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   viagem pelas imagens e palavras do      quotidiano

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  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 3 de fev. de 2021
  • 8 min de leitura

Atualizado: 22 de out. de 2023

Parecia estar tudo dito sobre o movimento documentarista britânico criado pelo escocês John Grierson no final dos anos 20 do século passado, eis que o tema voltou a ser motivo de debate. Para tanto, muito contribuíram as excelentes publicações do British Fim Institute (BFI) em DVD de uma parte da sua produção, porventura a melhor. De 1929 a 1939, ou seja, até ao início da II Guerra Mundial, foram feitos mais de 300 filmes envolvendo 60 profissionais. Durante a guerra, estima-se que possa ter sido produzida cerca de mais uma centena. Como se compreenderá, dada a heterogeneidade do movimento, esses filmes são bastante diferenciados, embora neles possam identificar-se basicamente duas tendências, uma mais poética e narrativa, outra de índole mais didática e jornalística. Grierson, aliás, ao cunhar a palavra documentário como sendo “o tratamento criativo da atualidade”, deixou, desde o início, o caminho aberto a ambas. Os textos que se seguem reportam à História e Teoria do movimento e resultam quer da recuperação de episódios da minha tese de Doutoramento quer de notas dos cadernos de apontamentos que tenho vindo a acumular ao longo dos anos. São textos revistos e, na medida do possível, atualizados. Em artigos já publicados no segmento de Cinema de Narrativas do Real, os mais interessados poderão encontrar informação complementar útil, por exemplo, na entrevista que fiz a Brian Winston, bem como num outro artigo sobre os anos de ouro das atualidades cinematográficas em que se fala de March of Time.


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John Grierson. Fonte: Australasian Screen Studies Network

Dada a influência que exerceu no plano da teoria e da prática o movimento documentarista britânico é uma referência matricial de praticamente tudo quanto diz respeito ao cinema documental após o advento do cinema sonoro. Durante muito tempo foi encarado como uma escola de virtudes na qual um punhado de cineastas radical teria dado corpo a uma obra excepcional. Não foi bem assim. A sua influência foi indiscutível, mas a imagem que durante muito tempo perdurou do movimento resulta da aceitação de um mito. Entre os que o alimentaram destaca-se Henri Langlois, da Cinemateca Francesa, cujo prestígio, só por si, praticamente garantia a legitimação das opiniões que emitia. Bastaria, no entanto, confrontar o mito com testemunhos e textos de reflexão contemporâneos do percurso de duas décadas do movimento documentarista britânico, designadamente os do próprio John Grierson e de Paul Rotha, para se constatar até que ponto ele simplificava uma realidade complexa. Posteriormente, o escrutínio e revisão crítica levados a cabo nos anos 80 e 90 do século passado, quer por autores de algum modo influenciados pelo pós-modernismo quer por outros mais radicais à esquerda, permitiu repensar não só o movimento mas também a própria ideia de documentário, bem como dos mecanismos subjacentes à sua produção, realização e institucionalização. Mas a história não acaba aqui. Na segunda década do século XXI, O British Film Institute (BFI), ao lançar em DVD uma parte dos filmes produzidos no âmbito do movimento, designadamente do General Post Office (GPO), o debate reacendeu-se assumindo novos contornos.


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Industrial Britain (1931) de Robert Flaherty

No seu ensaio de 1942 The Documentary Idea Grierson, declarou que “o documentário foi desde o início (...) um movimento anti-estético ”. Como teremos ocasião de verificar, o seu pensamento é contraditório, mas isso mesmo resulta, por estranho que pareça, de uma posição de coerência. Com efeito, Grierson encarou sempre o documentário como um produto do seu tempo e, como tal, susceptível de assumir múltiplas faces. Fazendo justiça a essa coerência, que remete para a historicidade, a primeira nota a reter é o movimento documentarista britânico ter sido criado para estar ao serviço da propaganda.


Stephen Tallents, o homem que levou Grierson para o Empire Marketing Board, era, ele próprio, um brilhante propagandista, autor de Projection of England, uma obra na qual se procurava, designadamente, enquadrar o papel dos artistas para efeito de promover uma imagem positiva do Império. Grierson nunca negou esse aspecto, chegando a lamentar que isso não fosse compreendido pelos candidatos a trabalhar nas suas unidades de produção, na maioria dos casos, em seu entender, mais preocupados com a arte do cinema do que com a sua função educativa.


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Stephan Tallents, autor de Projection of England, uma obra na qual se procurava, designadamente, enquadrar o papel dos artistas para efeito de promover uma imagem positiva do Império. . Fonte: National Portrait Gallery

Na prática, a circunstância histórica produziu efeitos a dois níveis. Em primeiro lugar, a eficácia da propaganda, sendo fundamentalmente dirigida às massas, tinha de estar associada a um intuito instrumental capaz de tirar partido da expansão dos meios de comunicação social. O documentário desenvolveu-se, portanto, num contexto de articulação e cruzamento de media. Em segundo lugar, todo o edifício institucional do movimento documentarista foi construído a partir de uma rede de compromissos cuja tela de fundo era, justamente, a propaganda. De acordo com o próprio Grierson, o movimento documentarista, tal como ele o concebeu, foi uma ideia saída da faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Chicago, no início dos anos 20, e não do interior do mundo do Cinema.


John Grierson, arte e propaganda


Em Outubro de 1924, então com 26 anos, John Grierson, Leitor da Universidade de Durham com um mestrado em Filosofia e Literatura, chegou aos Estados Unidos com uma bolsa da Rockefeller Foundation para estudar os problemas da imigração. Rapidamente o seu interesse derivou para os meios de comunicação social, o que o levou a estudar a imprensa, a rádio e o cinema e a colaborar como jornalista no Evening Post de Chicago onde teve uma coluna sobre pintura. Virou-se depois para a crítica cinematográfica, através da qual alcançou rápida notoriedade.


Pouco tempo antes, em 1921, Walter Lippmann publicara Public Opinion, hoje um obra clássica da Comunicação. Segundo Lippman havia uma contradição entre a afirmação dos princípios igualitários subjacentes à democracia e a hierarquia social resultante da moderna sociedade de massas. Para ele, as mensagens veiculadas através da imprensa eram incapazes de proporcionar uma visão rigorosa da complexidade do mundo dando lugar, pelo contrário, a leituras estereotipadas e, como tal, a uma simplificação do entendimento do real com consequências negativas para o exercício da cidadania. Influenciado pelo pensamento conservador, Lippman partiu de considerações deste tipo para justificar a necessidade de governos de elites e de especialistas capazes, dada a sua qualificação, de ajudarem a resolver os problemas da sociedade.


