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   viagem pelas imagens e palavras do      quotidiano

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Atualizado: 22 de out de 2023

É relativamente consensual entre os historiadores que muitos dos filmes mais importantes do movimento documentarista britânico foram realizados entre 1934 e 1936. As experiências poéticas de Coal Face ou Night Mail nunca teriam sido ultrapassadas. Talvez não. Mas a edição recente de um número significativo de filmes desse tempo permite descobrir ou redescobrir obras cuja relevância é inquestionável. Noutra altura, lá iremos. Para já, antecedida de um breve enquadramento teórico, fica a recensão crítica de duas obras exemplares no que respeita aos caminhos prosseguidos pelos cineastas do movimento. Os filmes são o já citado Night Mail (1936) de Basil Wright e Harry Watt e Housing Problems (1935) de Ruby Grierson, John Taylor e Edgar Anstey, para muitos uma narrativa próxima do que viria a ser reportagem de televisão.



Housing Problems (1935) de Ruby Grierson, John Taylor e Edgar Anstey.

Durante o período compreendido entre 1934 e 1936, Grierson e Cavalcanti, cada um à sua maneira, foram a grande inspiração do GPO (General Post Office) numa demonstração de como personalidades dificilmente compatíveis podiam, em função dos respetivos saberes, fomentar um ambiente favorável à melhor expressão dos talentos individuais dos seus discípulos. Mais remotamente poder-se-ia falar em Paul Rotha que não ficou no GPO. Cavalcanti detestava a palavra documentário. Vinha da vanguarda dos anos 20, trabalhara com alguns dos mais destacados cineastas franceses, era autor de Rien que les Heures (1926), uma das mais conhecidas sinfonias de cidades, e quando foi para Inglaterra andava entusiasmado com o potencial expressivo do som. Pelo contrário, Grierson suspeitava do cinema de estúdio, desacreditava do entretenimento e teorizava sobre o filme documentário. Fora do GPO, embora ligado ao movimento, Paul Rotha era o cineasta mais influente.


First Principles of Documentary, redigido entre 1932 e 1934, é uma obra no qual Grierson estabelece as premissas do documentário tal como as entendia. Coincide com um momento especialmente significativo da História dos media posto que não só é contemporânea da afirmação da rádio e do advento do cinema sonoro, mas também do desenvolvimento dos estudos científicos sobre comunicação social. É bom lembrar que enquanto escrevia os textos de First Principles of Documentary, Grierson estava empenhado na sua unidade de produção de filmes, no Empire Marketing Board (EMB), obedecendo a uma estratégia de propaganda imperial. Importa igualmente lembrar que sendo um observador atento dos media era sensível à sua função retórica, a mesma que viria a ser uma porta de passagem para abordagens do documentário de pendor mais jornalístico (1).


Nem sempre as relações entre os cineastas que se tinham repartido por diferentes companhias após a extinção do EMB terão sido as melhores. Harry Watt, por exemplo, dizia que no GPO todos acreditavam no que estavam a fazer e adoravam fazê-lo. Quanto às pequenas unidades de produção do exterior “eram desprezadas por nós”, uma afirmação cujo radicalismo é difícil de entender visto que, sob a figura tutelar de Grierson, os contactos nunca deixaram de existir, designadamente através do Film Centre. Seja como for, também a influência de Rotha se fez sentir. Em Documentary Film, ele sustentava a existência de quatro grandes tendências, alinhadas em diacronia, em torno das quais foi construindo a sua ideia de documentário de propósito social. Essas tendências - na verdade, ele chamou-lhes tradição - são a seguir sumariamente explicitadas (2).


A primeira é a tradição naturalista ou romântica e surgiu com os filmes de Robert Flaherty os quais estão associados aos avanços da antropologia. Contemporâneo de James Frazer, Malinowsky, Margaret Mead e Franz Boas, este último um defensor do reconhecimento e preservação de culturas em vias de extinção, Flaherty utilizava um método semelhante ao dos antropólogos assumindo como ponto de partida o levantamento do máximo de informação através do trabalho de campo. Nele a aproximação ao real exige a reconstrução e repetição de cenas até se atingir o momento da verdade, a qual, em última instância, é sempre a verdade do autor. Essa necessidade de busca das raízes profundas legitima a encenação, como sucede, por exemplo, em Nanook of the North (1929). Flaherty, como se sabe, foi a primeira grande influência do movimento documentarista britânico.


Rien que les Heures (1926) de Alberto Cavalcanti, a sinfonia de uma cidade - Paris - de um cineasta que viria a ter uma influência determinante no General Post Office.

A segunda tradição está relacionada com as vanguardas artísticas europeias dos anos 20. Rotha chama-lhe tradição realista ou continental visto afirmar-se essencialmente no continente e não nas ilhas britânicas. Cabem nela filmes como Rien que les Heures (1926) de Alberto Cavalcanti, Berlim (1927) de Walther Ruttmann e A Ponte (1928) de Joris Ivens. A designação desta tendência não deixa de ser contraditória. Se estes filmes remetem para o quotidiano e, nesse sentido, são realistas, nem por isso, segundo Rotha, deixam de ser exemplos de arte pela arte e, portanto, sem relevância social. Ressalva, no entanto, a presença de alguns dos pressupostos do filme documentário no que ele tem de marginal face à produção, métodos e objetivos do cinema de estúdio.


A terceira tradição está associada aos cine-jornais ou newsreels, os quais, sendo uma consequência da extraordinária difusão do jornalismo no século XX, já eram regularmente exibidos com agrado do público desde 1908. Nesta linha cabem muitos dos chamados documentaire e travelogue das primeiras duas décadas do cinema. Mas, é a partir do trabalho de Dziga Vertov e do seu Kino-Pravda, no princípio dos anos 20, que melhor podem identificar-se vias de compromisso com o desenvolvimento do filme documentário (3). Esta terceira tendência valoriza a função informativa e confunde-se, por vezes, com o jornalismo. Sobre March of Time Paul Rotha diz haver finalmente “o reconhecimento das possibilidades do cinema informativo”. Adverte, no entanto, que newsreels e documentários são coisas diferentes embora admita que os trabalhos jornalísticos bem executados possam resultar em reportagens com lugar no quadro da identificação do documentário .


Turksib (1929) de Viktor A. Turin, sobre a construção do caminho de ferro entre o Turquestão e a Sibéria. O movimento documentarista britânico foi fortemente influenciado pelo cinema soviético dos anos 20. Turksib é um dos filmes editados pelo British Film Institute nas colecções do GPO.

A quarta tendência resulta da convivência do cinema com a propaganda. Utilizada para fins exclusivamente eclesiásticos e religiosos até ao século XIX a propaganda passou depois, sobretudo com o pensamento marxista, a ser sinónimo de disseminação política e ideológica. Foi a partir do contexto da Revolução de Outubro de 1917 que, segundo Rotha, se fizeram os avanços mais significativos quanto à evolução do documentário. Diz ele: “… onde quer que o cinema se encontre ao serviço do lucro tem tendência para se situar na esfera da tradição do estúdio, ao passo que o cinema ao serviço da propaganda e da persuasão tem sido largamente responsável pelo método do documentário”.


Em suma, as ideias de Grierson, Cavalcanti e Rotha, por esta ordem, e tantas vezes contraditórias, acabaram por funcionar como uma espécie de tela de fundo conceptual dos documentaristas britânicos. A par de incursões mais ou menos marcadamente institucionais, também procuraram expor os problemas das classes trabalhadoras. Um dos filmes que melhor expressa essa inclinação no GPO é Housing Problems (1935), por sinal uma encomenda da British Commercial Gas Association. Em contraponto surge Night Mail (1936).


