Ponto de partida: Francis Fukuyama. O statement sobre o fim da História nunca foi levado muito a sério. Em rigor, serviu mais como fórmula proclamatória de uma crença conveniente do que como evidência fundamentada de um juízo analítico. A crença é sempre uma simplificação legitimada pelo transcendente premonitório. No caso de Fukuyama, uma relação mágica de causa e efeito entre a imposição da economia de mercado e o triunfo da democracia liberal. Valha a verdade, o próprio Fukuyama mudou de opinião. Há três ou quatro anos, surpreendeu tudo e todos ao dizer que andava a tentar compreender a História. E, numa entrevista à BBC World, em Maio de 2019, aquando do lançamento do seu último livro – Identidades: A Exigência de Dignidade e a Política do Ressentimento – foi mais longe no reconhecimento do engano ao admitir ter ficado abalado com a segunda invasão do Iraque e com a crise financeira de 2008, uma e outra por ele qualificadas como catástrofes cujos efeitos se fizeram sentir, designadamente, na sua quebra de confiança na irredutibilidade dos valores dados como adquiridos.
Sinais contraditórios surgiram logo pós a queda do muro em 1989 e multiplicaram-se até ao colapso de União Soviética, dois anos mais tarde, tendo, no entanto, passado relativamente despercebidos ou, pelo menos, sem suscitar grande atenção mediática. Daí que haja evidência deles mais em representações no âmbito do trabalho de criação, designadamente no cinema documental, do que através da visão do mundo veiculada nas narrativas mainstream. Um exemplo é o documentário do holandês Johaan Van Der Keuken intitulado Face Value – um ensaio sobre o valor da palavra, a paisagem do rosto e a semântica do gesto – no qual, num dos quadros, operários da ex-RDA manifestam o seu incómodo face à incerteza trazida pela nova ordem económica. Tratando-se de uma obra despida de intuitos proclamatórios, Face Value, um filme de 1991 rodado em vários países, é uma reflexão pioneira sobre a nova Europa, dando indícios, já nessa altura, de problemas, hoje, na ordem do dia. Lá está, também, um apontamento incisivo sobre a Frente Nacional de Jean-Marie Le e os seus apoiantes.
Obviamente, o erro de Fukuyama não desmerece o tremendo simbolismo da queda do muro de Berlim. Representou não só o fim da Guerra Fria, mas também das ilusões que pudessem ainda subsistir em relação à bondade de um socialismo de cariz totalitário, no qual pouco restava da utopia fundadora. Gorbachov percebeu isso e quis mudar de rumo. Demasiado tarde. O socialismo real tinha deixado pelo caminho o poder de atração do pós-guerra, quando a União Soviética emergiu como a grande vencedora do nazi-fascismo e, de certa forma, inspirou a construção do estado social na Europa. O caminho para a derrocada atravessou alguns episódios determinantes. A revolta na Hungria em 1956, a Primavera de Praga em 1968 e o movimento do Solidariedade na Polónia nos anos 80, deram indicações sobre a incapacidade de Moscovo responder aos desafios que nos países sob a sua influência lhe iam sendo colocados. Concomitantemente, a partir da divulgação do relatório secreto de Krushev durante o XX Congresso do PCUS, também em 1956, avolumaram-se as suspeitas, posteriormente confirmadas, sobre o período estalinista e o seu cortejo de atrocidades. Quando o muro caiu, a União Soviética era um gigante com pés de barro, um corpo minado por contradições internas incapaz de lidar dialeticamente com o mundo e, como tal, sem a vitalidade cidadã indispensável à construção de uma sociedade dinâmica.
Todavia, a época dos grandes consensos preconizada por Reagan e, também, pelos Bush, pai e filho, apesar do ponto de partida promissor, não foi muito além de uma ideia. A leste, a imposição de um capitalismo de choque e de uma economia de saque nas mãos de oligarquias corruptas, depressa suscitou interrogações sobre os limites da democracia liberal. É certo que a generalidade desses países passou a integrar a União Europeia e adotou formalmente o figurino político exigido. Mas também é certo que foi no eixo de Visegrado que se verificaram, e verificam, as mais graves disfuncionalidades traduzidas na emergência meteórica de populismos de extrema direita com via aberta para governos autocráticos de que a Hungria e a Polónia são casos paradigmáticos. É grave, mas não surpreendente. O Partido Popular Europeu (PPE) tende a desvalorizar estes movimentos, olha-os com condescendência e até lhes dá a mão quando se trata de agitar o fantasma do comunismo para consolidar posições ultra conservadoras como sucedeu na Ucrânia. De resto, ainda agora, numa Alemanha que continua dividida em duas realidades assimétricas, perante os resultados eleitorais na Turíngia, onde o Partido da Esquerda (Die Linke) ganhou sem maioria absoluta, a CDU regional não teve problema em sugerir à senhora Merkel um entendimento com os neonazis da Alternativa para a Alemanha (AFD). Quanto à família socialista e social democrata, se não se lhe podem assacar responsabilidades do mesmo grau, a verdade é que também ela, ao sucumbir à miragem neoliberal, tem contribuído para o estado das coisas. E, diga-se, para o seu próprio definhamento. É uma história antiga que vem do tempo de Tony Blair.