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Walter Lippmann, autor de Public Opinion. Fonte: Brewminate

Embora sendo um admirador do escritor e jornalista americano, o jovem Grierson não só não partilhava do seu pessimismo quanto aos media, como viu neles e, em particular no cinema, a possibilidade de ultrapassar os constrangimentos ao exercício da cidadania. Inserido num contexto pedagógico, o filme, segundo Grierson, poderia contribuir para o reforço das estruturas da sociedade democrática e ajudar a resolver os problemas existentes. Foi este o fundamento a partir do qual viria a elaborar a sua teoria e prática do filme documentário, uma e outra enraizadas na tradição do pensamento idealista que influenciou a vida intelectual britânica desde 1880 até à eclosão da II Guerra Mundial.


Na linha dessa tradição, em parte transmitida pelo pai, em parte assimilada enquanto estudante de filosofia na Universidade de Glasgow onde se familiarizou com o pensamento de Platão, Kant e Hegel, bem como com os neo-hegelianos e com os socialistas idealistas, Grierson viria a assumir-se como um pedagogo que acreditava na aplicação de medidas reformistas capazes de melhorar o funcionamento das instituições democráticas. Nessa perspectiva, afastando-se do materialismo marxista, “rejeitava a ideia da existência de divisões fundamentais no seio da sociedade, argumentando que a vida social se caracterizava por uma matriz de relações interdependentes e, como tal, que sociedades e instituições altamente integradas eram superiores àquelas que o não eram”. Partilhando com John Reith, o primeiro director executivo da BBC, preocupações quanto à função educativa dos meios de comunicação social, Grierson entendia, ainda assim, no final dos anos 20 do século passado, que a arte se situava num plano superior devendo evitar, por isso, expressar-se de modo didáctico.


Todas estas influências convergiram na primeira sistematização teórica de Grierson a propósito do filme documentário constante de um memorando apresentado ao Empire Marketing Board (EMB), a organização governamental para onde fora trabalhar após o seu regresso dos Estados Unidos. A missão do EMB consistia em estreitar os laços de comércio com as diferentes partes do Império Britânico desenvolvendo, para o efeito, acções de propaganda e de relações públicas. Contando com o apoio de Stephan Tallents e do poeta e dirigente do Partido Conservador Rudyard Kipling, Grierson pôde assim delinear, entre 1927 e 1929, um plano de produção de filmes cuja concretização seria cometida à sua unidade de cinema criada em 1930.


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Rudyard Kipling. Fonte: Templo Cultural Delfos

Os filmes que viessem a ser produzidos deveriam contribuir para alterar a visão que a metrópole britânica tinha do seu império, na medida em que se pretendia substituir os velhos paradigmas da dominação colonial por outros que permitissem reforçar o espírito de comunidade. Na prática, como sugerem alguns autores, entre os quais Barnouw, o que estaria realmente em causa era uma tentativa de acautelar eventuais manifestações de autodeterminação e independência por parte dos povos colonizados .


Em todo o caso, John Grierson tinha em mente um projecto inovador em relação às práticas institucionais correntes. No memorando apresentado ao EMB considerava a principal função do filme documentário representar a “interdependência e evolução das relações sociais de uma forma dramática, descritiva e simbólica”. Essa função obedecia simultaneamente a requisitos de ordem sociológica e estética: “sociológica porque envolve a representação das relações sociais, e estética porque exige a imaginação e meios simbólicos com vista à sua concretização”. Grierson destacava, por outro lado, a superioridade do cinema face aos outros media em termos de abordagem do real, uma convicção adquirida através do conhecimento - e admiração - dos filmes soviéticos, como, aliás, o demonstra Drifters, a sua primeira obra como realizador, na qual é evidente a influência de Eisenstein.


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Drifters (1929) de John Grierson. Fonte: BFI

Drifters é um filme sobre a pesca do arenque e foi estreado em 10 de Novembro de 1929 como complemento de O Couraçado Potemtkin. A crítica inglesa não lhe poupou elogios, embora os responsáveis do Empire Marketing Board tivessem chegado a sugerir a supressão de algumas cenas. Independentemente dos seus méritos ou deméritos, Drifters tornou-se numa referência quanto aos princípios orientadores do movimento documentarista britânico dos primeiros tempos – até 1934/35 –, basicamente assim resumidos: prioridade à imagem na linha de teorias anteriores ao advento do som, nomeadamente de Balazs, Arnheim e Kracauer, sendo que no caso dos teóricos realistas o cinema era ainda visto como um instrumento capaz de tornar o “real” visível; valorização da montagem como elemento determinante da atribuição de sentido, na linha de pensamento dos formalistas soviéticos; incidência nos temas sociais e na sua representação.


Estes princípios estão contemplados num ensaio de 1932 intitulado First Principles of Documentary. Contudo, apesar da insistência no primado da imagem, Grierson exprime reservas em relação a filmes sinfonia como Rien que les Heures (1926) de Alberto Cavalcanti e Berlim (1926) de Walther Ruttmann, uma vez que já considerava o poder da arte indissociável do seu impacto social.

Apesar dos pressupostos alinhados pelo pensamento teórico dominante no cinema da época, a maioria dos filmes produzida no tempo do EMB, segundo Sussex, tem hoje interesse meramente académico. Os enunciados de Grierson, nomeadamente a exigência do tratamento criativo da actualidade, pouco eco tiveram. A importância dos primeiros anos do movimento parece assim residir, fundamentalmente, nas condições institucionais criadas para um posterior desenvolvimento, por um lado da produção e realização e, por outro, da teoria e prática do documentário.


Ainda assim, Aitken admite que o modelo inicial de Grierson se circunscreve ao Empire Marketing Board, “sendo gradualmente ultrapassado por outros mais próximos da história documentada ou da abordagem didáctica, uma e outra de carácter mais jornalístico”. Esta posição poderá ser parcialmente justificada pela coexistência do movimento documentarista britânico dos anos 30 com newsreels como March of Time, mas dificilmente poderá ser tomada à letra tendo em conta a produção ulterior e a diversidade dos colaboradores de Grierson.



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(Continua)


Bibliografia


AITKEN, Ian – The Documentary Film Movement - An Anthology, Edited and Introduced by Ian Aitken, Edinburgh University Press, Edinburgh, 1998.

BARNOUW, Erik – El Documental – Historia y estilo, Editorial Gedisa, Barcelona, 1996.

GRIERSON, John – Grierson on Documentary, Forsyth Hardy, University of California Press, Berkeley and Los Angeles, 1966.

Grierson on Documentary, ed. Forsyth Hardy, Faber and Faber, London and Boston, 1966.

LIPPMANN, Walter – Public Opinion, MacMillan, New York, 1921.

ROTHA, Paul – Documentary Film, Faber and Faber, London, 1952.

- Documentary Diary, Hill and Wang, New York, 1973.

- Television in the Making, edited by Paul Rotha, The Focal Press, London and New York, 1956.