Night Mail (1936) de Harry Watt e Basil Wright esteve meses em cartaz. Pat Jackson, um dos documentaristas de Grierson, afirmou que o filme conseguira vencer as expectativas negativas e a razão parecia-lhe evidente, como se depreende do seguinte desabafo: “Para o diabo com o comentário antiquado e a informação aborrecida. A ideia de enunciar factos é uma velharia. Não, não vamos enunciar factos, vamos disseminar situações. Vamos dizer o que temos para dizer através de sentimentos, expressões dos rostos das pessoas, risos, etc. ”.

This is the night mail crossing the border


A estreia de Night Mail de Harry Watt e Basil Wright no Arts Theatre de Cambridge, em 1936, foi um acontecimento invulgar. Já nessa altura, com a introdução do texto off influenciada pelos jornais cinematográficos, os documentários eram encarados como peças enfadonhas e pesadamente explicativas. Passavam nas salas em complemento do filme principal e não era incomum o público manifestar o seu descontentamento. Com Night Mail sucedeu o contrário.


O filme apresenta diversas inovações e não apenas no tratamento do som. A este nível, o do som, a sua eficácia reside na articulação de diferentes elementos: a música do famoso compositor Benjamin Britten, curtos diálogos, o som do comboio em andamento e, na parte final, o ritmo verbal e a sonoridade musical do poema de W. H. Auden que dá o título ao documentário e começa assim:


This is the night mail crossing the Border,

Bringing the cheque and the postal order,

Letters for the rich, letters for the poor,

The shop at the corner, the girl next door.

Pulling up Beattock, a steady climb:

The gradient's against her, but she's on time.

Past cotton-grass and moorland boulder

Shovelling white steam over her shoulder,

Snorting noisily as she passes

Silent miles of wind-bent grasses.

Birds turn their heads as she approaches,

Stare from bushes at her blank-faced coaches.

Sheep-dogs cannot turn her course;

They slumber on with paws across.

In the farm she passes no one wakes,

But a jug in a bedroom gently shakes.



Utilizado como contraponto do discurso visual o som favorece as mudanças de cena e sugere subtis inflexões no plano da narrativa, acentuando progressivamente a vertente poética. Não é explicada ao público através de uma voz off omnisciente, como já era hábito, nem a importância do comboio nem a relevância das tarefas desempenhadas pelos trabalhadores dos caminhos de ferro. A informação solicita a experiência estética, o olhar.


Para os teóricos formalistas russos contemporâneos do movimento documentarista britânico, a percepção estética era autotélica, ou seja, um fim em si mesma. Talvez isso possa explicar, pelo menos em parte, o êxito de Night Mail. Yuri N. Tynyanov, na linha de Saussure, entendia que o mundo visível é apresentado no cinema não como tal, mas na sua relação semântica, ou seja, como signo. Em Poetica Kino, que contou com a colaboração, entre outros, do próprio Tynyanov, Eikhenbaum e Shklovsky, essa tese é desenvolvida em termos da analogia entre a linguagem do filme e a linguagem da literatura .


O tema do filme é aparentemente prosaico: o comboio correio que unia Londres a Glasgow e as tarefas desempenhados pelos seus trabalhadores. Trata-se, porém, de um dos filmes mais complexos e interessantes do GPO. Este é o selo comemorativo do GPO. Fonte: Filatelia Temática

Tynyanov comparava a montagem à prosódia e via nela, bem como na iluminação e demais artifícios do cinema, a possibilidade de aceder à visibilidade do mundo real enquanto signo. Para ele, a sintaxe do filme tinha na poesia o seu modelo mais apropriado. Boris Eikhenbaum via esse modelo na prosa narrativa e remetia o cinema para uma espécie de discurso interior a si mesmo com potencialidades latentes de significação apenas concretizadas na esfera da percepção. Por esse motivo, foi sensível àquilo a que poderia chamar-se uma fenomenologia do espectador, mais tarde declinada em vários tons nos estudos comparados dos media, na metáfora do filme enquanto sonho, nas teorias cognitivas e na meta-psicologia do destinatário desenvolvida por Christian Metz.


Considerando o cinema como um sistema particular de linguagem figurativa, Eikhenbaum atribuía um papel determinante ao estilo na ligação dos planos em unidades de significação mais complexas - cine-frases -, podendo integrar figuras como a elipse, a metáfora e outras e, nessa medida, proporcionar uma experiência estética. Acreditando nas “inescapáveis convenções da arte” as teses formalistas eram, no entanto, antigramaticais visto não se preocuparem tanto com a observância das regras de articulação dos significantes quanto com a transgressão criadora na linha dos movimentos de avant-garde. Night Mail evita a ruptura discursiva, mas tem algo dessa atitude de vanguarda combinada com a presença de elementos da narrativa clássica, permitindo ao público reconhecer códigos familiares. Muitas cenas são, inclusivamente, recriadas a partir do estúdio, uma prática recorrente no documentário britânico.


Legenda: Boris Eikhenbaum, cujos trabalhos linguísticos iriam servir de modelo a estudos de semiótica do cinema. Fonte: WorldPress.com

Embora realizado por Harry Watt e Basil Wright, Night Mail parece um filme feito à medida de Cavalcanti como sugere a presença recorrente de sintagmas habituais nos filmes de ficção. Excluindo planos autónomos e inserts, nos 24 segmentos do filme há 16 sequências simples e quatro cenas, indício do predomínio da estrutura narrativa clássica e, portanto, da dominância do nível diegético. É neste contexto que o som, de um modo geral, e o comentário, em particular, servem de suporte à representação visual. Neste ponto poderia residir uma nota dissonante, posto que o comentário introduz habitualmente uma pluralidade textual que os filmes de ficção tendem a evitar. Mas tal não acontece em Night Mail, cujo comentário, como sublinha William Guynn, prima pela discrição. Desde logo, discrição quantitativa:


“Dos 240 planos que precedem a coda poética de W. H. Auden, apenas 33 comportam a palavra extra-diegética. Nos segmentos onde aparece, o comentário não substitui os elementos diegéticos. Nunca prevalece, salvo quando a imagem denota menor quantidade de informação, ou seja, nas sequências que representam a passagem do comboio pelas paisagens nocturnas (...). Mesmo aí o comentário nunca ocupa a totalidade do campo auditivo (...) convivendo na pista sonora com uma multiplicidade de outros sons que complementam a imagem de forma sistemática. A instância diegética obedece, portanto, ao princípio da continuidade, ainda que a instância discursiva seja intermitente”.


Basicamente, o comentário cumpre aqui três funções cuja complementaridade o afastam do comentário jornalístico. É narrativo, na medida em que faz avançar a acção, suprindo, por outro lado, a ocasional falta de informação da imagem. É exegético visto que usa a autoridade do saber para identificar elementos de cena presentes na imagem, mas insuficientemente inteligíveis. É iterativo, na expressão de Guynn, porque transcende, por via da repetição, a mera linearidade narrativa – a viagem do comboio – convocando uma conjuntura mais geral e abstrata, mais histórica, na medida em que o factual quotidiano surge como metáfora de um horizonte temporal mais alargado. Assim sendo, prevalece sempre a instância diegética, aliás, enfatizada através de sucessivas modulações do estatuto da palavra: os diálogos contemplam as subtilezas dialectais em contraste com a voz neutra do comentário adequada “à vacuidade que é o símbolo da autoridade e da verdade” e no final surge uma voz modulada para dizer o texto de Auden, que acentua a dimensão poética, afinal, dominante.



