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CULTURA

Foto do escritorJorge Campos

A Caixa Negra 4 - O Desafio da Linguagem I

Atualizado: 30 de jan. de 2021


A imagem de rosto deste texto é uma das que o meu inesquecível amigo Rui Pimentel fez para o meu livrinho A Caixa Negra. Abaixo do título, aparecia Discurso de um Jornalista sobre o Discurso da Televisão. O livro, cuja capa traz um desenho de outro grande amigo, o escultor José Rodrigues, tem quase 30 anos e tem por base um trabalho académico da altura. Depois de o recuperar e reler, apesar do tempo passado, penso que ainda terá alguma utilidade, até porque foi pensado como uma introdução ao jornalismo de televisão para estudantes tendo como pano de fundo a necessidade de conhecer o Cinema. Também se fala sobre o trabalho dos jornalistas e sobre as relações de poder. O que se segue é a primeira de duas partes sobre a Linguagem que constituem o Capítulo III de A Caixa Negra.


(Continuação de A Caixa Negra 3)


A LINGUAGEM


Desenho de Rui Pimentel para A Caixa Negra

A NARRATIVA AUDIOVISUAL

Até agora o termo linguagem tem sido utilizado sem que dele tinha sido dada qualquer definição. Por outro lado, importa verificar se existe, de facto, uma linguagem de televisão. O que é, então, uma linguagem?


"Uma linguagem é um sistema semiótico ordenado de comunicação (que serve para transmitir a informação). Desta definição de linguagem como sistema de comunicação decorre a propriedade da sua função social: a linguagem assegura a troca, a conversação e a acumulação da informação na colectividade que a utiliza. O que define a linguagem como sistema semiótico é a circunstância de ela ser constituída por signos. Para realizar a sua função de comunicação, uma linguagem deve dispôr de um sistema de signos. No processo de troca de informação no seio da colectividade, o signo é o equivalente material dos objectos, dos fenómenos e dos conceitos que exprime. Por conseguinte, a principal característica do signo é a sua capacidade de exercer a sua função de substituição."(1)


Tal como uma moeda, o signo tem duas faces: o significante, ou seja, a expressão, a manifestação sensorial que permite a sua representação, e o significado, que é o conteúdo, a ideia, e que não pode confundir-se com o objecto, antes se identificando com o conceito que se tem desse mesmo objecto. O objecto é o referente. Da união entre o significante e o significado resulta o processo de significação.


Uma linguagem, por outro lado, não é um sistema de signos isolados. É, sim, um sistema organizado, condição mesma para a constituição de qualquer linguagem e respectivas regras. Segundo Lotman, as regras de sintaxe "orientam a combinação de sinais isolados em sequências, em proposições e correspondem às normas de uma dada linguagem".(2) Ainda de acordo com o mesmo autor, "na medida em que os signos são sempre o equivalente de qualquer coisa, há uma relação constante do signo com o objecto que substitui. Essa relação (biunívoca) entre a expressão e o conteúdo constitui a semântica do signo."(3)


Página de A Caixa Negra com desenho de Rui Pimentel

No que respeita à Televisão, ela é um meio audiovisual caracterizado fundamentalmente pela imagem e pelo som, os quais surgem articulados de modo a resultarem numa realidade (outra) perceptível pelo olho e pelo ouvido, após reprodução por um sistema técnico. Uma tal realidade é, naturalmente, uma resultante seleccionada, estruturada, codificada em função de limites muito precisos, como sejam, por exemplo, a objectiva da câmara e o microfone. De tal modo, que a coordenação simultânea de imagens acústicas, visuais e verbais convoca uma leitura plurissintáctica, cujos nexos e articulações remetem para códigos procedentes de diversos campos de experiência convergindo num propósito comum.


Por outras palavras, o audiovisual, e a Televisão em particular, funciona como um conjunto de relações as mais diversas, cuja síntese decorre de uma estrutura unificadora, a qual recolhe e dá sentido a todos os sistemas parciais de comunicação e significação integrados no meio. Neste sentido, os sistemas parciais funcionam em termos de uma maior ou menor autonomia relativa no âmbito da sua esfera particular, uma vez que mantêm interdependência entre si, para se organizarem numa unidade superior à qual Cebrián Herreros chama o "sistema audiovisual cinético".(4)


Quais são esses sistemas parciais, cada qual com o seu conjunto organizado de signos?


Cebrián Herreros destaca, em primeiro lugar, o sistema da realidade sonora. Engloba as realidades acústicas naturais ou criadas pelo homem. Cabem nele o verbal falado ou linguagem coloquial, os ruídos, o silêncio e a música.