SUSSEX, Elisabeth – The Rise and Fall of British Documentary, University of California Press, Berkeley, Los Angeles, London, 1975.

 
 
 
  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 3 de fev. de 2021
  • 5 min de leitura

Atualizado: 20 de out. de 2023

Estão aqui reunidos alguns documentos respeitantes ao segundo módulo da Odisseia nas Imagens - O Som e a Fúria. Neste texto em duas partes, a primeira reporta sinteticamente à Programação de Cinema. A segunda, a publicar de seguida, revela um conjunto de iniciativas, algumas de grande visibilidade mediática, mas também outras consideradas muito importantes pelo seu caráter formativo e estruturante as quais não tiveram espaço nos media. Contudo, delas dependia a concretização da ideia de lançar as bases para fazer do Porto uma Cidade de Imagens. Os documentos que se seguem são uma pequena parte dos muitos anexos deste módulo O Som e a Fúria. Deles constam, designadamente, iniciativas da Casa da Animação apoiadas pela Odisseia nas Imagens, como é o caso da retrospetiva dos filmes dos Estúdios Aardman.


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Joris Ivens. Fonte: Senses of Cinema

O segundo módulo O Som e a Fúria [1], cujo núcleo principal decorreu entre 17 a 25 de Setembro de 2000, mas que em rigor se desmultiplicou em iniciativas até meados de Março de 2001, poderia ter tomado de empréstimo o título da obra homónima de William Faulkner, mas a verdade é que foi a pensar no II capítulo da História do Documentário de Erik Barnow que se chegou a essa designação. No respectivo catálogo de O Olhar de Ulisses [2], igualmente intitulado O Som e a Fúria – a partir desta altura, por razões de ordem conceptual, nomeadamente devido à introdução de abordagens do documentário no quadro de outras disciplinas não estritamente da esfera do cinema, este ciclo e a restante programação da Odisseia nas Imagens deixariam de obedecer às mesmas designações –, escrevia-se:


“Se o primeiro módulo O Homem e a Câmara remetia para as teses vertovianas da cine-sensação do mundo no quadro de uma gramática emergente das imagens em movimento, agora, em O Som e a Fúria, a elucidação e organização do real apontam para um olhar reestruturado a partir de um conjunto de sinais e de regras de articulação desses sinais relacionados quer com o olho, quer com o ouvido. Com o advento do sonoro, a linguagem do cinema torna-se audiovisual e, portanto, plurissintáctica. O olhar, enquanto modo de revelação, resulta, pois, do acto combinatório de diferentes sistemas de significação convergindo na coerência de um propósito. As coisas, claro, podem não ter a simplicidade aparente que releva das categorias consagradas. Alguém será capaz de evitar ouvir, por exemplo, "O Vento" (1928) de Sjöstrom [3]?”


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Este segundo módulo de O Olhar de Ulisses [4] contou entre os seus convidados com Marceline Loridan, a viúva de Joris Ivens [5] e daria também lugar ao primeiro texto de fundo sobre a questão do filme documentário da autoria de João Bénard da Costa intitulado Os filmes que nos vêem/ os olhos que nos filmam [6]. Contestando pressupostos teóricos da ideia do documentário –. na verdade, pondo em causa a própria ideia do documentário –, desvalorizando os filmes do movimento documentarista britânico ou demolindo, por exemplo, os filmes militantes de Joris Ivens, concluía dizendo, nomeadamente: “Este texto, muito provavelmente, vai arranjar-me mais inimigos do que todos quantos escrevi na minha vida [7]”.


Sendo muito diversificado – incluía o Fantasporto (já na fase de transição para o terceiro módulo Apocalípticos e Integrados porque, em rigor, lhe coube inaugurar oficialmente a Odisseia nas Imagens no ano 2001) [8], uma primeira grande retrospectiva de cinema de animação dos Estúdios Aardman [9], um filme-concerto Metrópolis (1925-26) de Fritz Lang com música ao vivo de MuteLifeDept. [10], o colóquio Tendências do Audiovisual Europeu [11], a estreia mundial dos filmes da série Estórias de Duas Cidades [12], as iniciativas preliminares do Museu da Pessoa [13] e, ainda, um número significativo de workshops e de acções de formação [14] – o segundo módulo espelhava já as dinâmicas anunciadas na fase de preparação não deixando, no entanto, de revelar os primeiros indícios de contradições ou, pelo menos, de diferentes concepções sobre a História e Teoria do Documentário, cujas repercussões se fariam sentir nos módulos seguintes.


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Filme-concerto: Metrópolis (1925-26) de Fritz Lang pelos MuteLifeDept

Um primeiro sinal terá sido o artigo de João Bénard da Costa. Outro, o aparecimento de workshops sobre o documentário de televisão, algo justificadamente ausente de O Olhar de Ulisses, mas cuja relevância no plano das relações institucionais, nomeadamente a RTP e as universidades, não deveria ser ignorado. Esse seria, aliás, um ponto de partida para a discussão do lugar do documentário na programação televisiva, tanto mais que, em simultâneo, era lançada uma grande iniciativa denominada Tendências do Audiovisual Europeu [15] na qual, a par do papel do serviço público de televisão encarado numa perspectiva de descentralização, se procurava introduzir um debate em torno dos nichos de mercado pensados em função da opção pelos documentários, curtas- metragens e cinema da animação. Numa entrevista ao Jornal de Notícias de 7 de Dezembro de 2000 Manuela Melo, a responsável pelo conjunto da Programação Cultural do Porto 2001 falava da possibilidade de um grande centro de produção audiovisual e admitia a hipótese de criação de um Media Park, afirmando a determinada altura:


“Nos últimos anos criou-se uma dinâmica que faz com que haja cada vez mais cineastas, actores, técnicos e outros profissionais que, também pelo apoio logístico conseguido, se vão valorizando. O audiovisual, nesta altura mais do que nunca, sintetiza uma série de expressões artísticas. E, para nós, não interessa apenas a sobrevivência de todas elas, mas também a possibilidade de criar emprego qualificado e estável. A aposta da Porto 2001 nesta área foi lançar desafios e proporcionar meios, em termos de acções de formação, que pudessem oferecer alguma coerência a este conjunto disperso de coisas [16]”.


Na mesma linha de pensamento, no final do ano 2000, o relatório fazendo o balanço do trabalho desenvolvido [17], avançava um prognóstico, bem como algumas condições para a sua concretização:


“Através do envolvimento universitário, das parcerias institucionais que têm vindo a ser levadas a cabo, nomeadamente com a Cinemateca Portuguesa e com o serviço público de Televisão, e dos múltiplos contactos internacionais que têm vindo a ser estabelecidos, o Porto passará a ter condições para se afirmar de uma forma progressiva e sustentada como uma verdadeira Cidade dos Media. Para tanto, a par da ligação dos eventos programados a uma lógica de produção, entende-se como complementar e fundamental a abertura a novas iniciativas tendentes a fomentar actividades empresariais capazes de gerar negócios orientados em função da identificação de nichos de mercado [18]”.


