos verbos mais secretos, num alvoroço de pássaros em lençóis desfeitos, mas esse estar presente diluído na ausência é apenas uma lua vaga nos sulcos do meu rosto. saberei, contudo, adivinhar-te, seja um relâmpago o bastante, e penso nisso, agora, na brasserie majestic, quando no outro lado da praça, no museu de madame tussau, vejo figuras de cera alinhadas no desconcerto do tempo espreitando os rigores do frio e procurando, quem sabe, iludir os ponteiros de um relógio quebrado ou ensaiar os passos de uma improvável valsa lenta. pouso, então, a luva da minha mão direita sobre o tampo da uma mesa, testemunha silenciosa de enigmas antigos que habitam as estações. lá fora há luzes que se acendem, flocos de neve soprados pelo vento, agasalhos quentes de cores diferentes, gentes caminhando seguras por entre bicicletas em rodopio desenhando sobre o gelo arriscados desenhos fulgurantes. gosto de amesterdão assim, desta neve e desta névoa, da espuma espessa da cerveja nos meus lábios, da surdina do trompete de chet baker, destas vozes ciciadas, da jovem de cabelo louro curto da mesa ao lado na serena expectativa de um amante anunciado. assim estou, apaziguado ou nem tanto, resguardado na bruma de mim mesmo, olhando aquela indecifrável luva como se um súbito calor, talvez relâmpago, me pudesse trazer a memória de um rosto iluminado por um sorriso ou o sobressalto dessa minha mão direita fascinada e interdita pelo sorriso desse rosto.


Jorge Campos

08/12/2011

 
 
 
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  • 11 de dez. de 2020
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Atualizado: 20 de out. de 2023


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Porto da Minha Infância (2001) de Manoel de Oliveira, uma encomenda de Odisseia nas Imagens - Porto 2001

Este texto resulta basicamente de um dos capítulos da minha tese de doutoramento Viagem pelo(s) Documentário(s). Reporta a acontecimentos com cerca de 20 anos, o que, desde logo, obriga numa visão atual a um esforço de distanciamento. Há, como não podia deixar de ser, informações datadas e até desatualizadas. A leitura, tantas vezes solicitando a consulta de anexos e documentos tão numerosos que seria impossível tê-los aqui presentes, pode suscitar alguma dificuldade. Para mais, sendo a publicação feita em blocos, dada a extensão do trabalho, as notas remissivas acabaram sendo alteradas. No entanto, aquilo que me parece fundamental é a reflexão levada a cabo quer para efeito da concretização da Odisseia nas Imagens quer para a avaliação sistemática que dela foi sendo feita. Nesse sentido, pareceu-me oportuno suscitar algumas questões que continuam a parecer-me pertinentes em termos da definição de políticas culturais - quero acreditar que ainda faz sentido falar em políticas culturais. Para os interessados, fica, então, este ponto de encontro, o qual não teria sido possível sem os magníficos colaboradores que tive a sorte de ter e com quem muito aprendi. Assinalo, desde já, que entre os 10 eventos tidos por mais relevantes da Programação Cultural do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura, dois são do âmbito da Odisseia nas Imagens: O Olhar de Ulisses e Violência e Paixão - Uma Retrospectiva dos Filmes de Luchino Visconti. Este primeiro texto, sendo de enquadramento geral, é indispensável para se compreender a estratégia global.


ODISSEIA NAS IMAGENS


Uma das debilidades reconhecidas da cidade do Porto e da sua área metropolitana reside na sua relação com os universos do cinema, do audiovisual e do multimédia, áreas da visibilidade simbólica por excelência. Essa debilidade, cujas raízes tanto se encontram na excessiva centralização do estado com reflexo nas políticas culturais, quanto na incapacidade dos agentes culturais, ligados ou não ao poder autárquico, para darem corpo às suas aspirações e reivindicações, acaba por afectar o desenvolvimento da região no seu conjunto. Contudo, durante um determinado período do governo do Partido Socialista de António Guterres e da gestão municipal do também socialista Fernando Gomes houve vontade e abertura para contrariar esta situação. Foi neste contexto, que o Porto foi Capital Europeia da Cultura.