Rodagem de Night Mail. Fonte: Pinterest

And now, for the people who live in the slums


Igual impacto, não apenas junto do público, mas também entre os jornalistas e na classe política, teve Housing Problems. O filme, para a época, constituiu uma novidade. Segundo Arthur Elton, Housing Problems “é como uma reportagem televisiva, só que anterior à televisão, um filme pioneiro no uso da entrevista”. Basil Wright afirmou que os procedimentos de Ruby Grierson, John Taylor e Edgar Anstey, ao deslocarem para East London os seus equipamentos de captação de som e ao entrevistarem as pessoas que ali viviam, anteciparam o cinema-vérité. Anstey, um dos autores, argumentou que nunca ninguém até essa altura tinha exposto perante o público de uma forma tão crua a vida de pessoas segregadas cujos testemunhos, na primeira pessoa, permitiam que o filme se fosse fazendo por si próprio.


Sendo isto verdade, não é menos certo que Housing Problems tem um ponto de vista de compromisso. Patrocinado por uma companhia de gás desejosa de expandir o seu negócio contrapõe aos testemunhos dos habitantes das áreas degradadas depoimentos de pessoas realojadas no bairro modelo Lea View House, em Hackney, como que apontando um percurso exemplar, do desespero à esperança, com acesso às comodidades da vida moderna, gás incluído, naturalmente. Integrando imagens de arquivo de 1928 do Health Department de Bermondsey, em Londres, que lhe permitem fazer a ponte entre o antes e o depois, o filme faz passar, ainda assim, uma nota crítica ao associar a pobreza às condições sanitárias das populações e à responsabilidade dos poderes públicos.


O efeito de Housing Problems sobre os seus próprios protagonistas, alguns dos quais, como a senhora Gray, foram ao centro de Londres pela primeira vez nas suas vidas para a estreia do filme, parece ter sido o de lhes ter permitido adquirir maior consciência da sua situação, embora autores como Brian Winston contrariem esta ideia. Em todo o caso, a denúncia levada a cabo terá fomentado uma maior atenção aos problemas da habitação, inclusivamente através do apoio à realização de novos documentários sobre temas relacionadas com cidades, ordenamento e ambiente. Entre outros, são relevantes The Great Crusade: the story of a million homes (1937), feito pela Pathé por encomenda do Ministério da Saúde, uma produção de John Grierson intitulada The Smoke Menace (1937), Kensal House (1937) de Frank Sainsbury e um documentário de Paul Rotha, New Worlds for Old (1938).


Housing Problems (1935) de Ruby Grierson, John Taylor e Edgar Anstey. Fonte: MUBI

À semelhança de Night Mail, também Housing Problems adopta uma estrutura narrativa em três actos, neste caso antecedidos de uma introdução com imagens de habitações de bairros degradados acompanhadas de um comentário em voz off: “A great deal these days is written about the slums. This film is going to introduce to you to some of the people concerned. First, Councillor Lauder, Chairman of the Stepney Housing Committee, will tell you something of the problem of slum clearance”. Pela voz do especialista segue-se o retrato dos bairros degradados ilustrado com imagens de casas miseráveis.


O primeiro acto, que coloca o problema, vem depois. É constituído por um bloco de seis minutos – cerca de um terço do tempo total do filme – com testemunhos dos habitantes, todos eles introduzido em off pelo narrador: “And now, for the people who live in the slums. Here is Mr Norwwod”. E assim sucessivamente. Os moradores olham directamente para a câmara.


O segundo acto é institucional, do domínio da propaganda. O narrador contrapõe a descrição dos novos bairros às queixas ouvidas antes e o especialista regressa para legitimar a justeza das medidas preconizadas: “When a public authority embarks on slum clearance work, it must take people as they are. It is, however, our experience that if you provide people from the slums with decent homes they quickly respond to the improved conditions and keep their homes clean and tidy”.


O terceiro acto apresenta a solução do problema através de testemunhos de moradores realojados em habitações condignas, com o especialista a fazer notar, ainda assim, que o trabalho estava apenas iniciado. No final, vozes não identificadas falam sobre as más condições de habitação sobre imagens do quotidiano nas áreas degradadas, conferindo assim ao filme uma estrutura circular.




Apesar de ter sido a principal animadora de Housing Problems, Ruby Grierson não aparece nos créditos do filme, uma situação reveladora da subalternidade das mulheres. Nao foi caso único. Fonte: Girls on Top

Excerto de um texto de John Grierson sobre a irmã.

Ao contrário de Night Mail, essencialmente poético, Housing Problems é predominantemente jornalístico. Inspirado em March of Time, tem um texto off informativo, no qual a função fática da linguagem é recorrente nos depoimentos especializados. Tratando-se de um filme patrocinado e sendo a mensagem do patrocinador explícita houve quem, ironicamente, sugerisse a mudança do título para Housing Solutions. Visto agora este documentário poderá parecer datado. E está. Mas visto em contexto é revelador não só dos diferentes rumos do movimento documentarista britânico mas também das contradições que o marcaram. Referindo-se à figura tutelar de John Grierson, Edgar Anstey resumia assim esse universo contraditório:


“Suponho poder dizer que Grierson era basicamente um professor, um educador (...), ainda que fosse simultaneamente algo esquizofrénico quanto à separação do propósito social do documentário de uma qualquer declaração apaixonada sobre arte, palavra que ele nunca nos permitia pronunciar. Mas, por outro lado, se algum de nós fizesse alguma coisa que pudesse ser encarada fora do contexto artístico (...) fazia desabar toda a sua ira sobre o visado porque acreditava, como eu acredito, que apenas se pode comunicar através da arte ”.

Um debate que continua aberto


Este conflito, tipificado em torno de Night Mail e Housing Problems, é, afinal, um dos aspectos centrais do debate iniciado e aprofundado no movimento documentarista britânico, cujo eco continua presente. Rotha, sendo sensível a Night Mail, afirma que dele apenas guardou na memória a imagem do comboio ao longo do seu percurso. Tão pouco se recordava de qualquer outro protagonista que não o próprio comboio. Ora os tempos difíceis, segundo ele, apontavam para a urgência de mostrar a vida quotidiana de homens e mulheres na sociedade como ela era. É verdade que filmes como Housing Problems ou Smoking Menace procuravam fazê-lo. Faziam-no, porém, sob a influência de March of Time, sem atender ao rigor da forma nem cuidar da dimensão estética. Na segunda edição de Documentary Film, escreveu:


“Ao adoptar a exposição dos factos num estilo jornalístico, um filme como The Smoking Menace demonstrou negligenciar a importância visual do medium. Utilizou as imagens como mera ilustração do comentário, aqui e além alternando com entrevistas, o que nada tinha a ver com a beleza pictórica da fotografia habitualmente associada ao documentário. A fórmula, porque era disso que se tratava, acabou por limitar a intervenção do realizador e do seu estilo pessoal”.




(Continua)


Notas remissivas


1. Nota do Autor: sobre esta questão ver neste blogue artigos 1 e 2 sobre o Movimento Documentarista Britânico.

2. Nota do Autor: para um melhor conhecimento sobre a tradição do documentário segundo Paul Rotha ler no segmento de Cinema deste blogue: Cinema informativo, reportagem e documentário. Os primeiros anos: encontros, desencontros e derivas.

3. Nota do Autor: sobre esta questão há abundante informação neste blogue. Ver, por exemplo, Newsreels, documentário e Buster Keaton: os anos de ouro das atualidades cinematográficas e O Cine-Olho, o Cine-Punho e o Homem Novo (anos 20, séc. XX).


Bibliografia


AITKEN, Ian – The Documentary Film Movement - An Anthology, Edited and Introduced by Ian Aitken, Edinburgh University Press, Edinburgh, 1998.

ARNHEIM, Rudolf – Film as Art, Faber, London, 1957.

- A Arte do Cinema, Edições 70, Lisboa, 1989.