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Em função do trabalho realizado [19] e das múltiplas formas de feedback provenientes tanto de parceiros externos quanto do interior da Capital da Cultura o ano de 2000 terminava com legítimas expectativas, mas deixava no ar algumas interrogações sobre os conteúdos, das quais resultava evidente a necessidade de alargar e diversificar a Programação com novos ciclos e iniciatvas como, aliás, se destacava no relatório de balanço mencionado. De um modo geral, a imprensa, sem deixar de referir os problemas existentes, nomeadamente os atrasos verificados quanto à Casa da Animação [20], reflectia uma atitude positiva e, embora mostando-se pouco sensível a eventos menos espectaculares do ponto de vista mediático, traçava um quadro optimista para o ano de 2001 [21].


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(Continua)


Notas remissivas


[1] . Anexo I – pp. 57-79.

[2] . Anexo I – p. 60.

[3] . Anexo I p. 57.

[4] . Anexo I pp. 59-63.

[5] . Ver entrevista com Marceline Loridan in Anexo I – pp. 94-95.

[6] . Anexo I – pp. 86-87.

[7] . Anexo I – p. 87.

[8] . Anexo I – pp. 75-79.

[9] . Anexo I – pp. 71-72.

[10] . Anexo I – pp. 63-65.

[11] . Anexo I – pp. 67-69.

[12] . Anexo I – pp. 69-70.

[13] . Anexo I –pp. 74-75.

[14] . Anexo I – pp. 65, 66, 72, 73, 74 e 79.

[15] . Ver Anexo I – pp. 96-97.

[16] . Anexo I – p. 96.

[17] . Anexo III – pp. 67-73.

[18] . Anexo III – p. 69.

[19] . Ver Anexo III – pp. 70-73.

[20] . Anexo I – p. 85.

[21] . Ver, por exemplo, o artigo de Rodrigues da Silva no Jornal de Letras, Artes e Ideias de 10 de Janeiro de 2001 in Anexo I – pp. 98-99.

 
 
 
  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 1 de fev. de 2021
  • 17 min de leitura

A imagem de rosto deste texto é mais uma das que o meu inesquecível amigo Rui Pimentel fez para o meu livrinho A Caixa Negra. O livro, cuja capa traz um desenho de outro grande amigo, o escultor José Rodrigues, tem quase 30 anos e tem por base um trabalho académico da altura. Depois de o recuperar e reler, apesar do tempo passado e de alguns pontos sobre os quais mudei de opinião, penso que ainda terá alguma utilidade. Até porque foi pensado como uma introdução ao jornalismo de televisão para estudantes tendo como pano de fundo a necessidade de conhecer o Cinema. E nisso não mudei de opinião. Também se fala sobre o trabalho dos jornalistas e sobre as relações de poder. O que se segue é a segunda de duas partes sobre a Linguagem que constituem o Capítulo III de A Caixa Negra.


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Desenho de Rui Pimentel para A Caixa Negra

(Continuação de A Caixa Negra 3 - O Desafio da Linguagem I)


GRIFFITH


foi o primeiro grande intérprete da noção de montagem, foi ele quem, de facto, revolucionou a linguagem do cinema elevando-o ao estatuto de Arte.


Nascido em Janeiro de 1875, em Crestwood, no Kentucky, Griffith recebeu uma educação tipicamente vitoriana muito marcada pelas ideias sulistas. Disso viria a dar conta nos seus filmes, a par de um sentimento de independência intransigente face aos produtores. Com ele não surgiu apenas o cinema-arte, nasceu também, o cinema-indústria do qual, aliás, viria a ser uma das vítimas maiores. Mas o apagamento a que foi sujeito nos últimos anos da sua carreira não obscureceu os seus méritos indiscutíveis, antes os evidenciou, a posteriori, quando foi demonstrado que Griffith era, na realidade, um homem demasiado avançado para o seu tempo: foi o primeiro a utilizar o grande plano como elemento de valorização expressiva e dramática; inovou quanto ao da luz e da sombra, tirando partido dos efeitos de contra-luz; utilizou de modo consequente e planificação e a montagem. Quando, em 1915, fez Birth of a nation a narrativa cinematográfica ficou estruturada e estavam lançadas as bases do cinema moderno, as mesmas bases a partir das quais iria trabalhar e teorizar o genial


EISENSTEIN,


nascido em Riga, Lativa, em 1899. Tal como Vertov, também Eisenstein foi influenciado pelo ambiente familiar quanto ao seu interesse pela arte. Estudou no Instituto de Engenharia de Petrogrado. Quando do derrube do Czar, os pais de Eisenstein partiram para a Europa, mas ele optou por alistar-se como engenheiro no Exército Vermelho, construindo pontes durante dois anos. Depois, deixou-se levar pelas suas inclinações artísticas e começou a desenhar cartazes de propaganda. Um acaso levou-o até ao mais famoso teatro de Moscovo, o Proletkult, onde leccionavam os mundialmente conhecidos Konstantin Stanislavsky e Vsevolod Meyerhold. Apaixonado pelo teatro, o jovem Eisenstein nutria, em contrapartida, uma enorme suspeição quanto ao cinema, considerado um meio pobre. Começou a estudá-lo para o destruir e fez até um pequeno filme parodiando as actualidades de Vertov. Acabou, afinal, por sucumbir ao fascínio das imagens.


O Couraçado Potemkine é a sua obra maior. Realizado em 1925, este filme é considerado "o exemplo mais perfeito e conciso da estrutura fílmica em toda a História do Cinema".(20) Com prestígio semelhante devem, no entanto, citar-se os filmes de D. W. Griffith O Nascimento de uma Nação e de Orson Welles O Mundo a Seus Pés. À semelhança dos filmes de Griffith e Welles, o Potemkine foi menos consequência de um rigoroso planeamento do que de uma intensa expansão de energia criadora. Na sua versão completa durava oitenta e seis minutos à velocidade do cinema mudo — dezasseis imagens por segundo — e continha 1.346 planos, um número invulgarmente elevado quando comparado, por exemplo, a O Nascimento de uma Nação, o qual, demorando cento e noventa e cinco minutos tinha apenas 1.375 planos. Só por si os números são indicadores da complexidade da montagem do Potemkine.