O evento Odisseia nas Imagens a ele associado surgiu, assim, como uma possibilidade de propor medidas e tomar iniciativas em si mesmas portadoras de um projecto de futuro suficientemente flexível para que a partir dele os eventuais tomadores pudessem prosseguir políticas próprias no âmbito do cinema, audiovisual e multimédia – e do ensino associado a estas áreas – em condições mais favoráveis. Pela primeira vez, tendo em conta a capacidade de produção instalada e os saberes existentes foram avançadas hipóteses de políticas descentralizadas com reflexos a vários níveis, nomeadamente no serviço público de televisão, na criação de áreas de produção de excelência, entre as quais se apontavam o cinema de animação, as curtas metragens e o documentário, bem como no ensino superior.


Concomitantemente, foi pensada uma programação multifacetada que permitisse dar consistência no plano conceptual aos objectivos definidos. É disso que aqui se fala. Disso e da viagem pelo(s) documentário(s) que a Odisseia nas Imagens também foi. Toma-se como ponto de partida a matriz do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura para, num momento posterior, relatar e fazer a avaliação dessa experiência, fundamentalmente naquilo que ao(s) documentário(s) diz respeito. Em todo o caso, uma vez que por razões de coerência a Programação foi pensada de modo integrado, far-se-á referência ao conjunto dos seus articulados, pois só assim se compreenderá o seu alcance geral e a proposta de acção dela decorrente.


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Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura: candidatura e enquadramento


A actriz Melina Mercuri, na altura ministra da Cultura da Grécia, fez em 1985 uma proposta de nomeação anual de uma Capital Europeia com o intuito de dar a conhecer as realizações da cidade nomeada abrindo espaço, dessa maneira, à divulgação do imenso mosaico, construído ao longo de séculos, que constitui o património cultural europeu comum. A proposta assentava no consenso alcançado em torno de um conjunto de argumentos a seguir resumidos.


Uma Europa sólida, capaz de enfrentar os desafios do futuro, requer o conhecimento recíproco da diversidade cultural dos povos e países que a integram. Esse conhecimento investe na aceitação da diferença obstando, desse modo, a que essa mesma diferença venha a revelar-se elemento de desagregação. Como tal, a uma cidade Capital da Cultura cabe, entre outros desígnios, expressar a sua identidade, mas fazê-lo de modo a cruzar os particularismos locais com as tendências e abordagens mais cosmopolitas e universais.


À data da apresentação da sua candidatura a Capital Europeia da Cultura o Porto reunia condições excepcionais para responder a esse desafio. Com uma população de 300 mil habitantes e pouco mais de 44 km2 construiu a sua identidade, à semelhança de outras cidades da Europa de dimensão média, ao longo de uma História recheada de episódios que amiúde lhe conferiram um estatuto de privilégio.


Contudo, esse percurso nem sempre foi linear. Pelo contrário, segundo se afirma no texto da candidatura apresentado no Luxemburgo a 7 de Novembro de 1997, “após quase dois séculos de protagonismo e modernidade, o século XX foi para o Porto, sobretudo com o centralismo despótico do regime de Salazar, uma travessia do deserto [1]”. E acrescenta-se: “Só após a revolução de 25 de Abril de 1974, que restabeleceu o regime democrático e reanimou o poder local, foi possível ao Porto sair do marasmo de quase 100 anos e preparar-se para enfrentar o século XXI [2]”.


Diversos factores, com relevância para o trabalho desenvolvido pelo poder local na última década do século passado, contribuíram para que isso viesse a acontecer. No âmbito das realizações do poder local, eventualmente associado ao governo central, contam-se a reabilitação urbana e a dinamização cultural.


Em Dezembro de 1996 a Assembleia Geral da Unesco atribuiu ao Centro Histórico do Porto – uma área de 1,3 km2 correspondente na sua quase totalidade à cidade medieval entre muralhas – a classificação de Património Cultural da Humanidade:


“Aí encontram-se vestígios dos romanos e dos povos do norte; salienta-se o barroco introduzido pelo italiano Nasoni, a expansão urbana iluminista, o neoclássico de influência inglesa, o engenho e a arte de Eiffel, o urbanismo de Barry Parker, a que se seguiram intervenções da Architecture des Beuax-Arts, alguma Art Deco e os primeiros edifícios modernistas [3]”.


