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   viagem pelas imagens e palavras do      quotidiano

NDR

  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 30 de jan. de 2021
  • 6 min de leitura

São três livros lidos de enfiada nos últimos dias. São curtos, bem escritos e um deles com eficaz ilustração gráfica. Um quarto, por sinal o primeiro mencionado no texto, foi lido há mais tempo mas resolvi recuperá-lo dada a relevância da autora, Madeleine Albright, personagem de quem nunca gostei mas cujo testemunho, tratando-se de quem se trata, constitui um importante sinal de alerta. Todos estes livros foram recentemente publicados ou reeditados em português, com excepção do último Introducing Fascism - A Graphic Guide disponível apenas na versão em inglês. Sobre cada um deles ficam aqui algumas notas.




Sabe-se como a palavra fascismo é incómoda. Nos Estados Unidos, por exemplo, onde durante décadas sucessivas Administrações deram corda a ditaduras de extrema-direita, designadamente na América do Sul, quando a questão se coloca a melhor maneira de a contornar é através da expressão we have a chalenge. Portanto, não se fala de fascismo, temos é um desafio. E um desafio ainda maior quando a incomodidade surge no plano interno onde, na verdade, se tem feito sentir ciclicamente. Basta recordar as organizações de supremacistas brancos como o KKK, o movimento America First do simpatizante dos nazis Charles Lindbergh, a caça às bruxas do senador McCarthy, as ações terroristas do FBI liderado por J. Edgar Hoover e, obviamente, na mais recente deriva mesclada de um pouco de tudo isso como foi o caso dos quatro anos da Administração Trump. Verdade seja dita, com maior ou menor dificuldade, a democracia americana conseguiu sempre encontrar antídoto para o problema, pelo menos, em casa. Na casa dos outros é outra conversa. Mas que o problema é sério, é. Ao ponto do valor de uso da palavra fascismo ter ressurgido exponencialmente nos Estados Unidos como o provam as numerosas obras entretanto publicadas nas quais aparece em título.


Sintomaticamente, a antiga Secretária de Estado de Clinton, Madeleine Albright, lançou não há muito tempo Fascismo, um alerta, já traduzido e publicado em Portugal. O livro é muito centrado em Mussolini e Hitler, bem como em algumas das manifestações de fascismo contemporâneo na Europa, caso da Hungria de Viktor Órban, embora obviamente tenha Donald Trump no centro da mira. Sendo interessante, nem por isso o livro deixa de ser enviesado uma vez que, em última instância, reverte sempre a favor de uma certa visão da política externa das Administrações do Partido Democrata.



Para se entender o fascismo é preciso ir bem mais longe excluindo, no entanto, a exclusividade de representações datadas como sejam coreografias centradas em camisas negras ou castanhas, forças militarizadas, violência institucionalizada, estado policial, política de terror, guerra, raça e sangue. Não que esses elementos não possam estar contidos na natureza do fascismo contemporâneo. Na maioria das vezes estão. Mas sem necessariamente replicar o cortejo de adereços e barbaridades tal como o conhecemos da História. O fascismo do século XXI, porventura tão criminoso quanto o do século XX, será diferente. Como diferentes foram, de resto, os diversos fascismos que chegaram ao poder no passado, não apenas na Itália e na Alemanha, em Espanha e Portugal, os mais próximos e familiares, mas também em países como, por exemplo, a Hungria de Miklós Horthy ou a Roménia de Ion Antonescu. Cito apenas dois dado que a lista seria longa. Bastaria lembrar os governos colaboracionistas que abraçaram com ardor a causa nazi excedendo a brutalidade do ocupante como sucedeu na França de Vichy. E lembrar, também, que o fascismo foi, é, uma patologia global com expressão em todos os continentes. Esta diversidade parte de um denominador comum. Explora um mal estar que atinge multidões de descontentes cuja circunstância as tornou vulneráveis à irracionalidade de mensagens construídas em torno de dicotomias como nós e os outros, os bons e os maus, os puros e os impuros. Para vingar, o fascismo precisa de explorar o descontentamento, instalar o medo, criar o caos.