BARNOUW, Erik – El Documental – Historia y estilo, Editorial Gedisa, Barcelona, 1996.

BARSAM, Richard M. – Non-Fiction Film, a Critical History, Indiana University Press, Bloomington and Indianapolis, 1992.

ELLIS, Jack C. – John Grierson: A Guide to References and Resources, G. K. Hall, Boston, 1986.

- The Documentary Idea - A Critical History of English-Language Documentary Film and Video, Prentice Hall, New Jersey, 1989.

GRIERSON, John – Grierson on Documentary, Forsyth Hardy, University of California Press, Berkeley and Los Angeles, 1966.

Grierson on Documentary, ed. Forsyth Hardy, Faber and Faber, London and Boston, 1966.

LIPPMANN, Walter – Public Opinion, MacMillan, New York, 1921.

ROTHA, Paul – Documentary Film, Faber and Faber, London, 1952.

- Documentary Diary, Hill and Wang, New York, 1973.

- Television in the Making, edited by Paul Rotha, The Focal Press, London and New York, 1956.

SUSSEX, Elisabeth – The Rise and Fall of British Documentary, University of California Press, Berkeley, Los Angeles, London, 1975.





  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 19 de fev de 2021
  • 13 min de leitura

Esta é a parte da Odisseia nas Imagens correspondente ao terceiro módulo da programação ao qual foi dado o nome de Apocalípticos e Integrados. Foi uma programação extremamente ambiciosa com um conjunto de iniciativas muito diversificado nas áreas do Cinema, Televisão e Multimédia. No Cinema Documental, recuperou-se a memória do Cinema Direto, tendo estado presente, nomeadamente, Albert Maysles. No Cinema de Animação, entre outras iniciativas, houve uma retrospetiva de Ladislas Starewitch. E no grande Cinema de Autor mostrou-se a obra completa de Luchino Visconti. Foi também exibido pela primeira vez, em Portugal, o trabalho do documentarista americano Errol Morris, com destaque para a sua obra em televisão. De igual modo, tiveram grande ressonância os filmes-concerto Nanook of the North de Robert Flaherty com música ao vivo do grupo de jazz experimental de Nils Petter Molver – uma encomenda da Odisseia nas Imagens – e Juha, filme mudo do mais conceituado realizador finlandês Aki Kaurismaki também com música ao vivo da Anssi Tikanmäki Filmorchestra.


Robert Drew, à direita, durante a rodagem The Primary (1960). Fonte: MoMA

O terceiro módulo da Odisseia nas Imagens, que decorreu entre 14 de Março e 19 de Julho de 2001, adoptou a designação de Apocalípticos e Integrados podendo ler-se nas últimas páginas do catálogo de O Olhar de Ulisses um texto introdutório [1], no qual se afirmava: “Apocalípticos e Integrados, o clássico de Umberto Eco sobre a cultura de massas publicado em 1964 é hoje muito mais do que um título: é uma expressão recorrente em função da qual se perspectivam posições antagónicas a respeito do modo de relacionamento do homem com o mundo e dos homens entre si. Do lado do Apocalíptico perfila-se a insubmissão: subjaz ao conceito um intuito redentor. Do lado do Integrado emerge o conformismo: o paradigma é a norma. Reportando a Eco: “O Apocalipse é uma obsessão do dissenter, a Integração é a realidade concreta daqueles que não dissentem”. É isto que fundamentalmente nos interessa, mas entendido num sentido literal que se não prescinde do quadro de referências do debate da época sobre a cultura de massas também não faz dele, longe disso, o centro das preocupações do 3º módulo da Odisseia nas Imagens [2]”. Acrescentava-se depois: “Por exemplo, a partir da exposição da Magnum a propósito da rodagem de Misfits, de John Huston, é possível empreender um percurso através do qual seguramente se deparam muitos dos temas abordados não apenas por Eco, mas também por Morin ou Barthes, como sejam o Olimpo das estrelas de cinema ou o papel dos mitos na efabulação do quotidiano. Mas para além desse catálogo do óbvio importa-nos alargar o sentido conotativo de Apocalípticos e Integrados a outros territórios, seja no domínio da relação entre o eu e o outro, que é uma das entradas da Programação do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura e que tem expressão em ciclos como os de Visconti e Errol Morris, seja na esfera do trabalho de criação, nomeadamente no que respeita às linguagens de ruptura das tecnologias multimédia, seja, ainda, em torno dos temas elencados nas masterclasses que integram os Lugares da Imagem [3]”. E adiante: “Trata-se, ao fim e ao cabo, de inflectir o debate sobre a diferença e sobre as imagens dessa mesma diferença no universo do Cinema, do Audiovisual e do Multimédia, tantas vezes orientado em torno de uma lógica consensual de conveniência, para um espaço mais interpelativo e menos integrado [4]”.


The Misfits (1961) de John Houston

Ter tomado de empréstimo o título da obra de Umberto Eco obedeceu a razões de vária ordem, todas elas convergindo no sentido de explicitar plenamente os intuitos previamente delineados. Pela primeira vez, um módulo da Odisseia nas Imagens deixava de ter um título comum a O Olhar de Ulisses, cuja designação – A Utopia do Real – aparecia em subtítulo [5]. Desse modo, sem retirar importância à iniciativa apoiada pela Cinemateca Portuguesa, chamava-se a atenção para o carácter pluridisciplinar da Programação, até então quase exclusivamente centrada no cinema, e procurava-se não só chegar a outros públicos, mas também ir ao encontro de expectativas reiteradamente feitas sentir por outros parceiros da Odisseia nas Imagens. Apocalípticos e Integrados recuperava um tempo histórico contemporâneo da afirmação da televisão enquanto medium dominante, bem como de uma panóplia de media interagindo num contexto de cultura de massas em relação ao qual a política dos autores surgia, de algum modo, como contraponto em todos os territórios da significação, da fotografia ao cinema, da televisão à banda desenhada, das artes plásticas à literatura. Nessa medida, se importava revisitar uma época marcante do mundo contemporâneo, importava igualmente fazê-lo sem complacência nem nostalgia, evitando a tentação de alimentar mitos instalados, e procurando, ao invés, proceder a uma interpelação no quadro dos desafios da arte e comunicação do novo milénio.


Exposição da Magnum sobre a rodagem de Misfits com 48 fotografias de nove fotógrafos

Razões semelhantes justificavam a presença da exposição de fotografias de Gerard Malanga e Andy Warhol [7], bem como o ciclo de masterclasses designado por Lugares da Imagem, sempre com lotações esgotadas no Pequeno Auditório do Rivoli - Teatro Municipal, no qual participaram António Pedro Vasconcelos, Román Gobern, Joan Fontecuberta e Margarida Ledo Andión [8]. Ocupando a imagem e o olhar um espaço central no mundo contemporâneo, suscitavam-se questões como as seguintes: “Que relação estabelecemos nós com as imagens? Como contribuem elas para a construção da realidade e o conhecimento do mundo? E o olhar? Que códigos subjazem às modalidades discursivas que remetem para o olhar? E não convergem estas interrogações para o plano da cidadania? E da Arte [9]”?