Depois vem o sistema visual. Comporta todos os sistemas de comunicação e significação relacionados com a vista e com a psicologia da percepção visual. Inclui-se neste sistema a linguagem escrita com todas as suas variantes gráficas, como sejam o grafismo electrónico e a legendagem, cuja influência no conjunto dos elementos audiovisuais é notória.


Há, finalmente, o sistema de transformação técnico--retórico audiovisual, através do qual o repórter enquadra e regula os outros dois. Neste sistema cabe tudo quanto respeita à selecção visual ou sonora da realidade, bem como a sua manipulação através, por exemplo, das objectivas da câmara, da montagem, iluminação, caracterização, sonorização, etc.


Dito isto é legítimo concluir pelo facto da Televisão constituir um sistema semiótico de comunicação: serve para transmitir informações e tem uma linguagem que lhe é própria. Essa linguagem é complexa, dada a multiplicidade de variáveis, e é a partir dela que se constrói a narrativa (ou reportagem) televisiva e audiovisual.


Cebrián Herreros sintetiza, como se segue, o modelo do sistema audiovisual:



A nova dimensão da realidade adquirida em função deste encadeado de signos constitui, pois, a narrativa audiovisual, indissociável do conceito de encenação. A reportagem, bem como qualquer outro género jornalístico, é sempre encenação. No caso da reportagem trata-se de contar uma história no quadro de um contexto histórico-cultural: sons e imagens procedem da realidade, são seleccionados e estruturados, postos em cena, organizados por forma a substituir a realidade da qual procedem, ou não cumprissem os signos, justamente, uma função de substituição. Daí, como antes se disse, o facto da mensagem da Televisão ser tanto mais eficaz quanto mais próxima da realidade for a ilusão dela criada. Sendo assim, a primeira atitude do repórter de Televisão é empreender um esforço no sentido de se apropriar da sua linguagem, o que desde logo passa pelo princípio da


VISÃO ACTIVA


Wim Wenders, o cineasta de O Amigo Americano, Paris, Texas e As Asas do Desejo, refere-se assim ao início da sua carreira : "Mesmo no começo — e dele muito me restou — para mim, fazer filmes era: colocar-se a câmara algures e dirigi-la para alguma coisa muito concreta e depois não fazer mais nada, deixá-la apenas correr. E os filmes que mais me impressionavam eram também os dos realizadores muito, muito antigos, da viragem do século, que gravavam apenas e se admiravam que houvesse algo no material. Estava-se, muito simplesmente, fascinado pelo facto de se poder fazer uma imagem de alguma coisa em movimento e de se poder revê-la. Um comboio entra na estação, uma mulher de chapéu recua um passo, há fumo, depois o comboio pára. Os pioneiros do cinema filmavam, à manivela, alguma coisa como isto, examinando-a no dia seguinte muito orgulhosos e contentes. É mais o olhar do que o transformar, ou mover ou encenar o que me fascina na realização".(5)


Pode parecer um ponto de vista um pouco contraditório, uma vez que olhar através da câmara é já transformar: o olho da câmara é diferente do olho humano, a realidade gravada num suporte de vídeo ou de filme, mesmo com uma câmara fixa, remete para o domínio dos signos. De qualquer modo esta ideia do olhar é fundamental para o repórter de Televisão: ele tem de saber ler o mundo com o olhar da câmara por razões que se prendem com o título da obra citada de Wim Wenders, A Lógica das Imagens, o qual resume de forma magistral o núcleo do trabalho de reportagem. Repito: a lógica das imagens, algo cujo sentido, por vezes, transcende o acto de vontade do jornalista para se impor em função das sua próprias virtualidades.


AS HISTÓRIAS SÓ DE IMAGENS


Uma boa maneira de entender a Televisão é estudar obras marcantes da época do cinema mudo, quando as histórias se contavam exclusivamente através de imagens com recurso, eventualmente, a uma legenda. São especialmente interessantes os primeiros documentários, como Nanook of the North, em português Nanuk, o Esquimó, realizado por Robert J. Flaherty em 1922.


Nanook of the North (1922) de Robert J. Flaherty

Instalado no Polo Norte durante dois anos, Flaherty apontava a sua câmara para tudo o que via, trabalhando por vezes em condições extremamente rigorosas, com temperaturas inferiores a 55 graus negativos. Filmando sem planificação, já nessa altura Flaherty revelava uma confiança intuitiva e quase absoluta nas imagens obtidas pela sua câmara. (Nota do Autor de 2021: sabemos hoje que não foi assim).