Em O Eterno Retorno do Fascismo, um livrinho com pouco mais de 70 páginas publicado em 2010 e agora reeditado, do filósofo e ensaísta holandês Bob Riemen, há uma breve digressão sobre esse mal estar social cuja existência é muito anterior à lexicalização da palavra fascismo com o significado político que hoje lhe é atribuído. Em 1831, Alexis de Tocqueville detetou na jovem democracia americana uma multidão centrada apenas em si mesma, tendo como denominador comum o pensamento simplificado e absorvida na “busca de prazeres insignificantes e vulgares”. Diz ser uma forma de “servidão ordenada, calma e amena” conjugada com algumas formas exteriores de liberdade para a qual não encontrou designação porque “o fenómeno é novo”. Um século mais tarde, o filósofo espanhol Ortega y Gasset falaria em Rebelião das Massas. Apesar do progresso tecnológico, do conhecimento alargado, da circulação ampliada, a oportunidade histórica oferecida ao povo foi rejeitada por um novo tipo de indivíduo que recusou confrontar-se com valores intelectuais e espirituais, rejeitou escutar outras opiniões, reforçou o sentimento de poder, bem como o desejo de controlar. Assim nasceu o homem multidão, o homem massa, transversal a toda a sociedade, que se manifesta tanto entre os ricos quanto entre os pobres, nos cultos e nos ignorantes.


Menno ter Braak

Este mal estar - explicitado por diferentes razões e diversos autores, por exemplo, Goethe e Nietzche - ressurge ciclicamente. No seu livro de 1912 Das Ressentiment im Aufbau der Moralen Max Scheler explica como uma cultura comum impregnada de ressentimento vai destruindo valores éticos, morais e civilizacionais. O homem que vive no ressentimento - diz Scheler - acaba sempre por ser fraco e por ter medo da sua liberdade. Como corolário: “A experiência da liberdade absoluta transformar-se-á num medo da liberdade profundamente enraizado e tornar-se-á enorme a necessidade de se conformar com as massas, com essas massas que mais não querem senão acreditar cegamente e seguir um líder carismático”.


Menno ter Braak, ensaísta e cúmplice do cineasta Joris Ivens na fundação da famosa Filmliga holandesa, foi dos que melhor souberam antecipar o que estava para vir, aliás, com consequências aterradoras para ele próprio que, aos 38 anos, seria levado ao suicídio para escapar aos nazis. No início dos anos 30 do século passado, identificando os sinais do tempo, Braak denunciou o clima de caos moral dominante como especialmente propício à ocupação do espaço político por parte de demagogos sem escrúpulos movidos por interesses e agendas pessoais. Os mesmos, de resto, que mais contribuíam para a confusão. O movimento que então alastrava pela Europa, segundo ele, tinha os seus alicerces num ressentimento cujas causas reais, muitas vezes, eram deliberadamente tidas como insondáveis. Sem qualquer solução para os problemas, sem ideias próprias, esse movimento não queria, na verdade, resolver o que quer que fosse posto que se alimentava - alimenta - da injustiça necessária à manutenção da calúnia e do ódio. Numa palavra, a calúnia pela calúnia, o ódio pelo ódio. Depois encontrou-se um bode expiatório, o judeu.


O terceiro livro chama-se Como Funciona o Fascismo - a Política do Nós e Eles. Foi publicado recentemente e é da autoria de Jason Stanley, Professor da Universidade de Yale, cujos pais foram refugiados do nazismo. Trata-se de uma visão muito pertinente com múltiplas referências à atualidade na qual basicamente se exploram o que Stanley considera os 10 pilares fundamentais do fascismo: O Passado Mítico; Propaganda; Anti-intelectualismo; Irrealidade; Hierarquia; Vitimização; Lei e Ordem; Ansiedade Sexual; Sodoma e Gomorra; Arbeit Macht Frei (O Trabalho Liberta). Para abreviar, reporto apenas a dois aspetos, não resistindo a estabelecer algumas ligações ao aprendiz de feiticeiro doméstico no qual parecem rever-se alguns que são fascistas, outros que sendo-o ainda não sabem que o são, bem como a maioria que julga ter feito um voto de protesto nas presidenciais sem perceber bem a natureza da coisa.