Por outro lado, o conceito de Apocalípticos e Integrados permitia programar, num contexto ousado, um conjunto de eventos de grande impacto mediático combinando os aspectos aparentemente mais convencionais do cinema com intervenções noutros domínios numa perspectiva de cruzamento de linguagens. Estas abordagens transversais, para além de múltiplas iniciativas multimédia (Digital Cinema [10], Instalações de Tim Macmillan [11], Música Electrónica de Joel Ryan [12], Performance Cinemática de Hexstatic [13], Stereovision-Ciclo de Cinema em 3D [14] e a estreia mundial, em colaboração com a Casa da Música, do álbum Drawn From Life de Brian Eno [15]) tiveram dois momentos especialmente significativos em Nanook of the North (1922) de Robert Flaherty com música ao vivo do grupo de jazz experimental de Nils Petter Molver [16] – uma encomenda da Odisseia nas Imagens – e em Juha (1999) filme mudo do mais conceituado realizador finlandês Aki Kaurismaki com música ao vivo da Anssi Tikanmäki Filmorchestra [17]. Quer num caso, quer no outro as referências críticas foram positivas [18]. No mesmo sentido foram delineadas duas retrospectivas. Uma, de Luchino Visconti, questionando o cinema moderno a partir de uma das suas figuras de referência, dividia-se pelos dois últimos módulos da Programação, sobrando para o módulo final apenas O Leopardo (1963) destinado a encerrar simbolicamente a Odisseia nas Imagens. A outra, de Errol Morris, uma novidade para o público português, cujos filmes e programas de televisão não seriam compagináveis com os critérios de O Olhar de Ulisses, como, aliás, aconteceu igualmente com a maioria dos documentários americanos de última geração.


No catálogo [19] de Mr. Death, a América de Errol Morris [20], depois de se afirmar que a Programação abria “as portas a um dos mais controversos criadores contemporâneos [21]”, escrevia-se: “Uma Programação aberta, como esta, para além de atender à diversidade dos públicos, não pode deixar de ser interpelativa e provocatória. Por isso, neste capítulo da Odisseia nas Imagens (...) procurou jogar-se um jogo de contrários quer no plano da diversidade das abordagens temáticas, quer no plano das linguagens que suportam os discursos propostos. Será Morris um produto da cultura de massas? E será apocalíptico, porque tudo põe em causa, ou, pelo contrário, será integrado na medida em que os seus filmes suscitam a adesão do grande público e parecem responder a uma procura que se identifica com as estratégias desenvolvidas no contexto dos dispositivos da televisão? Quem é, afinal, Errol Morris? Quem é esta personagem cujos interesses nos remetem para um território de limites confinantes com os do universo do sensacionalismo tablóide e, contudo, dele se distanciam através de uma trama urdida em torno de personagens e acontecimentos em relação aos quais há tanto de simpatia humana, quanto de vontade de conhecimento? Será Morris um cineasta? Ou estaremos em presença de um demiurgo de outra condição [22]”? Quanto a Violência e Paixão: os Filmes de Luchino Visconti, ciclo organizado em colaboração com a Scuola Nazionale de Cine de Roma e a Cinemateca Portuguesa, procurou-se, antes de mais, dar a conhecer a um público mais vasto e, sobretudo, às novas gerações, um autor controverso, cujos filmes foram objecto de acesa discussão e de avaliações contraditórias, demonstrando, nessa medida, as contingências dos critérios do gosto. Talvez por isso, fora dos círculos cinéfilos, Visconti permanecia ainda relativamente mal conhecido em Portugal: “Alguns dos seus filmes anteriores a 1974 não estrearam em Portugal, tendo acontecido mais que uma vez a sua apresentação pública com cortes da censura. Para tanto muito contribuiu a sua filiação no pensamento marxista. Mas é bom não esquecer que estamos perante um cineasta sem dogmas, nos antípodas do panfletário que subverte o primado da arte para sustentar o jogo da batota ideológica. Por isso, quando entrou em ruptura com o Partido Comunista Italiano, também não faltou quem pretendesse colar-lhe o labéu de fascista. Agora, de uma forma mais serena, a obra completa de Visconti é dada a ver tal qual é: uma profunda reflexão sobre o Homem e sobre a História de uma assombrosa e, por vezes, pungente beleza [23]”.


Apesar de uma retrospectiva da Fundação Gulbenkian em Janeiro e Fevereiro de 1977, a verdade é que a partir de então a obra de Visconti apenas voltara a ter exposição meramente episódica, fosse em sessões da Cinemateca Portuguesa, fosse em cineclubes, eventualmente uma ou outra reposição no circuito comercial. As recensões críticas de determinados sectores sobre os seus últimos filmes tinham sido ferozes, nomeadamente na 2ª série da Revista Cinéfilo (73 e 74) “onde, desde ‘antiquário do cinema’ a ‘costureiro confundido com cineasta’, lhe chamaram de tudo, vendo, nos filmes desses anos, a patética confirmação de uma senilidade decadente [24]”. Com tais antecedentes, dada a revisão crítica de que a sua obra vinha sendo objecto, nomeadamente em Itália, e dada a flagrante actualidade dos seus temas, Visconti encaixava na perfeição no conceito deste módulo. Quanto a O Olhar de Ulisses, obedecendo a sua programação a uma ordem temporal dos principais episódios da História do Documentário, cruzando embora diferentes obras de autor deslocadas dos espaços diacrónicos de referência, também o conceito de Apocalípticos e Integrados parecia poder ser explorado, tanto mais que permitia enquadrar as inovações narrativas resultantes das tecnologias de som e imagem desenvolvidas a partir do final dos anos 50 que foram determinantes para o aparecimento de uma geração de iconoclastas nos Estados Unidos, Canadá, França e Reino Unido. Contudo, o ciclo optou por uma outra designação, aliás, igualmente coerente com o espírito da época e, porventura, mais de acordo com uma abordagem estritamente do domínio da cinéfilia: A Utopia do Real [25]. Contando, nomeadamente, com a presença de Albert Maysles, fez uma breve passagem pelo cinema directo, mostrou alguns filmes britânicos do free cinema, convocou o exemplo do canadiano de língua francesa Michel Brault, mostrou Jean Rouch, a nouvelle vague e um conjunto de filmes identificados com o cinema de arte ensaio: "A Utopia do Real" propõe filmes que questionam a relação do cinema com o real uma vez que, cronologicamente, a programação aborda um período particularmente rico em que se verifica, por exemplo, o reforço da utilização do não actor (Rouquier, Visconti), a deslocação do cinema para as áreas urbanas populares deixando as princesas de lado para filmar os operários e os marginais (Rogosin, Free Cinema) etc. O confronto com outros filmes sensivelmente do mesmo período, mas com abordagens radicalmente diferentes (Pollet, Reis, Pelechian) permite descobrir outros modos de revelação do real, seja através do recurso à poesia, seja através da própria ficção [26]”.

O ciclo abriu com Cinema (2001) de Fernando Lopes uma encomenda “coerente com as linhas estratégicas da Odisseia nas Imagens visto que através deste filme se pretendeu homenagear o pioneiro portuense do cinema português Aurélio da Paz dos Reis, de modo a evocar a memória da cidade do Porto enquanto cidade de imagens [27]” e voltava a dar carta branca a Jean-Michel Arnold e a Annick Demeule do CNRS de Paris para um novo ciclo de Imagens da Ciência [28]. A par deste núcleo duro de programação, este terceiro módulo dava igualmente sequência ao protocolo assinado com a Casa da Animação através de uma Retrospectiva dos Estúdios Filmógrafo [29], uma Retrospectiva do Cinema de Animação de Ladislas Starewitch [30], uma Retrospectiva da Animanostra [31] e uma Retrospectiva do Cinema de Animação Canadiano [32], iniciativas às quais estavam associadas diversas acções de formação ministradas por especialistas portugueses e estrangeiros. Outras acções de formação diziam respeito a workshops sobre Interactive Media [33], Improvisação Vídeo [34], Direcção de Fotografia Cinematográfica [35], Web Design [36], A Palavra no Cinema [37] e Imagens da Ciência [38].