"Foi a montagem — segundo os historiadores do cinema René Jeanne e Charles Ford — que, reunindo todos esses elementos destinados a uma fita publicitária, fez uma obra humana e poética, cujo interesse e valor tem resistido à dura prova do tempo. Esse facto confirmou-se quando, transposto para a cadência de 24 imagens por segundo — a cadência do cinema sonoro — e devidamente acompanhado de um comentário falado e musical, Nanook of the North começou uma nova carreira, em 1950, nos écrans franceses."(6)


Na verdade, o que se acrescentou foi algo de semelhante a um comentário sobre a imagem, lacónico, porque as imagens de Flaherty, devidamente estruturadas na montagem, já contavam, exemplarmente, uma história.


Com Flaherty nasceu o documentário cinematográfico, um género que precedeu a reportagem televisiva. Na opinião de muitos é, todavia, ao cineasta soviético Dziga Vertov, a quem as actualidades de Televisão mais devem. Vasco Granja, autor de um livro sobre Vertov e um dos raros portugueses que teve a oportunidade de ver boa parte do material por ele filmado, tem a seguinte opinião: "Quer se queira quer não, consciente ou inconscientemente, muito do que hoje se faz em Televisão vai beber à inesgotável fonte perfurada pelo pesquisador Vertov. Embora diluídos muitos dos seus princípios teóricos, a aplicação prática da sua obra é quotidianamente posta em circulação numa parte considerável do cinema feito para a Televisão."(7)


E mais ainda na reportagem, se bem executada, acrescento eu. (Nota do Autor de 2021: Como é evidente praticamente nada do que atrás se disse, bem como grande parte do que se segue viria a ter aplicação).


O CINE - OLHO


Dziga Vertov nasceu em 2 de Janeiro de 1896 em Bialysto, na Polónia, então uma província anexada à Rússia czarista. Era o filho mais velho de um casal de bibliotecários, cujo interesse pelo estudo da literatura e da arte viria a ser determinante na formação do jovem Denis Arkadievitch Kaufman, mais tarde Dziga Vertov, nome definitivo inscrito no registo civil e, na verdade, apropriado a uma personalidade tão irrequieta. Dziga é uma palavra ucraniana que tanto pode querer dizer toupeira, quanto roda que gira sem parar ou, ainda, movimento perpétuo. Vertov radica no verbo russo vertet, sinónimo de girar, dar voltas em torno de um eixo. Influenciado pelo futurismo de Maiakovski, Dziga Vertov assumia, assim, de forma integral o princípio enunciado pelo poeta italiano Marinetti, pai do movimento, segundo o qual não há beleza senão na luta.


Dziga Vertov

Escrevera Marinetti, e cito de cor: "Cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela revolta." O jovem Vertov não podia estar mais de acordo o que não deixa de ser algo paradoxal posto que, à época, o poeta italiano já se identificava com o fascismo. Em 1918, em Moscovo, começou a trabalhar em cinema. Em breve era o responsável pela montagem do primeiro jornal de actualidades produzido pelo governo soviético, o Kino-Nedelia (Cine-Semanal). Os temas do Kino-Nedelia eram, naturalmente, relacionados com as profundas alterações introduzidas pela Revolução de Outubro, como cenas de combates contra os invasores estrangeiros, acidentes, catástrofes, enfim, as experiências do poder soviético. Se os acontecimentos se sucediam de forma vertiginosa, então era necessário divulgá-los vertiginosamente. Essa necessidade levou-o a tomar conhecimento das possibilidades praticamente infinitas da câmara de filmar. Chegara o tempo da cine-sensação do mundo. Afirmava Vertov:


"O olho submete-se à vontade da câmara e deixa-se dirigir por ela para esses momentos sucessivos de acção que, através do caminho mais curto e mais claro, conduzem a cine-frase em direcção ao cume ou ao fundo do desenvolvimento."(8)


Por outras palavras, Vertov tivera a intuição genial de que a objectiva da câmara recriava a realidade, conferindo-lhe uma vitalidade prodigiosa:


"Eu, cine-olho, crio um homem muito mais perfeito do que aquele criado por Adão; eu crio milhares de homens diferentes e esquemas pré-estabelecidos.


Eu sou o cine-olho.

A um, tomo os braços mais fortes e mais habilidosos, a outro tomo as pernas mais bem feitas e mais velozes, ao terceiro a cabeça mais bela e mais expressiva e, graças à montagem, crio um homem novo, um homem perfeito."(9)


Mas, atenção: não há montagem que salve material filmado de maneira indiferente e superficial.