Em primeiro lugar, o fascismo faz reviver um passado mítico e glorioso de modo a legitimar um percurso cujas raízes mergulham num tempo longínquo, sem mácula, porventura anterior ao pecado original. Para os nazis esse passado era a sua versão peculiar do mundo clássico. Para Mussolini, a grandeza do Império Romano que ele imaginou poder reconstruir. O sujeito aqui da paróquia fez o seu arremedo mitológico ao estilo do Estado Novo visitando durante a campanha eleitoral os túmulos de Afonso Henriques e Nuno Álvares Pereira, bons portugueses.


Depois, o fascismo busca na linguagem a expressão de um sistema de crenças assente na distinção entre o Nós e o Eles. Exprime-se pelo ódio ao outro. No sistema de crenças nazi o Nós são os arianos puros, o Eles os judeus impuros, raiz de todo o mal. O mal aliás, seja ele bolchevique, liberal, socialista, homossexual artista degenerado ou o que quer que seja, é judeu. Para Mussolini, o Nós são os fasci di combattimento, os puros, o Eles são todos os demais. Aliás, se os camisas negras professam o terror e a violência a culpa não é deles, é da violência dos outros, ou seja, da violência má que obriga ao recurso da violência boa necessária à normalização da ordem superior. Por cá, o tal filhote e a sua corte são os Bons, os puros do anti-sistema, o Eles são todos os demais, os corruptos do sistema. Políticos, ciganos, pedófilos, mulheres que pintam os lábios de vermelho, subsidiodependentes, o que quer que não seja Nós é tudo farinha do mesmo saco, Vergonha!


Há ainda um quarto livrinho cuja leitura é fácil até porque tem desenhos. Também é relativamente recente e chama-se Introducing Fascism - A Graphic Guide. Os autores são Stuart Hood e Litza Jansz. Publicado em formato de bolso tem a enorme vantagem de podermos levá-lo para todo lado. Nos tempos que correm será sempre útil em qualquer conversa inopinada com elementos de populações em risco de levarem a sério os disparates do processo de normalização do fascismo em curso.




Jorge Campos

2021/01/30




  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 26 de dez. de 2020
  • 6 min de leitura


Eis um bom livro. Dei com ele por mero acaso, a um preço irrisório, escondido nas prateleiras de uma livraria onde se exibia uma versão recente, em português, a custar quase quatro vezes mais. Não deve ser fácil traduzir Bob Dylan. Quem o conhece da música sabe que há coisas que só fazem sentido no inglês da América por ele utilizado. Por isso, tendo embora grande admiração pelo trabalho dos tradutores, optei pelo original. O preço, evidentemente, também contou.


Bob Dylan compôs mais de 500 canções. Acompanhou-me ao longo da vida, umas vezes mais, outras menos. Por diversas ocasiões e diferentes razões estive zangado com ele. Fez alguns discos extraordinários, outros, uma chatice. Deu um concerto em Israel quando não devia. Durante anos perdi-o de vista. Recuperei-o ocasionalmente numa ou noutra música, num ou noutro documentário, designadamente, em No Direction Home (2005) de Martin Scorsese. Não resisti ao seu triplo álbum dedicado ao Great American Song Book. Fiquei a pensar se ele tinha jeito para aquilo, mas gostei. Reconciliei-me com o seu último e surpreendente álbum Rough and Rowdy Ways (2019). Pelo meio, ganhou um Nobel da Literatura. Isso pesou na decisão de o trazer para casa neste Chronicles, volume I, publicado pela primeira vez há uns pares de anos e agora reeditado.


Fonte: strefamusicart

O livro rapidamente venceu a desconfiança de desencontros passados. Na narrativa na primeira pessoa, na descrição dos lugares e protagonistas, reconhece-se, logo de início, a força, atmosfera e originalidade das suas melhores canções, uma espécie de equivalente em prosa de uma poesia cujas raízes mergulham nessa cultura popular americana habitada por gente como Woody Guthry e Pete Seeger, por Leadbelly e pelos blues do delta do Mississipi, aqui e ali, também pela geração Beat, o gospel, o jazz e, claro, o rock’ n roll.