Com isto, os portuenses fizeram uma cidade única, “que só podia ser construída naquele lugar exacto, com aquela topografia e aquele rio, com o granito e o ferro, com a arte minuciosa dos seus artesãos, como uma forma própria de viver e conviver [4]”. Neste contexto, a candidatura do Porto a Capital Europeia da Cultura valorizou os aspectos patrimoniais sublinhando o esforço de reabilitação urbana articulado com investimentos avultados na recuperação e construção de equipamentos culturais, designadamente, museus, salas de espectáculos, arquivos e bibliotecas.


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Ponte da Arrábida em construção. Fonte: www.portodosmuseus.pt

Essa estratégia, ao desencadear novas dinâmicas em termos de um apoio crescente à criação artística e às indústrias culturais com impacto na criação de novos públicos, muitos dos quais provenientes de uma população de 60 mil estudantes do ensino superior, tornara possível estabelecer um calendário anual de acontecimentos relevantes e participados [5].


A candidatura apresentava, ainda, como razão de merecimento de descriminação positiva, a situação duplamente periférica da cidade, no plano nacional e no contexto internacional, bem como a notoriedade e importância de um conjunto significativo de criadores e de agentes culturais [6]. Identificava, seguidamente, os seus princípios orientadores, basicamente subordinados a dois eixos: cruzar localismo e internacionalização e capitalizar o evento a favor da cidade e da sua população [7].


Estabelecida uma proposta de modelo organizativo para a Sociedade Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura e após considerações sobre a previsão orçamental, o documento de candidatura entrava na matéria específica da programação cultural, a qual, em função das características e desígnios da cidade, haveria de articular-se em torno de um conceito cuja ressonância metafórica suscitasse uma identificação imediata no âmbito da tradição, conferindo-lhe, no entanto, um sentido prospectivo. Daí o tema das pontes e a consigna Pontes para o Futuro.


Com efeito, o Porto é a cidade das pontes sobre o rio Douro. Todas elas correspondem a momentos determinantes da sua história. A ponte de Gustave Eiffel (1887) é um dos raros exemplares da arquitectura do ferro associado à revolução industrial tardia que o Porto conheceu e marca tanto o imaginário da cidade quanto a sua representação simbólica. O mesmo sucede com a ponte Luís I (1886), inseparável da memória de uma época de prosperidade mercantil. A ponte da Arrábida (1963) coincide com outro momento de expansão da área metropolitana e com a afirmação vencedora da lógica do automóvel. Da autoria de Edgar Cardoso, o seu arco de betão armado foi, à época, o maior do mundo. Trinta anos mais tarde, o mesmo Edgar Cardoso construiu uma nova ponte, desta vez ajustada às necessidades dos comboios de alta velocidade.


Em suma, “a metáfora das pontes, e dos rios que sob eles correm, possui uma coerência e uma riqueza que a criatividade cultural pode explorar, quase explorar infinitamente [8]”. As pontes do Porto, portanto, “são expressão da particularidade do sítio e das vicissitudes históricas da cidade que aqui se instalou e, ao mesmo tempo, impregnam uma mensagem universalista e inovadora que lhes conferem as suas características e os seus criadores; um, Gustave Eiffel, europeu e universal; outro, Edgar Cardoso, portuense e, porque não arriscar, também europeu e também universal [9]”.


A prazo, as Pontes para o Futuro, entendidas como eixos de intervenção estratégicos, criariam condições para projectar o Porto como cidade europeia periférica de dimensão média capaz de dinamizar uma área metropolitana de 1.200.000 habitantes em função da sua competência criativa, científica e tecnológica. Neste contexto, inscreviam-se, naturalmente, propósitos de qualificação do desenvolvimento sócio-económico, de relançamento de negócios e do turismo cultural e da criação ou reforço de áreas de emprego qualificado ligadas às indústrias da cultura e do lazer.


Esperava-se, em suma, reforçar a visibilidade da cidade do Porto no espaço europeu e, como tal, contribuir para a construção da Europa Social e Cultural.