"Foi por isso que (...) Dziga Vertov, ao tentar 'organizar e dar vida a material que fora filmado em sequências longas e monótonas, salpicado de paisagens frias e formais, se apercebeu da inutilidade dos seus esforços e juntamente com o operador de imagem, mergulhou na profundidade dos acontecimentos. E a câmara adquiriu vida. Escalou o cimo de altos fornos, desceu às profundezas das minas de carvão; acoplada a uma motorizada atravessou colunas de manifestantes, e subiu no céu com o balão dos primeiros conquistadores da estratosfera ... O ecrã tornou-se uma verdadeira janela da vida."(10)


Cine-Olho

Sobre as ideias expostas por Vertov passou muito tempo. Despojado dos seus aspectos retóricos, o discurso vertoviano mantém, no entanto, actualidade. As imagens são, de facto, a matéria prima do jornalismo electrónico. Sem boas imagens não há boas reportagens. Se, por exemplo, durante uma campanha eleitoral se quiser favorecer um dos candidatos, não é necessário confiar a cobertura da campanha a um jornalista simpatizante desse candidato. Isso pode ser útil em termos de manipulação, mas não é tudo. Indispensável é destacar um operador criativo e competente.


Um operador que desconheça as potencialidades criadoras da câmara, só por acaso fará boas imagens. Perde-se em planos gerais mal enquadrados e em panorâmicas repetitivas, quase sempre imprestáveis em termos de articulação sintáctica. Procura adaptar o olho da câmara ao modo de ver do olho humano, invertendo a lógica da visão activa vertoviana. Os resultados são pobres. Nada têm a ver com a lógica das imagens de Wim Wenders, nem com o cine-olho de Dziga Vertov.


O PLANO


Numa das suas obras consagradas à prática do cinema, Lev Kulechov aconselha a treinar a vista olhando para os objectos que se queira filmar através de um pequeno rectângulo com as proporções de um plano recortado numa folha de papel preto. É, de facto, um bom exercício para compreender a diferenciação essencial entre o mundo visível da vida e o mundo visível do ecrã. Este é um mundo segmentado, consequente do trabalho analítico da câmara posteriormente (re)organizado pela montagem.


Se um repórter de Televisão não entender isto incorre no equívoco de dar prioridade aos seus textos em detrimento da articulação das imagens, ou seja, privilegia a gramática da língua preterindo a gramática e a lógica das imagens e, por isso, faz peças frouxas, as mais das vezes, simples textos ilustrados. Se, porventura, cair na tentação de redigir um texto com pretensões literárias, então, arrisca-se a ficar à beira do abismo ou mesmo a cair no ridículo, o que, infelizmente, não é tão pouco frequente quanto isso.


O plano é a unidade mínima de significação do discurso televisivo. Fraccionado em planos, o mundo televisivo permite-nos isolar qualquer pormenor. Diz Lotman:


"O plano adquire a liberdade da palavra: pode ser destacado, combinado com outros planos segundo as leis da associação e da contiguidade semânticas, e não naturais, pode empregar-se num sentido figurado, metafórico ou metonímico."(11)


O plano delimita, pois, o espaço formal da intervenção jornalística na medida em que para reproduzir uma imagem visível da vida, segmenta-a, condicionando tanto a actuação do repórter, quanto a interpretação do espectador. Ao operador de câmara cabe proceder analiticamente, reinterpretando a realidade, mas fá-lo-á de acordo com o jornalista. Um bom operador é capaz de proceder rapidamente à leitura visual de um acontecimento, seleccionando as imagens mais expressivas e de maior conteúdo metafórico. Muitas vezes, a habilidade está em revelar no habitual aquilo que habitualmente passa despercebido. Em todo o caso, jornalista e operador constituem uma equipa. Se falhar uma das componentes o resultado nunca será inteiramente satisfatório. A um operador impreparado não se lhe pode pedir o que quer que seja. O jornalista impreparado, pura e simplesmente, não sabe dizer o que quer.


Planos de diferentes tamanhos em o Couraçado Potemkine (1924) de Sergei Eisenstein

o tamanho do plano


Existem numerosos tratados gramaticais sobre os planos. Porém, não há uniformidade de critérios quanto ao estabelecimento de uma nomenclatura. Há planos gerais, utilizados para situar uma acção; planos médios, cuja função é destacar o elemento mais importante aproximando, ao mesmo tempo, o público da acção e dos seus participantes; e grandes planos, os quais ignoram tudo quanto é secundário, obrigando o espectador a concentrar-se no essencial. Mas, podem fazer-se planos praticamente de todos os tamanhos, bastando variar a distância entre a câmara e o objecto ou utilizar diferentes tipos de lentes. A Televisão privilegia, naturalmente, o grande plano, posto que ele permite concentrar o máximo de informação, reduzindo, ao mesmo tempo, a polissemia. Por isso, é o mais eficaz em termos de prender a atenção de um público apenas medianamente atento.