O primeiro capítulo, Markin’ Up the Score, é curto, introdutório. São os primeiros passos de Dylan em Nova Iorque. Após ter deixado a modesta casa do pai operário, no Minnesota, é para lá que vai em busca de algo que o transcenda, O segundo capítulo é longo, exploratório. Intitulado The Lost Land, fala de uma América ignorada, de lugares obscuros e heróis incómodos, da música folk e do seu espaço lavrado com o suor do rosto e o sangue do corpo dos pobres. Fala, igualmente, do calcorrear vagabundo pelas ruas da grande cidade, de guitarra às costas, cantando onde o deixam a troco de pouco, de bar em bar, de mulher em mulher, de casa em casa, até à descoberta do underground onde tudo pode acontecer. Nova Iorque é a terra prometida. Tal como a Lost Land que Dylan quer entender e resgatar.


É dessa terra esquecida que vem The Ballad of Joe Hill, um clássico de Alfred Hayes popularizado nos anos 30 por Paul Robeson, o extraordinário artista negro de poderosa voz de barítono que ousava cantar a Internacional em ações de luta dos trabalhadores. Joe Hill era não só um compositor e intérprete de música folk do princípio do século XX, mas também um destacado dirigente do movimento anarco-sindicalista. Condenado à morte e executado em 1914, após um julgamento fraudulento, tornou-se uma lenda da Lost Land e um herói dos deserdados. Para Dylan, The Ballad of Joe Hill seria o rastilho da descoberta de uma longa e sinuosa estrada pavimentada pelo trabalho da memória. Não se limita ao registo, procede como o garimpeiro. Escava, depura, escolhe e combina ritmos e palavras, faz composições inesperadas, encanta, magoa, surpreende. Provavelmente, surpreende-se a si próprio, certamente, a quem o lê, feito viajante.


Joan Baez e Bob Dylan. Fonte: The New Republic

Um escritor cria sempre uma rede de cumplicidades com o seu leitor. E o leitor reinventa-se na narrativa do escritor. Lendo Chronicles, estou subitamente em 1966 a bordo do comboio que liga Lourenço Marques a Joanesburgo. Tenho 18 anos. Acabo de sair de casa. Vou matricular-me na Universidade de Witwatersrand e ocupar um quarto alugado no Jorina Court, um lugar do qual se contam muitas histórias, nem sempre edificantes, é certo, mas sempre com tonalidades de fruto proibido.


É o tempo do apartheid. Viajo sozinho, numa cabine só para brancos, da qual sou o único ocupante. Tenho a cabeça cheia de dúvidas. Pela janela vejo a savana africana a correr vertiginosamente. O curso de Economia não me diz grande coisa. Pelo contrário, uma experiência nova agrada-me, muito. O comboio trepida naquela cadência inexorável de rodas de ferro sobre carris de metal. Um tipo ainda novo, alto, magro, com uma horrível cicatriz ao longo da face, entra sem se fazer anunciar. Tem um sorriso desagradável, mau. Fica a olhar para mim, de pé, sem dizer nada. Finalmente, pergunta-me o que faço ali. Tento explicar, mostro-lhe o bilhete. Rosna, sou da PIDE. Já suspeitava. Digo-lhe ao que vou, não quer ouvir. A cadência do comboio soa agora como uma ameaça. Pergunta-me pela morada, quer o nome do pai. Digo-lhe. A profissão. Médico. Ri-se, os olhos pequeninos semicerrados. Médico? Ri-se de novo, sardónico, se calhar nem sequer é enfermeiro. Novo silêncio ensurdecedor. O tempo suspenso. De repente, vira as costas e sai. Volta logo de seguida. Está, de novo de pé, à porta. Sibila, vê lá se tens juízo. Desaparece. Perco a noção do tempo, o comboio lá vai. Por fim, abranda. Joanesburgo.