Ladislas Starewitch, o pai da animação stop-motion. Fonte: Culture. PI

O módulo integrava ainda O Festival Internacional de Curtas Metragens de Vila do Conde com iniciativas pensadas para a Odisseia nas Imagens [39], bem como duas iniciativas com a RTP e uma com a Federação Internacional de Cineclubes. No primeiro caso tratava-se de dar seguimento à política de apoio a áreas de intervenção estratégicas como eram as curtas-metragens. Quanto à RTP, dado o intuito de prosseguir o debate em torno da descentralização do serviço público de televisão valorizando a sua componente regional, foram integradas na Programação duas iniciativas: a Mostra Atlântica de Televisão (MAT) [40] e o CIRCOM [41]. Habitualmente organizado pela RTP/Açores o MAT era um festival de documentários de Televisão tendo o mar como temática central. Realizava-se anualmente nos Açores com o apoio do governo regional, nele participando habitualmente todos os principais operadores de televisão europeus, públicos e privados, nomeadamente a BBC, RAI, TVE, FR3, televisões públicas escandinavas, bem como canais temáticos, como o Arte e produtoras especializados, como a Thalassa. Havia ainda uma presença significativa dos países africanos de língua oficial portuguesa e do Brasil. No âmbito do protocolo assinado entre a Capital Europeia da Cultura e a RTP o MAT 2001 teve lugar no Porto e nele discutiu-se, efectivamente, com repercussão na comunicação social, O Espaço Regional no contexto Audiovisual Europeu [42]. Já a reunião do CIRCOM, muito voltada sobre si própria, passou praticamente despercebida. Quanto ao Congresso da Federação Internacional de Cineclubes [43] o apoio da Odisseia nas Imagens pressupunha a inclusão na agenda de um ciclo de cinema da Invicta Film, com o apoio da Cinemateca Portuguesa, bem como uma homenagem a um dos pioneiros do cineclube do Porto, Henrique Alves Costa. Pretendia-se com estas duas iniciativas retomar a memória histórica do cinema na cidade, mas conferindo-lhe um sentido prospectivo na medida em que apareciam associadas ao processo de recuperação de uma produção local, na altura centrada essencialmente nas escolas. Este módulo foi amplamente noticiado recolhendo referências positivas em toda a imprensa. Os Cahiers du Cinema colocaram on line no seu sítio a programação de O Olhar de Ulisses. Na televisão, a RTP proporcionou uma visibilidade sistemática à Odisseia nas Imagens através do programa diário sobre a Capital Cultural acordado nos termos do protocolo assinado com a Sociedade Porto 2001.


Joan Fontcuberta, participante nas masterclasses promovidas pela Odisseia nas Imagens em colaboração com a Universidade do Porto com uma comunicação intitulada Fotografia: Entre o Segredo e a Suspeita. em Lugares da Imagem. Fonte: El Periódico

Algumas lições foram igualmente extraídas. Como se previra, uma programação delineada nos termos em que esta o estava a ser corria o risco de assumir contornos imprevistos em função das dinâmicas que ela própria ia criando. Uma das dificuldades resultava da necessidade de dotar o modelo organizativo de maleabilidade e flexibilidade adequadas aos ajustamentos que se iam revelando aconselháveis. Isto porque o desenvolvimento de algumas iniciativas acabou por ser consequência de uma receptividade sempre crescente em relação à Programação – muitos eventos como O Olhar de Ulisses, os filmes concerto, as masterclasses de Os Lugares da Imagem e o ciclo Visconti, para citar apenas alguns, tiveram lotações esgotadas ou perto disso – o que terá contribuído para múltiplas novas solicitações por parte de parceiros e agentes sociais e culturais. A extensão de Apocalípticos e Integrados, bem como a sua complexidade, imppôs uma clarificação de tarefas dos elementos residentes da Programação da Odisseia nas Imagens e a contratação temporária de outros colaboradores tendo em vista o cumprimento integral dos objectivos prosseguidos [44]. (Continua)


Notas remissivas

[1] . Catálogo O Olhar de Ulisses III – Utopia do Real, Odisseia nas Imagens, Departamento de Cinema, Audiovisual e Multimédia do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura/ Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 2001, pp. 432-433. [2] . Anexo I – p. 103. [3] . Anexo I – pp. 81-99. [4] . ibid. [5] . Anexo I – p. 103. [6] . Anexo – p. 107 [7] . Anexo I – p. 107. [8] . Anexo I – pp. 110-113. [9] . Anexo I – p. 110. [10] . Anexo I – pp. 133-135. [11] . Anexo I – pp. 135-36. [12] . Anexo I – pp. 136-137 [13] . Anexo I – p. 138. [14] . Anexo I – p. 143. [15] . Anexo I – p. 151. [16] . Anexo I – pp. 108-109. [17] . Anexo I – pp. 125-126. [18] . Ver Anexo I – pp. 171, 180-181. [19] . Anexo I – p. 132. [20] . Anexo I – pp. 127-132. [21] . Anexo I – p. 127. [22] . ibid. [23] . Anexo I – p. 139. [24] . Bénard da Costa, João – Luchino Visconti: o último esteta, Catálogo Violência e Paixão: os filmes de Luchimo Visconti, Porto 2001/ Odisseia nas Imagens, Porto, 2001, p.163. [25] . Anexo I – pp. 115-125. [26] . Anexo I – p. 115. [27] . Anexo I – p. 113. [28] . Anexo I – p. 121-125. [29] . Anexo I – pp. 144-145. [30] . Anexo I – pp. 146-147. [31] . Anexo I – pp. 148-149. [32] . Anexo I – pp.156-159. [33] . Anexo I – pp. 145-146. [34] . Anexo I – p. 150. [35] . Anexo I – pp. 151. [36] . Anexo I – p. 153. [37] . Anexo I – p. 155. [38] . Anexo I – p.156. [39] . Anexo I – pp. 153-155. [40] . Anexo I – p. 152. [41] . Anexo I – p. 152-153. [42] . Anexo I – p. 184. [43] . Anexo I – pp. 143-144. [44]. No que diz respeito aos recursos humanos, para dar corpo à Odisseia nas Imagens toda a organização de trabalho do departamento de Cinema, Audiovisual e Multimédia assentou num núcleo central de seis pessoas: Jorge Campos (Programador /Coordenador), Dario Oliveira, Miguel Dias, Carla Morais, Pierre-Marie Goulet e Teresa Garcia. A distribuição de tarefas foi sendo determinada em função da própria lógica da Programação, ou seja, à medida que o caminho se ia fazendo. O trabalho conceptual da Odisseia nas Imagens foi da responsabilidade do responsável do departamento. Coube-lhe fazer o desenho da Programação no seu conjunto, bem como o trabalho de análise, inventariação e diagnóstico do panorama audiovisual e multimédia da cidade – contando, na primeira fase, com o apoio do Professor Artur Pimenta Alves, do INESC – os contactos com os protagonistas do sector e as negociações conducentes à assinatura dos protocolos e acordos elencados no Anexo I. Algumas destas tarefas foram apoiadas por Dario Oliveira. Com a Programação em marcha, os elementos da equipa foram sendo responsabilizados por eventos específicos. Dario Oliveira programou ciclos de cinema e ficou responsável pela programação multimédia, acompanhando os workshops desta área; Pierre-Marie Goulet e Teresa Garcia ficaram com o ciclo O Olhar de Ulisses deram seguimento aos workshops e outras iniciativas da Associação entretanto criada Os Filhos de Lumière; Miguel Dias esteve igualmente em O Olhar de Ulisses e noutros ciclos de cinema, dando apoio a toda a programação cinematográfica; Carla Morais não só coordenou toda a Produção como acabou por desempenhar tarefas aos mais diversos níveis, das relações públicas ao acompanhamento de sessões; e o responsável pelo departamento, Jorge Campos, fez a coordenação geral da Odisseia nas Imagens, assegurou os contatos institucionais e programou os eventos mais directamente ligados às universidades e ao Festival do Documentário. Diretamente ligados à Programação de O Olhar de Ulisses e de Como Salvar o Capitalismo/ Outras Paisagens estiveram igualmente ligados, respectivamente, José Manuel Costa da Cinemateca Portuguesa e Margarida Ledo Andión da Universidade de Santiago de Compostela. Independentemente do trabalho da equipa nuclear, em todos os módulos da Programação, foi necessário recorrer a um número crescente de contratados, nomeadamente o jornalista Rui Pereira para os contactos com a Comunicação Social. Na primeira edição, contou-se com a presença de mais dois colaboradores, na segunda de mais cinco, na terceira foram 17 e na última 44. Nos terceiro e quarto módulos da Programação, foi ainda necessário contratar. respetivamente. uma e duas empresas de serviços técnicos qualificados. Houve, ainda, o envolvimento do Departamento de Produção, com o qual se estabeleceu uma relação prática e eficaz, ainda que limitada a um número reduzido de eventos e funções. – Nota do Autor.