A MONTAGEM DIALÉCTICA


Eisenstein entendia a montagem como um processo operativo segundo a dialéctica marxista, a qual encara a História numa perspectiva conflitual: uma força (tese) colide com a sua contrária (antítese) de modo a produzir um fenómeno novo (síntese). Num diagrama, essa conflitualidade poder-se-ia representar do seguinte modo:


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A síntese não corresponde a um mero somatório da tese e da antítese. É algo de diferente, gerador de um novo processo dialéctico que, por sua vez, dará origem a uma nova síntese e assim sucessivamente. Ora, Eisenstein sustentava que na montagem, o plano, ou "célula de montagem", é uma tese; quando colocado em justaposição com outro conteúdo visual oposto — a sua antítese — produz uma síntese (uma ideia sintética ou impressão), que por sua vez se transforma na tese de um novo processo dialéctico ajustado à sequência da montagem. Por outras palavras, a montagem surge como uma série de ideias e impressões resultantes da colisão de planos independentes. Utilizando uma metáfora industrial, Eisenstein comparava esse processo "à série de explosões de um motor de combustão interna, levando para diante o automóvel ou o tractor."(21) E acrescentava:


"Tal como as palavras isoladamente numa frase dependem, para o sentido, das palavras que a cercam, do mesmo modo os planos isolados numa sequência montada ganham sentido mediante a sua interacção com os outros planos da sequência."(22)


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Montagem em o Couraçado Potemkine (1926) de Sergei Eisienstein: Alegoria de O Leão que Acorda

A COMPOSIÇÃO LÓGICA


Outro soviético, Vsevolod Pudovkin, anota que "só à luz dos seus métodos de montagem se pode julgar a personalidade de um realizador. Assim como cada escritor tem o seu estilo literário também cada realizador tem o seu estilo cinematográfico: o seu método pessoal de representação fílmica."(23)


"Ao juntar as peças — acrescenta Pudovkin — o realizador cria o seu próprio espaço de ecrã."(24) Ou seja, impõe a sua marca distintiva, na sequência, afinal, da tese vertoviana da visão activa da realidade: boas imagens tratadas analiticamente através da câmara proporcionam a possibilidade de proceder a uma espécie de alquimia imagética, a qual se distingue radicalmente do corte semanticamente irrelevante. A transposição destes conceitos para o trabalho de reportagem permite constatar que num grande número de casos não existe sequer montagem. Faça-se a seguinte experiência: tire-se o som ao televisor durante uma emissão de notícias: ver-se-á como a maioria das imagens são confusas, sem ritmo e desarticuladas quando, em rigor, só por si, já deveriam contar uma história. Dizia Pudovkin a propósito da montagem: "O corte não existe. O que existe é a composição lógica."(25)


Dito de outra maneira, segundo Boretsky e Kuznetsov as funções de corte


"são muito mais amplas: são funções semânticas, fazem parte do enredo ou do elemento emocional (criam a atmosfera, por assim dizer). A chamada 'imagem de fundo' está a ser criada com o auxílio destas 'dimensões secundárias' descobertas pelo operador da câmara. Ela confere ao material saturação emocional, informa o público sobre uma situação, de uma maneira concentrada: poderá até dispensar-se o comentário simultâneo."(26)


Esta é uma questão chave da linguagem da Televisão quando aplicada à reportagem. Merece uma indagação tanto do ponto de vista técnico quanto do ponto de vista do paradigma dos efeitos, no âmbito da relação do impacto da mensagem com a reacção por parte do público. E repare-se que esta abordagem das imagens, por razões de método, antecedeu, propositadamente, qualquer referência, aliás, indispensável, ao som e à forma de escrever para Televisão. Justamente porque a componente visual é determinante, quer na construção da narrativa, quer na estimulação de uma atitude crítica e criativa por parte do receptor, no fundo, interpelando-o por forma a promover a sua cidadania e, em última instância, apelando ao seu envolvimento democrático por oposição ao entorpecimento envolvente.


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Vsevolod Pudovkin: "O CInema é o maior de todos os professores porque ensina não só através do cérebro, mas também através de todo o corpo.". Fonte: IMDb

O GRAMOFONE ILUSTRADO


Correndo embora o risco da redundância importa insistir na perspectiva de Boretsky e Kuznetsov quando afirmam que


"na maioria das vezes os métodos do trabalho literário utilizados na Imprensa, e ainda mais frequentemente na Rádio, são automaticamente aplicados na Televisão. São inadequados porque subestimam a imagem que o público capta. Um autor que utiliza esses métodos na Televisão, esforça-se muitas vezes, provavelmente de uma maneira subconsciente, por dar a primazia ao texto e pôr a imagem em segundo lugar (...). Daí resulta o que René Clair habilmente classificou como 'um gramofone com várias ilustrações'."(27)


"Escrever é cortar palavras" disse uma vez o grande poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade. Isso é especialmente verdade em Televisão, cuja linguagem integra, como vimos, diversos sistemas de comunicação. O cineasta francês Robert Bresson, por seu turno, formulou o seguinte aforismo: "A imagem principal no filme sonoro é o silêncio"(28). E o realizador soviético Alexander Dovzhenko recomendava aos argumentistas que


"deviam pensar sempre naquilo que é melhor não escrever, naquilo que deve ser deixado de fora ... naquilo que deve ficar nas entrelinhas, para despertar a percepção artística, criativa e activa do espectador, em vez de o adormecer com cuidados redundantes."(29)


Pois bem, em Televisão, o repórter experiente habituou--se a confiar acima de tudo nas suas imagens, procurando entender a sua lógica interna. Muitas vezes, são elas que determinam a construção da peça. Escolhem-se as melhores e de maior conteúdo metafórico, para depois as organizar. Quantas vezes imagens interessantes não salvam um assunto banal e quantas vezes a qualidade do repórter se não mede pela sua capacidade de ultrapassar a banalidade através de uma manipulação hábil dessas mesmas imagens!


O TEXTO: CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS


Do exposto facilmente se conclui ser preferível a montagem prévia das imagens à redacção do texto off. Contudo, nem sempre isso é possível. Com frequência é necessário dar informações sem o apoio das imagens adequadas. Neste caso, podem utilizar-se as chamadas imagens pretexto, as quais se limitam a servir de suporte do texto. Ainda assim, o repórter há-de tirar o partido possível delas, levando em conta o seu conteúdo manifesto. É o que acontece com a utilização de uma parte substancial do material de arquivo. Dispondo de tempo, o repórter pode e deve recorrer, também, ao grafismo electrónico.


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"Escrever é cortar palavras."

Entretanto, quando se afirma o primado da linguagem visual, não deve excluir-se a possibilidade de procedimentos diversos quanto à elaboração do texto. Por exemplo, redigi-lo antes da montagem das imagens. Os repórteres das estações americanas (e, cada vez mais, os europeus) fazem-no. A peça estrutura-se em função do destaque das frases-chave dos entrevistados, com valorização dos elementos constitutivos da realidade sonora. É uma forma de proceder aparentemente decorrente da natural e progressiva autonomização da linguagem televisiva, bem como de um modo de fazer que foi criando a sua própria escola em circunstâncias culturais específicas, nada tendo a ver com o trabalho do repórter inexperiente ou proveniente de outros media, que se limita a transpor mecanicamente outras linguagens para a Televisão.