Uma vez mais, é no campo das representações exteriores à retórica mediática que se encontram as reflexões mais penetrantes sobre este percurso, seja através de oportunas e esclarecedoras incursões no passado, seja por via da interpelação não convencional do presente. Nessas obras não estão diretamente em causa nem a política, nem a economia, nem a estatística. Sob foco estão a memória e o esquecimento, as pessoas, personagens e situações dadas a conhecer através de narrativas autorais que acrescentam conhecimento ao conhecimento através da imaginação criadora. Por exemplo, em Taurus (2001) o cineasta russo Aleksandr Sokurov faz uma abordagem soturna dos últimos dias de Lenine e um inquietante retrato psicológico de Estaline, explorando a ambiguidade da relação entre os dois líderes e suscitando a dúvida sobre o rumo da Revolução. Outro russo, Nikita Mikhalkov recupera em O Sol Enganador (1994) a figura trágica do general Kotov, um dos favoritos de Estaline, caído em desgraça sem noção das acusações de que era alvo. Numa outra perspetiva, em Toni Erdmann (2016) a alemã Maren Arden trabalha alegoricamente sobre a metamorfose da conjuntura socialista em economia capitalista a partir de citações subtis e divertidas da obra prima de Stevenson O Médico e o Monstro. Mestre do realismo, o britânico Ken Loach observa nos seus filmes, designadamente Eu, Daniel Blake (2016) o desespero do homem comum, indefeso, perante a falência dos serviços públicos resultante da degradação do estado social no Reino Unido. E Christian Petzold, provavelmente o maior cineasta alemão contemporâneo, sempre às voltas com a questão da identidade, coloca em Transit (2018) uma Europa de novo em guerra e uma França ocupada pelos fascistas. Naturalmente, os exemplos poderiam multiplicar-se.
Na literatura há, também, diversos exemplos do modo como os artistas olham o mundo, transformando-o, para lhe acrescentarem um novo sentido e, porventura, proporcionar uma leitura e reflexão com potencial prospetivo. Talvez o caso mais interessante seja o da escritora bielorrussa Svetlana Aleksievich, autora de Vozes de Chernobyl, o livro que deu origem à notável série televisiva com o mesmo nome. Vencedora do prémio Nobel da Literatura de 2015, Svetlana Aleksievich desenvolveu um projeto literário chamado Vozes da Utopia constituído por cinco romances, entre os quais se destaca O Fim do Homem Soviético. É uma obra polifónica, de rara concisão artística, construída a partir de testemunhos de centenas de homens e mulheres sobre os velhos e os novos tempos no território da antiga URSS. Sem explicar nem tomar partido, expõe as expectativas dos protagonistas, convoca as suas memórias, emoções e afetos e cria um mosaico policromático da Rússia de Putin, no qual se faz o ajuste de contas com o passado e onde, apesar de tudo, sobra do colapso do comunismo o homem soviético.
Nos últimos 30 anos o mundo mudou radicalmente e mudaram de igual modo as representações que dele se fazem. A crise de credibilidade da narrativa dos media tradicionais, o impacto da tecnologia digital na multiplicação praticamente ilimitada de mensagens e a disseminação orquestrada de fake news com vista à construção de um presente orwelliano, tudo isso abriu portas a uma entropia comunicacional sem precedentes. Daí, também, a pertinência da imaginação criadora enquanto elemento essencial para a organização do mundo através da visão singular dos artistas. Sem ela, qualquer balanço será, portanto, precário e lacunar, uma vez que lhe faltará a espessura dramática da humanidade na sua diversa condição. Mas, obviamente, este enfoque exige a historicidade e um contexto. Voltemos então à mudança e à sinalização final de tópicos de um balanço possível.
Pela reconfiguração do mapa geopolítico após a queda do muro de Berlim, no quadro de uma globalização vertiginosa, passaram o reposicionamento estratégico dos Estados Unidos, a reivindicação por parte da Rússia do estatuto de grande potência e, sobretudo, o crescimento colossal da China a caminho da hegemonia global. A participação da União Europeia nesta mudança é controversa e, em alguns aspetos, desoladora. Na ânsia de isolar a Rússia contribuiu para o regresso das taras da Guerra Fria. Envolveu-se a fundo nos Balcãs. Não foi capaz de ajudar a encontrar soluções equilibradas para os antigos países do leste, optando por legitimar uma privataria cujas consequências sociais trouxeram a desconfiança tanto face a Bruxelas quanto a dirigentes incapazes de compreender os problemas das pessoas e, nessa medida, contribuiu para o vazio preenchido pelo populismo. Foi cúmplice de guerras que destruíram países como o Iraque e a Líbia e criaram vagas de refugiados a reboque de uma política americana que cinicamente justificou as intervenções militares em nome da democracia e da liberdade. Perante o ressurgimento da xenofobia, do racismo e do fascismo optou pela relativização quando não enveredou pelo grotesco histórico como fez ao equiparar nazismo e comunismo. Apoiou golpes militares, como acaba de suceder na Bolívia, enquanto mantem reserva, por exemplo, sobre a repressão brutal no Chile. Sobre a emergência climática, à penúria das medidas sobram as palavras. Há uma razão para este desconcerto? Há várias. A primeira é a adoção do modelo económico neoliberal e os alinhamentos daí decorrentes.
Edgar Morin, numa entrevista recente à RTP, comparou a União Europeia a um esqueleto vazio. Não se deve deitar fora o esqueleto, disse ele, mas é preciso dar-lhe vida. Sou da mesma opinião. Mas para isso é preciso encontrar o músculo, a carne, a cabeça e, sobretudo, o coração que a Europa não teve com a Grécia e não tem com os refugiados. Se isto falta é porque as forças políticas maioritárias, no fundo, subscrevem o pensamento mágico de Fukuyama e insistem num modelo de desenvolvimento que compromete o estado social, reincide em privatizações desastrosas, gera iniquidade, agrava clivagens, resolve a favor dos mais fortes, desmobiliza a esperança, desinveste na cultura e, como tal, inevitavelmente, alimenta a pulsão populista. Vamos ver até quando. Afinal, também há lutas. Afinal, até Fukuyama mudou de opinião...
Jorge Campos
Publicado in Forum Demos, 2019