Atualizado: 22 de out de 2023


Quando vejo um filme, das duas uma, ou o filme continua na minha cabeça até muito depois de o ver, ou simplesmente esqueço-o. Também há filmes que não vejo até ao fim. E outros que vejo muitas vezes. Bram Fischer (2017) de Jean Van De Velde é daqueles em que se fica a pensar, não apenas por motivos da razão, mas também pela razão dos afetos. Acontece-me algo de parecido com os livros. Suponho ter isto a ver numa primeira camada com a inteligência emocional e, depois, com aquilo que é habitualmente designado por fenomenologia do espectador - ou do leitor -, em função da qual cada um de nós, em maior ou menor grau, assume a co-autoria da obra. Ora este é um filme que transportando-me ao passado, me reconcilia com o presente e abre uma janela para o futuro. Passou a fazer parte de mim. E eu dele.



Quando em 1966 fui a Pretória pela primeira vez para começar a tratar da minha inscrição na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, nada sabia do famoso julgamento de Rivonia, cuja sentença condenara Nelson Mandela a prisão perpétua. Sabia que ele estava preso, apenas isso. Eu tinha 18 anos. A imprensa moçambicana raramente mencionava Mandela e quando o fazia era para o apresentar como o chefe terrorista que atentava contra a boa ordem do apartheid sul africano. A guerra colonial seguia o seu curso. Também dela pouco se falava salvo para comunicar operações de sucesso das tropas portuguesas, na versão oficial sempre à beira de acabar com os chamados focos de rebelião. Mas, da guerra colonial, por razões de proximidade, sempre se ia sabendo alguma coisa. Aliás, muita coisa. Embora, no paraíso artificial que era Lourenço Marques, entre os jovens brancos fossem bem mais aqueles que ou não queriam saber ou preferiam iludir-se na fantasia da mitologia nacionalista vivida em casa e ensinada na escola. Havia, obviamente, exceções. Conheço até quem, ainda durante a guerra colonial, tenha ingressado na Frelimo.


A minha primeira impressão de Pretória, a capital da África do Sul, ficou influenciada por funcionários de uma burocracia agressiva, pessoas desagradáveis, de modos bruscos, recusando falar inglês. Nessa altura, valha a verdade, esclarecida a circunstância de ser um português de Moçambique, as coisas melhoraram consideravelmente. Condescenderam em falar inglês. Tornaram-se mais amáveis. Ao fim e ao cabo, também na terra dos vizinhos se combatiam terroristas como Mandela, segundo eles. Quem eram eles? Pois eram os Afrikaners, o grupo mais numeroso de quantos constituíam a minoria branca, a base do regime, muitos deles descendentes dos colonos calvinistas dos Países Baixos que tinham lutado contra o Império Britânico. A sua língua era o Afrikaans.


Quando voltei a Pretória alguns anos mais tarde já me tinha apercebido do quanto essa primeira impressão só parcialmente correspondia à realidade. Com efeito, alguns dos intelectuais e oposicionistas mais destacados da África do Sul vinham dessa linhagem dos boers como era o caso do homem cujo nome dá o título a este filme do holandês Jean Van De Velde, Bram Fischer - An Act of Defiance.


Bram Fischer (Peter Paul Muller) discute a estratégia da defesa para o julgamento de Rivonia

Bram Fischer liderou a equipa de advogados de defesa de Nelson Mandela e dos seus dez companheiros da Aliança do Congresso Africano (ANC), todos acusados de alta traição, no julgamento realizado no Palácio da Justiça, em Pretória, nos anos de 1963/64. Lembro-me do edifício de cor ocre, uma elegante embora austera construção do século XIX, em Church Square, bem como da estátua do mítico Paul Kruger, herói afrikaner, mas, por qualquer razão, lembro-me sobretudo das ruas marginadas de jacarandás como se a profusão de flores lilases emprestasse leveza a um lugar estigmatizado como símbolo da segregação racial. Não sei se hoje Church Square continua a ser Church Square, se ainda há jacarandás. Sei que a memória desse outro tempo, tão rigorosa e sobriamente evocada no filme, me devolveu inteiro o discurso do julgamento de Rivonia - só tive conhecimento dele depois da minha primeira passagem por Pretória -, no qual Mandela denunciou com liminar clareza a engrenagem do apartheid:


“A falta de dignidade humana vivida pelos africanos é resultado direto da política de supremacia branca. A supremacia branca supõe a inferioridade negra. A legislação que visa preservar a supremacia branca institucionaliza essa noção. As tarefas subalternas na África do Sul são invariavelmente realizadas por africanos. Quando qualquer coisa precisa ser carregada ou limpa, o branco olha em volta, à procura de um africano que o faça por ele, quer o africano seja empregado por ele, quer não. Devido a esse tipo de atitude, os brancos tendem a olhar os africanos como uma raça diferente”.


Ainda Mandela:


“Não nos veem como pessoas que têm as suas próprias famílias; não percebem que nós temos emoções; que nos apaixonamos, como se apaixonam os brancos; que queremos estar com as nossas mulheres e os nossos filhos, como os brancos querem estar com os deles; que queremos ganhar dinheiro, dinheiro suficiente para sustentar as nossas famílias adequadamente, alimentá-las, vesti-las e fazê-las frequentar a escola. E que empregado doméstico, jardineiro ou lavrador braçal pode algum dia ter a esperança de fazer isso?”


Rigorosamente assim, posso testemunhá-lo. Tal como o fez Bram Fischer, um dos mais conceituados advogados da África do Sul vivendo confortavelmente com a família numa moradia com piscina numa zona residencial reservada a brancos onde não faltavam os serviçais negros para as tarefas domésticas. Naquele tempo era assim. Mas Bram Fischer não só conhecia como poucos os mecanismos jurídicos do regime, como também estava empenhado em destruí-lo para abrir caminho a uma sociedade justa e democrática. Na verdade, ele era um destacado dirigente do Partido Comunista Sul-Africano na clandestinidade, algo que tanto as autoridades quanto a maioria das pessoas, mesmo as mais próximas, à exceção da mulher, desconheciam. Para as autoridades, até determinada altura, Fischer poderia ser um opositor liberal, nunca um comunista. Como suspeitar a tal ponto de um membro da aristocracia afrikaner, formado em Oxford, filho do juiz Presidente do Orange Free State e neto do Primeiro Ministro da colónia de Orange River? Na sua autobiografia The Long Walk to Freedom, Nelson Mandela descreve-o como “the bravest and staunchest friend of the freedom struggle that I have ever known”. Um homem que tinha tudo e que de tudo abdicou em nome de princípios, por decência, observando a sua consciência face à situação descrita por Mandela no tribunal de Pretória:


“A pobreza e a desintegração da vida familiar têm efeitos secundários. Crianças perambulam pelas ruas das townships porque não têm escolas a frequentar, ou não têm dinheiro que lhes possibilite frequentar a escola, ou não têm pais em casa para verificar se vão à escola, porque pai e mãe, quando os dois estão presentes, precisam trabalhar para manter a família viva. Isso leva a uma ruptura nos padrões morais, ao aumento alarmante da ilegitimidade e à violência crescente que explode não apenas politicamente, mas em toda a parte. A vida nas townships é perigosa. Não se passa um dia sem que alguém seja apunhalado ou agredido. E a violência é levada para fora das townships, para as áreas residenciais brancas. As pessoas têm medo de andar sozinhas na rua à noite. Os assaltos e arrombamentos de casas vêm aumentando, apesar do fato de que tais crimes podem agora ser punidos com a sentença de morte. Sentenças de morte não podem curar a ferida aberta.”