Bem pelo contrário, a escola americana exige o domínio da linguagem televisiva por parte de todos os elementos implicados na reportagem, do operador de câmara ao operador de montagem, passando, naturalmente, pelo jornalista, a quem cabe o papel de coordenar todo o trabalho. Por outras palavras, o operador de imagem, conhecendo as potencialidades analíticas da câmara, age de acordo com um guião previamente fornecido pelo jornalista; o montador, sendo um especialista da articulação de planos visuais e sonoros, utiliza criativamente o guião e o texto jornalísticos, no sentido de concretizar a história (é assim, de uma forma feliz, que os americanos chamam à reportagem); e o repórter redige o seu texto a pensar nessa história, a partir do seu guião e das imagens, sons e frases-chave de que dispõe. Ora isto, nada tem a ver com a fórmula do "gramofone ilustrado". Muito pelo contrário remete, em última instância, para a lógica das imagens.


O TEXTO


é um dos aspectos mais interessantes e complexos da linguagem da Televisão. A seu respeito ouvem-se frequentes críticas. Muitas vezes, essas críticas são pertinentes porque evidenciam determinados erros óbvios do ponto de vista da gramática da língua, como é o caso de concordâncias incorrectas ou de sucessivas e injustificadas trocas do tempo dos verbos. Pertinentes são igualmente as críticas ao modo como alguns profissionais se exprimem oralmente. Nem sempre, porém, a crítica tem razão, sobretudo quando revela desconhecimento da necessidade do texto combinar com planos visuais e sonoros, dando lugar a formas expressivas cuja correcção não pode ser aferida em função do critério exclusivo da gramática da língua. Quando se ouve denunciar a transformação do português em teleguês, bom seria refletir sobre o carácter global da linguagem televisiva pois, se calhar, o teleguês anunciado é uma necessidade linguística ajustada às características do medium. Será, até, porventura, uma exigência da sua democratização. O que não quer dizer que não haja também verdadeiros atentados à língua portuguesa.


Na sequência das suas considerações sobre os media enquanto extensões dos sentidos humanos, McLuhan faz a distinção entre meios quentes (hot) e meios frios (cool). Não cabe aqui uma análise detalhada sobre estes aspectos. Bastará referir que, segundo ele, os meios quentes apelam fundamentalmente a um sentido, exigindo reduzido grau de participação; os meios frios, pelo contrário são altamente participativos e apelam a mais do que um sentido. Diz McLuhan:


"A TV é um meio frio, participante. Quando aquecido por dramatização e aguilhoadas, o seu desempenho decresce, porque passa a oferecer menos oportunidades à participação. O rádio é um meio quente. Quando intensificado, o seu desempenho é melhor. Não convida os seus usuários ao mesmo grau de participação. O rádio pode servir como cortina sonora ou como controle do nível de ruído: é assim que o adolescente o utiliza para desfrutar de uma certa intimidade. A TV não funciona como pano de fundo. Ela envolve. É preciso estar com ela."(30)


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Marshall Mcluhan: "O meio é a mensagem.". Fonte: Mcluhan Galaxy

Este envolvimento em profundidade, sinestésico, seria, portanto, uma das características da Televisão, exigindo a participação do espectador. Desde logo, ele está perante uma imagem de baixa definição, cujos contornos só ganham clareza mediante um esforço de descodificação das linhas e pontos luminosos a partir dos quais é possível reconstituí-la. Este esforço pressupõe um contacto sensorial global, participativo, iminentemente táctil, visto a Televisão tocar, envolvendo, todos os sentidos.


Sublinha McLuhan: "Como a baixa definição da TV assegura um alto envolvimento da audiência, os programas mais eficazes são aqueles cujas situações consistem de processos que devem ser completados."(31)


Esta lógica é abrangente do texto, o qual necessita igualmente de ser completado. No limite, poder-se-ia, até, afirmar a possibilidade de um texto off televisivo, isolado da narrativa visual, ser absolutamente incorrecto (incompleto) do ponto de vista da gramática da língua, mas inteiramente correcto se integrado (completado) no contexto dessa mesma narrativa. Por outras palavras, um texto sobreaquecido — comportando, por exemplo, a redundância ou com pretensões literárias — é naturalmente desajustado ao meio frio que é a Televisão. Dissuade a participação e promove o ruído e o entorpecimento. Em contrapartida, o texto arrefecido — claro, conciso e rigoroso — limitando-se a esclarecer e aprofundar o sentido dos planos visuais (e sonoros), estimula a atenção e promove a participação: é mais "democrático".


AUDIBILIDADE


Tecnicamente, no texto há-de prevalecer a audibilidade, o tom coloquial, procurando-se tirar partido das possibilidades rítmicas e fonéticas da língua, conferindo-lhe musicalidade. Afirma Aor da Cunha que o repórter


"verifica sempre a sonoridade das palavras no texto, lendo em voz alta o que escreve. Muitas vezes um sinónimo pode dar harmonia à sonoridade de uma frase sem qualquer prejuízo à informação. Outras vezes, mudando a ordem das palavras consegue dar sonoridade à oração. Isto porque palavras mal colocadas quebram o ritmo do tópico, o que é fundamental. O equilíbrio do texto favorece a concentração de quem ouve. Não pode ser contundente ou agressivo; nem monótono ou lento. Para ritmar, usa frases curtas que ajudam a compreensão e dá sentido de acção à notícia, além de imprimir-lhe objectividade. A pontuação indicando as pausas e o tom, dá o sentido interpretativo da locução. O texto basicamente identifica os elementos fundamentais da notícia, mas com ritmo, harmonia e tom. Verdadeira música."(32)


Porque existe em função das imagens, o texto televisivo é necessariamente lacónico. Só excepcionalmente um período terá mais de quatro linhas. Dizia Scott Fitzgerald que não se escreve por se ter vontade de dizer alguma coisa: escreve-se porque se tem alguma coisa para dizer. Quando, só por si, as imagens forem suficientemente esclarecedoras ou emotivas dar-se-á espaço ao silêncio. A trivialidade, o lugar comum, o chavão empobrecem o texto. Em suma


"o telejornalismo não é preconceituoso nem presumido. Simplesmente defende-se das formas afectadas no escrever. Ajuizadamente não se municia de termos pretensiosos. Procura ser natural e, por isso, se exprime em tom coloquial e espontâneo, para poder chegar e, quem sabe, ficar. A frase pomposa é arredia e apartada da população, especialmente aquela que vê e ouve televisão."(33)

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Scott Fitzgerald: "Não se escreve por se ter vontade de dizer alguma coisa, escreve-se porque se tem alguma coisa para dizer.". Fonte: PBS