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Notas remissivas

[1] . Texto de apresentação da Candidatura do Porto a Capital Europeia da Cultura apresentado no Luxemburgo a 7 de Novembro de 1997, sem páginas numeradas. [2] . ibid. [3] . ibid. [4] . ibid. [5] . Desse calendário constavam, nomeadamente, o Festival de Cinema do Porto (Fantasporto), o Festival de Música Celta, o Festival de Teatro para a Infância e Juventude, o Festival Internacional de Marionetas do Porto, o Festival de Teatro de Expressão Ibérica, o Festival Ritmos/ Festa do Mundo, o Concurso Internacional de Música (piano), o Festival de Jazz do Porto, o Portugal Fashion, o Salão Internacional de Banda Desenhada e as Jornadas de Arte Contemporânea. - Nota do Autor. [6] . Entre outros eram citados os nomes de Agustina Bessa Luís, Manoel de Oliveira, Siza Vieira, Eugénio de Andrade, Sofia de Mello Breyner, Abi Feijó, Fernando Lanhas, Júlio Resende, Ângelo de Sousa, Pedro Burmester, Álvaro Salazar e António Pinho Vargas. - Nota do Autor. [7] . Transcreve-se a seguir a parte do texto de candidatura do Porto a Capital Europeia da Cultura onde esta matéria é abordada.

A - Cruzar localismo e internacionalização organizando um leque coerente de manifestações culturais que dêem prioridade às áreas de produção e apetência de maior enraizamento na cidade;

apresentem produções nacionais e internacionais inéditas; actualizem a memória patrimonial e histórica do Porto, procurando contacto com a realidade contemporânea e as indústrias culturais emergentes; fomentem o partenariado com instituições locais – já inseridas no processo – e o envolvimento da população da cidade; utilizem, além dos equipamentos funcionalmente vocacionados, espaços não codificados ou cuja função original se perdeu; assumam a dimensão festiva da efeméride, diluindo as fronteiras entre ‘actor’ e ‘espectador’; evitem a tentação do espectacular demasiado efémero, sem descurar a repercussão que algumas deverão nitidamente assumir, quer pelo impacto mediático, quer pelo alargamento de horizontes que proporcionam; harmonizem actividades  capazes de atrair o grande público e experiências de pesquisa, vanguarda e inovação; impliquem o público escolar, através de iniciativas que lhe sejam especialmente dirigidas; assumam a vocação do Porto como centro de uma metrópole regional, estendendo actividades às cidades vizinhas e recebendo as suas contribuições; concretizem o tradicional espírito de ligações internacionais do Porto, convidando para programas específicos a desenvolver em 2001 as quatro cidades geminadas com o Porto: Vigo, Bristol, Bordéus e Jena, e as cidades geminadas do nordeste brasileiro e da África lusófona; B - Capitalizar o evento a favor da cidade, da sua população e da sua cultura”. - in Texto de apresentação da Candidatura do Porto a Capital Europeia da Cultura, sem páginas numeradas. [8] . Texto de apresentação da Candidatura do Porto a Capital Europeia da Cultura apresentado no Luxemburgo a 7 de Novembro de 1997, sem páginas numeradas. [9] . ibid.


(Continua)









 
 
 
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Textos avulsos de teor literário nunca publicados. Recuperados de arquivos há muito esquecidos. Nunca houve intenção de os dar à estampa e, o mais das vezes, são o reflexo de estados de espírito, cumplicidades ou desafios que por diversas vias me foram feitos.

Imagens do Real Imaginado (IRI) do Instituto Politécnico do Porto foi o ponto de partida para o primeiro Mestrado em Fotografia e Cinema Documental criado em Portugal. Teve início em 2006. A temática foi O Mundo. Inspirado no exemplo da Odisseia nas Imagens do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura estabeleceu numerosas parcerias, designadamente com os departamentos culturais das embaixadas francesa e alemã, festivais e diversas universidades estrangeiras. Fiz o IRI durante 10 anos contando sempre com a colaboração de excelentes colegas. Neste segmento da Programação cabe outro tipo de iniciativas, referências aos meus filmes, conferências e outras participações. Sem preocupações cronológicas. A Odisseia na Imagens, pela sua dimensão, tem uma caixa autónoma.

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