Bram Fischer e a mulher, Molly Krige (Antoinette Louw)

Tudo isto constitui o pano de fundo de filme de Jean Van De Velde. Feito com meios relativamente modestos, apesar de beneficiar de um acordo cultural para a produção de cinema celebrado entre a Holanda e a República da África do Sul, bem como do apoio de alguns organismos e programas europeus, o filme é paradigmático quanto a sobriedade e rigor. Evita quer a ganga retórica quer o espectáculo gratuito, assumindo uma vertente documental que assenta numa estrutura narrativa clássica em três atos. Esse realismo, sublinhado por uma excelente reconstituição da época, confere espessura dramática a personagens complexas vivendo no fio da navalha, e faz avançar a história em função de pontos de viragem ancorados em fatos comprovados.


Em Abril de 1960, o Congresso Nacional Africano (ANC) e o Congresso Pan Africano foram ilegalizados. À semelhança do que aconteceu nas colónias portuguesas, sem interlocutores no plano institucional, os movimentos da resistência sul-africana voltaram-se gradualmente para a luta armada. Em 1961, o ANC e os seus aliados do Partido Comunista formaram o Umkhonto we Sizwe (MK) dando início a um plano de sabotagem. Mandela saiu clandestinamente do país em busca de apoios de países africanos independentes, designadamente para efeito de treino de um exército de guerrilha. No regresso ao país foi preso. Mais tarde, em 1963, a polícia conseguiu localizar o quartel-general do MK num subúrbio de Rivonia, a norte de Joanesburgo, prendendo 17 pessoas, entre elas os mais destacados dirigentes do movimento, e apreendendo numerosos documentos. Os detidos ficaram incomunicáveis com base numa lei recente feita à medida da situação. Sete deles, a par de Mandela e outros companheiros, iriam responder por crimes do âmbito da Lei da Sabotagem de 1962 que instituíra a pena de morte. Era essa a sentença que pairava no julgamento de Pretória.


Bram Fischer - notável interpretação do ator Peter Paul Muller - elabora uma estratégia orientada no sentido de tentar evitar a condenação à morte pela forca pedida pelo Procurador-Geral, Percy Yutar, o mesmo que Nelson Mandela, após a sua eleição como Presidente da República, iria convidar para um almoço de reconciliação. Durante o período de tempo que dura o julgamento, nem sempre, Fischer e Mandela, também advogado, estão de acordo. Mas decidem aceitar alguns fatos da acusação de modo a urdir uma teia de atenuantes. No fundo, apelavam à consciência do juiz confrontando-o com a iniquidade do apartheid, sugerindo que à população negra apenas fora deixada a hipótese do recurso à violência ainda que, até ao momento, dela não houvesse exemplo.


Mas Fischer parte para as alegações finais sem ter a certeza de como será o discurso de Mandela. Diz-lhe uma última vez: temos de evitar a pena de morte.


Diria Mandela, a terminar a sua alegação:


“Dediquei toda minha vida a esta luta do povo africano. Lutei contra o domínio branco e lutei contra o domínio negro. Defendi e prezo a ideia de uma sociedade democrática e livre, em que todas as pessoas convivam em harmonia e com oportunidades iguais. É um ideal para o qual eu espero viver e que espero ver realizado. Mas, Meritíssimo, se preciso for, é um ideal pelo qual estou disposto a morrer.”


Nelson Madela (Sello Motloung) no discurso final

Em 11 de Junho de 1964, o juiz Quartus de West proferiu uma sentença de prisão perpétua. Mandela não seria enforcado. A mulher de Bram Fischer, Molly Krige - outra grande interpretação de Antoinette Louw -, também ela membro do Partido Comunista, morreu num acidente do qual o marido sempre se sentiu responsável. Fischer entrou na clandestinidade. Foi preso e condenado a prisão perpétua por violação do Ato de Supressão do Comunismo (Suppression of Communism Act). Adoeceu com cancro, sendo-lhe negada a liberdade para poder tratar-se. Foi-lhe, no entanto, concedido, numa fase terminal, morrer junto da família em Bloemfontein, o que aconteceu em 1975. O governo sul-africano fez desaparecer as suas cinzas de modo a evitar a criação de um lugar simbólico da resistência para os opositores do regime.


Ficando a pensar no filme, lembrei-me da minha segunda visita a Pretória. Depois da passagem fracassada pela Universidade de Witwatersrand em Joanesburgo segui para a Universidade do Porto onde, em vez de me dedicar ao curso de Economia, que detestei, enveredei pelo movimento associativo e pelas atividades do Cine-Clube. Houve o Maio de 68 em Paris e a crise académica de Coimbra de 1969. A guerra colonial parecia cada vez mais um beco sem saída. Mas era o que me esperava, apesar de ter ponderado outras hipóteses. Em 1970, regressei à casa paterna em Lourenço Marques. Enquanto aguardava a chamada para a tropa voltei a Pretória para me inscrever num curso por correspondência de Sociologia e Filosofia na Universidade da África do Sul (University of South Africa). A cidade pouco parecia ter mudado. Mas mudara, muito. Era agora visivelmente a capital de um regime opressor, sitiado. Não me lembro de ter visto jacarandás. Para o bem e para o mal, como em tudo, eu também estava diferente.


Olhando para a imagem de promoção do filme que se segue, que vejo?



Do lado esquerdo, terminado o julgamento de Rivonia, um automóvel conduzido por Bram Fischer, com a mulher ao lado, rasga o vasto espaço da savana africana naquela que será a última viagem de Molly Krige. Eles não o sabem. Festejam ainda a sentença do juiz Quartus de West pois sabem que com Mandela vivo se abrem novos caminhos para o futuro. Em primeiro plano está Bram Fischer, aliás Peter Paul Muller. Enquanto o automóvel se afasta com uma parte dele próprio, carrega já o fardo da tragédia pessoal, os olhos cravados num horizonte longínquo, sabendo, melhor do que nunca, não haver caminhos sem pedras nem futuro que não tenha de ser duramente conquistado.





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Imagens do Real Imaginado (IRI) do Instituto Politécnico do Porto foi o ponto de partida para o primeiro Mestrado em Fotografia e Cinema Documental criado em Portugal. Teve início em 2006. A temática foi O Mundo. Inspirado no exemplo da Odisseia nas Imagens do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura estabeleceu numerosas parcerias, designadamente com os departamentos culturais das embaixadas francesa e alemã, festivais e diversas universidades estrangeiras. Fiz o IRI durante 10 anos contando sempre com a colaboração de excelentes colegas. Neste segmento da Programação cabe outro tipo de iniciativas, referências aos meus filmes, conferências e outras participações. Sem preocupações cronológicas. A Odisseia na Imagens, pela sua dimensão, tem uma caixa autónoma.

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