O COMENTÁRIO SOBRE A IMAGEM


é a fórmula habitualmente utilizada para caracterizar o texto de Televisão. Conhecendo as regras de articulação dos planos, bem como a sua dinâmica interna, o repórter orienta a montagem da sua peça. Porque trabalhou a partir de um guião, mesmo que rudimentar, dispõe de um conjunto de imagens cuja ordenação, só por si, constitui o módulo nuclear da reportagem. Ao montador compete imprimir o ritmo adequado à narrativa visual, bem como valorizar os planos sonoros susceptíveis de sugerir uma maior aproximação à realidade. Uma vez montada, a peça é logo significante, cabendo ao texto a função de esclarecer e aprofundar o seu sentido. Para o redigir o repórter procede à cronometragem dos planos anotando a sua tipologia, os movimentos de câmara e o áudio a aproveitar, quer em termos de som ambiente, quer de grandes planos sonoros. Em função destas indicações pode redigir um bom texto destinado a ser dito com as indispensáveis pausas e momentos de silêncio quando as imagens assim o exigirem. A leitura far-se-á com a narrativa visual correndo diante dos olhos do repórter, permitindo-lhe ajustar a voz às necessidades expressivas do momento.


Obviamente, estas regras não excluem outros procedimentos. Aliás, cada repórter, dada a flexibilidade do medium, acaba, muitas vezes, por desenvolver técnicas próprias. De qualquer modo, a experiência do comentário sobre a imagem abre abre espaço para explorar a linguagem da Televisão, na medida em que procede do conhecimento global dos diversos sistemas de comunicação que a compõem.


O SOM


Pelas razões evidenciadas optou-se, metodologicamente, por dar prioridade ao tratamento da narrativa visual. Porém, quando entendida na globalidade do quadro audiovisual, a lógica das imagens não prescinde da dimensão sonora da realidade. Pelo contrário, o som é cada vez mais entendido como um sistema gerador de sentido quando se trata de promover a ilusão da realidade.


Jean Cloutier chama audioesfera ao mundo audível. Segundo ele, a audioesfera é composta por três elementos: a fonte sonora, o som e a audição.


A fonte sonora é o emissor que transmite uma informação acústica seja ela acidental, como o ruído, ou desejada, como a palavra e a música.


O som é um fenómeno simultaneamente físico e fisiológico: propaga-se em ondas em todas direcções, dependendo a sua existência da forma como é percepcionado. A intensidade de um som tem a ver com a sua força ou o seu volume, dependendo da amplitude da vibração, ou seja, do espacejamento maior ou menor entre os limites inferiores e superiores da onda sonora. A intensidade do som mede-se em decibéis. A altura do som varia de baixo (grave) a alto (agudo), obtendo-se essa tonalidade através da frequência, isto é, o número de vibrações por segundo. A unidade de medida é o hertz. O timbre de um som é a qualidade que permite distingui-lo dos outros sons, sendo constituído pelas harmónicas, "notas" derivadas do som fundamental, cuja frequência é a mais baixa. O timbre confere ao som, por exemplo, à voz humana, a sua personalidade própria.


Finalmente, a audição é possível graças ao ouvido que capta a vibração das ondas sonoras para as transmitir ao cérebro, tal como o microfone as capta para permitir a sua transmissão, amplificação ou registo. O ouvido é um instrumento notável: "Pode captar sons de tal modo fracos, que apenas fazem vibrar o tímpano numa distância inferior ao diâmetro de uma molécula de hidrogénio, e sons até milhões de vezes mais fortes. Pode distinguir 400.000 sons diferentes"(34). Citando redactores da revista Life, Cloutier sublinha que o ouvido


"pode adaptar-se, tanto às baixas frequências de uma sereia, como ao zumbido perfurante de um motor de reacção. Consegue, também, fazer a distinção, subtil, entre a música tocada pelos altos e a dos violinos de uma orquestra sinfónica. Pode rejeitar o bru-a-a de uma reunião de amigos, seleccionando uma única voz familiar. Mesmo durante o sono, o ouvido funciona com uma eficiência incrível."(35)


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Jean Cloutier nos anos 60, o homem que antecipou a noção de self media. Fonte: Histoire du Monde

O PLANO SONORO


Na verdade, a realidade sonora é tão complexa quanto a realidade visual, pelo que a sua representação signíca pressupõe o domínio de uma linguagem específica. Por exemplo, do mesmo modo que se fala do tamanho do plano visual, também é possível falar do tamanho do plano sonoro, ou seja da quantidade de informação de som nele contido. O som de uma multidão assistindo a uma partida de futebol quando acontece um golo será um grande plano sonoro; um plano de pormenor, o som de uma gota de água caindo ritmicamente de uma torneira mal fechada, quando nada mais de ouve. Pode, igualmente, falar-se do colorido ou da tonalidade do plano, identificando estes conceitos com a sua altura mais ou menos aguda (brilhante) ou mais ou menos opaca (grave). Quando devidamente estruturado, o plano sonoro valoriza a reportagem, porque ao introduzir sons familiares facilita a identificação do espectador com a acção, potenciando a mensagem. Dada a inseparabilidade da imagem e do som, Llorenç Soler coloca assim a questão: "Se é certo que a banda sonora há-de gozar de certa autonomia no seu tratamento, é igualmente verdade que o seu valor significante só alcança autêntica dimensão a partir da união com a imagem."(36)


Tal como a captação da imagem visual exige a câmara, a captação da imagem sonora exige o microfone. O microfone pode ser utilizado de modo diverso, com maior ou menor proximidade da fonte sonora, procurando evitar-se o volume demasiado elevado, gerador de distorção, ou demasiado baixo, anulador da multiplicidade de matizes do som ambiente. É essencial não sobrecarregar o microfone, aproximando-o em demasia da fonte, nem amplificar excessivamente o sinal de reprodução, ou seja, a sobremodulação.


Se a câmara pode mudar de ponto e ângulo de vista, mudando de posição ou modificando as objectivas, o microfone pode igualmente mudar de posição e ser utilizado nas suas diversas versões, de acordo com as suas principais propriedades, a sensibilidade e a direccionalidade. Sem entrar em pormenores, dir-se-á que a sensibilidade é determinada pela amplitude de sinal áudio que o microfone é capaz de alcançar para um volume de som prefixado. A direccionalidade tem a ver com sensibilidade espacial do microfone. No caso de se tratar de um microfone omnidireccional, captará com a mesma sensibilidade o som proveniente de todas as direcções. O superdireccional, ou canhão, é sensível ao som proveniente de uma só fonte. O cardióide tem características intermédias.