Quando nessa noite entro com um grupo de amigos na obscuridade de um bar folk próximo de Hillbrow, onde depois voltaria tantas vezes, vejo um jovem de cabelo liso até à cintura, a dedilhar uma guitarra, sentado num banco alto sob um feixe de luz. Canta: I dreamed I saw Joe Hill last night/ Alive as you or me/ Says I, “But Joe, you’re ten years dead”/ “I never died”, says he/ “I never died”, says he. Ainda hoje me lembro desses versos, bem como de outros do próprio Bob Dylan, paladino da contra cultura, ícone do movimento pacifista contra a guerra do Vietname, bandeira da luta contra o apartheid, símbolo da geração de Woodstock, em suma, mensageiro da esperança. Nesse tempo, as canções corriam noite dentro, entoadas em coro enquanto a cerveja escorria garganta abaixo na expetativa de encontros auspiciosos. The Times They Are a-Changing, Blowin’ in the Wind. We Shall Overcome


O devaneio acaba aqui. Chronicles não tem nada a ver com a retórica, passa simplesmente ao lado da gesta heróica. Recuperar a Lost Land e andar aos caídos e achados em Nova Iorque à procura de um rumo é uma coisa; outra é assumir o protagonismo consubstanciado nos rótulos que lhe foram sendo colados. O homem não está para aí virado. Salta toda essa fase da maior parte dos anos 60 onde outros viram a excelência da música e o pináculo de uma carreira para, no terceiro capítulo, ao qual dá o título do seu décimo primeiro álbum, New Morning, de 1970, se manifestar exausto da fama, cansado de fugir à legião de seguidores, sem paciência para jornalistas, sempre a procurar refúgio, ele e a família, longe da vista de todos. Aqui chegados, suspeito da quebra de cumplicidade com os leitores, pelo menos com alguns deles. O mito não cabe nestas linhas. Menos ainda, a hagiografia. Sobra Dylan a procurar reencontrar-se de novo com algo que o transcenda.


Se o passado conta, cristalizado, é morte. Antes a dúvida, olhar à volta, estar vivo. Porventura, até pedir clemência. Simbolicamente, o quarto capítulo chama-se Oh Mercy, o quinto, River of Ice. Para trás, ficou uma galeria de personagens famosas olhadas de forma peculiar, de Joan Baez a Ramblin’ Jack Ellliot, de Hank Williams a Ritchie Valens, de Elvis a Roy Orbison e Ediie Cocharn. Ficaram, também, memórias de Stan Getz, Charlie Parker e de outros grandes do jazz, bem como das luzes da Broadway, do cinema, do teatro, da literatura, da grande paisagem mosaico da cultura americana. Mas não há uma palavra, por exemplo, sobre a “heresia” de ter passado da música acústica à música elétrica, sobre vendas astronómicas, sobre o sucesso meteórico ou sobre Dont Look Back, o documentário clássico de D. A. Pennebaker, campeão do cinema direto, a propósito da controversa digressão no Reino Unido nos anos 60. Nada disso aparece.


Dont Look Back (1967) de D.A. Pennebaker. Dylan canta Subterranean Homesick Blues com o poeta beat Allen Gingsberg. Fonte: The Eye For Eye

Em contrapartida, há o relato circunstanciado de uma estada de meses em Nova Orleans para gravar um disco com um produtor sugerido por Bono dos U2, cujas ideias musicais entram em conflito com as suas, há longas play lists de música negra passadas nas rádios locais que ele passa o tempo a ouvir, há a atmosfera promissora da cidade do mardi gras, conhecida por Big Easy, onde tudo pode acontecer, há longos passeios pelo interior do estado da Luisiana com a mulher em cima de uma Harley-Davidson, há encontros inesperados com pessoas que tanto podiam ter saído de uma tela de Hopper quanto de um filme de Tarantino.


No capítulo final, River of Ice, contudo, faz uma pequena concessão aos tempos áureos, embora logo seguida de Dylan em movimento à procura de si mesmo:


“The folk music scene had been like a paradise that I had to leave, like Adam had to leave the garden. It was too perfect. In a few year’s time a shit storm would be unleashed. Things would begin to burn. Bras, draft cards, American flags, bridges, too - everybody would be dreaming of getting it on. The national psyche would change and in a lot of ways it would resemble the Night of Living Dead. The road out would be treacherous, and I didn’t know where it would lead but I followed it anyway (…) I went straight into it. It was wide open. One thing for sure, not only was it not run by God, but it wasn’t run by the devil either.”