EQUÍVOCOS HABITUAIS


Um dos aspectos mais exasperantes para um repórter de Televisão experiente é assistir ao modo como, muitas vezes, o som é maltratado. Isso acontece tanto na captação, quanto na montagem e na emissão. As razões desse procedimento incorrecto relevam, na maioria dos casos, de uma interpretação apressada do velho aforismo chinês segundo o qual uma imagem vale mais que mil palavras, mas decorrem, igualmente, de uma atitude mais ou menos generalizada de aceitação do processo de ilustração de textos. Por outras palavras, ao admitir o primado das imagens, tout court, perde-se a perspectiva da globalidade audiovisual da realidade; ao aceitar a prioridade do enunciado contraria-se a lógica visual; e, no meio deste emaranhado contraditório, a representação signíca da realidade sonora, à excepção do texto, quase, ou pura e simplesmente, desaparece. É uma rede de equívocos resultantes da compartimentação dos diversos sistemas de significação e da incapacidade de os reunir de forma a articular um texto global.


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Fonte: Happy Mag

Muitas vezes, na captação do som são utilizados microfones inadequados, não se corrigem os níveis e, com maior frequência do que seria desejável, a equipa troca impressões juntando vozes ao conteúdo sonoro requerido. Na montagem, dá-se apenas um "cheirinho" de som ambiente, expressão reveladora de falta de entendimento da linguagem audiovisual. E à emissão, quando as coisas já chegam mal, mal continuam, e se chegam bem, mas sem que o áudio tenha sido previamente misturado, corre-se o risco de, por exemplo, o nível da música ou do som ambiente ser reduzido à escala do tal "cheirinho". Tudo isto empobrece a mensagem, retirando-lhe impacto.


Outro equívoco habitual remete para a facilidade com que se transferem vozes da Rádio para a Televisão. Ao contrário do que se supõe, nem sempre uma boa voz da Rádio é uma boa voz da Televisão. Avisadamente Gontijo Teodoro reconhece que o telejornalismo exige um desempenho muito diferente do radiojornalismo, dando preferência às vozes metálicas, agudas, imprimindo um ritmo de leitura quase marcial, com ênfase nos nomes de lugares, de pessoas e nas palavras-chave de cada frase. Afirma Teodoro:


"Embora a voz grave se mostre mais suave e, por isso mesmo, impressionando melhor, não é a indicada para a leitura de notícias. A voz aguda, mais metálica e menos suave, é mais inteligível e alcança com mais facilidade o centro auditivo do ser humano. Os sons graves se perdem e se confundem, por mais perfeita que seja a aparelhagem que esteja transmitindo a fala humana e a sua consequente recepção. Acresce, ainda, que ninguém assiste televisão com cem por cento de atenção. Os ruídos circundantes, a poluição sonora, tudo colabora para dificultar a audição dos textos lidos diante de câmaras e microfones. É preferível que o locutor de notícias tenha uma voz aguda, clara, ao invés de voz grave."(37)


A SENSORIALIDADE


Ao terminar este capítulo sobre a linguagem da Televisão impõe-se, ao menos, uma referência a um dos aspectos menos conhecidos e que maiores perplexidades comporta, a sensorialidade do medium. É uma questão central do pensamento de McLuhan e dos seus seguidores, cujo alcance está longe de ter sido determinado. Genericamente, pode afirmar-se que o audiovisual, aliando som, imagem e movimento, é uma linguagem relativamente completa, visto estar perfeitamente integrada no continuum espacio-temporal no qual o homem vive. É uma linguagem integral. Destinada a ser percebida simultâneamente pelo olho e pelo ouvido, permite o empenhamento de todo o ser, o qual não necessita de recriar uma realidade parcelar, como acontece, por exemplo, com a escrita. Ora, esse empenhamento impõe, justamente, a sensorialidade, certamente um dos aspectos mais controversos e perturbadores da linguagem audiovisual:


"É ao mesmo tempo a sua força, visto que funciona ao nível da emoção, e a sua fraqueza, porque não permite uma análise rigorosa — a imaginação não é obrigada a completar uma informação já completa e o empenhamento impede o recuo, o qual facilita o exame e o juízo. O audiovisual facilita pois, a participação no acontecimento, mas nem sempre, a compreensão desse acontecimento."(38)


O que é, evidentemente, um ponto de vista nada pacífico.


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(Continua)


Notas remissivas


20. Em Junho e Julho de 1987, a Cinemateca Portuguesa com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian realizou um ciclo do Cinema Clássico Soviético. A citação é retirada de um texto não assinado do catálogo, aliás notável, que então foi publicado. Trata-se, de qualquer modo, de uma afirmação relativamente pacífica, perfilhada por inúmeros historiadores do cinema.

21. EINSENSTEIN, S. M.

Obras Escolhidas, edições Yusskússtvô, Moscovo, sem data

22. Ibidem

23. PUDOVKIN, Vsevolod

Argumento e Realização, Editora Arcádia, Lisboa, 1961

24. Ibidem

25. Ibidem

26. BORETSKY, R. e KUZNETSOV, G.

O Trabalho de Jornalista e a Televisão, Organização Internacional de Jornalistas, Praga, 1983

27. Ibidem

René Clair é citado por Boretsky e Kuznetsov

28. Ibidem

Robert Bresson é citado por Boretsky e Kuznetsov

29. Ibidem

Alexander Dovzhenko é citado por Boretsky e Kuznetsov

30. McLUHAN, Marshall

Os Meios de Comunicação com Extensões do Homem, Cultrix, S. Paulo, 1988

31. Ibidem

32. AOR DA CUNHA, Albertino

Tele-Jornalismo, Editora Atlas S.A., São Paulo, 1990

33. Ibidem

34. CLOUTIER, Jean

A Era de Emerec ou a Comunicação audio-scripto-visual na Hora dos self--media, Instituto de Tecnologia Educativa, Lisboa, 1975

35. Ibidem

36. SOLER, Llorenç

La Televisión - una metodologia para su aprendizage, Editorial Gustavo Gilli, S.A., Barcelona, 1988

37. TEODORO, Gontijo

Jornalismo na TV, Editora Tecnoprint, S.A., Rio de Janeiro, 1980

38. CLOUTIER, Jean

A Era de Emerec ou a Comunicação audio-scripto-visual na Hora dos self-media, Instituto de Tecnologia Educativa, Lisboa, 1975


 
 
 
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Imagens do Real Imaginado (IRI) do Instituto Politécnico do Porto foi o ponto de partida para o primeiro Mestrado em Fotografia e Cinema Documental criado em Portugal. Teve início em 2006. A temática foi O Mundo. Inspirado no exemplo da Odisseia nas Imagens do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura estabeleceu numerosas parcerias, designadamente com os departamentos culturais das embaixadas francesa e alemã, festivais e diversas universidades estrangeiras. Fiz o IRI durante 10 anos contando sempre com a colaboração de excelentes colegas. Neste segmento da Programação cabe outro tipo de iniciativas, referências aos meus filmes, conferências e outras participações. Sem preocupações cronológicas. A Odisseia na Imagens, pela sua dimensão, tem uma caixa autónoma.

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