Antes assim. Aliás, é esta a melhor maneira de reforçar a cumplicidade com o leitor.


Já agora, há 15 anos que se anuncia Chronicles, volume II...


2020/12/26

  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 13 de nov. de 2020
  • 2 min de leitura


Este é um dos livros de Philip Roth de que mais gosto. É um romance empolgante, de uma atualidade inquestionável. Estou a pensar em Trump enfiado na Casa Branca, recusando-se a aceitar os resultados eleitorais e prometendo levar fogo e fúria a toda a América a partir de pressupostos baseados em factos alternativos que constituem os alicerces do seu universo de pós-verdade.


Roth também cria um mundo alternativo. Imagina a América da sua infância dominada pelo anti-semitismo levado para a presidência pelo homem que fez a primeira travessia aérea transatlântica, sem escala, Charles Lindbergh. Na manhã de 20 de maio de 1927, Lindbergh levantou voo no seu Spirit of St. Louis de Roosevelt Airfield, em New York, e aterrou 33 horas e 30 minutos depois em Le Bourget, Paris. O feito - e as atualidades cinematográficas, mas isso é outra história - fez dele um herói americano.


Tinha, porém, um problema. Era simpatizante de Mussolini e via com entusiasmo a ascensão do nazismo tendo, inclusivamente, durante uma das visitas que fez à Alemanha, recebido das mãos do marechal Hermann Göring a mais alta condecoração atribuída por Hitler a um estrangeiro, a Cruz de Serviço da Águia Alemã, um medalhão de ouro com quatro suásticas. Corria o ano de 1938 com a guerra iminente. Tudo isto é factual.


Segue-se a ficção. Roth, por sinal filho de uma família judia pobre, vê-se criança num tempo imaginado em que Lindbergh ganha as eleições de 1940, derrotando Roosevelt. O seu movimento isolacionista America First, tão familiar ao let's make America Great Again de Donald Trump, toma o poder. Dá início a uma campanha anti-semita nas ruas, ataca os Aliados e estreita relações com o Reich. Na Administração pontificam corifeus do fascismo como Henry Ford. Começam os pogroms.


A vida dos Roth transforma-se num pesadelo. Todos eles passam por uma metamorfose aterradora, deixando gradualmente de ser quem eram para serem outra coisa com origem num improvável ou num julgado impossível que lhes rasga os corpos e as almas e os vai perdendo de si mesmos. Em pano de fundo movem-se personagens construídas a partir de figuras importadas do real. Uma ficção arrepiante.


É ler. Depois, talvez pensar em factos alternativos. Na pós-verdade. Em Trump, certamente.


Charles Lindbergh e The Spirit of St. Louis.

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Jorge Campos

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        "O mundo, mais do que a coisa em si, é a imagem que fazemos dele. A imagem é uma máscara. A máscara, construção. Nessa medida, ensinar é também desconstruir. E aprender."  

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C A T E G O R I A S

Ensaios, conferências, comunicações académicas, notas e artigos de opinião sobre Cultura. Sem preocupações cronológicas. Textos recentes  quando se justificar.

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Textos avulsos de teor literário nunca publicados. Recuperados de arquivos há muito esquecidos. Nunca houve intenção de os dar à estampa e, o mais das vezes, são o reflexo de estados de espírito, cumplicidades ou desafios que por diversas vias me foram feitos.

Imagens do Real Imaginado (IRI) do Instituto Politécnico do Porto foi o ponto de partida para o primeiro Mestrado em Fotografia e Cinema Documental criado em Portugal. Teve início em 2006. A temática foi O Mundo. Inspirado no exemplo da Odisseia nas Imagens do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura estabeleceu numerosas parcerias, designadamente com os departamentos culturais das embaixadas francesa e alemã, festivais e diversas universidades estrangeiras. Fiz o IRI durante 10 anos contando sempre com a colaboração de excelentes colegas. Neste segmento da Programação cabe outro tipo de iniciativas, referências aos meus filmes, conferências e outras participações. Sem preocupações cronológicas. A Odisseia na Imagens, pela sua dimensão, tem uma caixa autónoma.

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