Vejamos, a título meramente indicativo, uma nomenclatura possível:


"O plano de conjunto: este plano permite um enquadramento de grandes dimensões e destina-se a mostrar o assunto principal relativamente à paisagem ou à decoração.

O semiplano de conjunto: enquadra o assunto principal dentro de limites mais apertados: trata-se de uma solução de compromisso entre o cenário e o assunto, em que as personagens são enquadradas da cabeça até aos pés.


O plano médio é ainda mais limitativo que o precedente: é dado maior relevo ao assunto principal. Se se tratar de pessoas, estas serão enquadradas por inteiro ou a meia figura: o cenário ainda é visível, mas a acção não se situa da mesma forma que nos planos anteriores.


O plano americano enquadra a ou as personagens da cabeça até meio das coxas, devendo existir um bom equilíbrio entre o sujeito e o cenário.


O plano aproximado mostra a personagem enquadrada ao nível do busto.


O grande plano apresenta a personagem enquadrada ao nível dos ombros, permitindo sublinhar as expressões do rosto e as emoções que o animam.


O superplano enquadra uma parte da personagem: as mãos, os olhos, etc.,devendo-se evitar a sua frequente utilização". (12)


A partir destes elementos o repórter pode começar a pensar no modo de elaborar a sua história de imagens: terá de jogar com os diferentes tamanhos do plano susceptíveis de serem captados pela câmara.


Um dia, um jornalista perguntou a John Ford, o célebre realizador americano de origem irlandesa, como conseguira fazer determinada sequência, dado que, em seu entender, se tratava de uma abordagem formal especialmente difícil. Ford era um homem de poucas palavras e de nenhuma paciência em relação ao pedantismo cultural. Talvez por isso se tenha limitado a tirar o seu inevitável charuto da boca e respondido laconicamente: "Com uma câmara." Tão simples quanto isso. Para o repórter de Televisão este facto elementar de ser obrigado a trabalhar com material produzido por uma câmara é da maior importância. Por analogia, poder-se-ia dizer que a câmara é a sua caneta e o plano a sua palavra.


ponto de vista e enquadramento


O plano constitui uma realidade complexa. Desde logo, corresponde sempre a um acto selectivo, visto ser função de um enquadramento e de um ponto de vista ou ângulo a partir do qual a imagem foi captada. Os conceitos de enquadramento e ângulo estão relacionados com a perspectiva. À nossa percepção da realidade tridimensional corresponde a representação bidimensional da imagem televisiva. A perda de volume é, no entanto, compensada, justamente, pela perspectiva, a qual restitui ao espectador a terceira dimensão através de uma ilusão óptica.


Regra dos terços, enquadramento e pontos fortes da imagem em Rear Window (1954) de Alfred Hitchcock

Repare-se, contudo, no seguinte: é necessário distinguir entre o ponto e o ângulo de vista da câmara, os quais coincidem com os do operador quando olha através do visor, e os do espectador. O operador determina os seus ângulos de vista de acordo com uma determinada intenção, não fazendo mais do que mudar de lugar, de objectiva ou movendo a lente zoom. O espectador permanece diante do ecrã segundo um ângulo de visão fixo e inalterável, a menos que mude de posição. Sendo assim, todos os ângulos de tomada de vista se reduzem a um único ângulo de contemplação. Ora se atendermos ao facto da distância ideal face ao aparelho de televisão ser de cinco a seis vezes a medida da diagonal do ecrã — a essa distância o olho humano não se apercebe da descontinuidade resultante das linhas e pontos a partir dos quais se reconstitui a imagem — então temos um ângulo de visão do espectador à volta dos oito-graus. É por isso, segundo Jaime Barroso García que "a restituição da máxima realidade, ou seja, da chamada perspectiva natural se consegue quando se procura uma identidade entre o ângulo de observação do espectador e o da captação ou registo (o ângulo da objectiva) da imagem."(13) No caso da Televisão, essa perspectiva natural obtém--se quando se opera com objectivas de ângulo reduzido. Por exemplo, uma teleobjectiva utilizada para enquadrar em primeiro plano os apresentadores ou os locutores proporciona o chamado "paradigma da normalidade”.


A reportagem e as actualidades exigem, entretanto, a utilização de outros tipos de objectivas, nomeadamente as grandes angulares. Poder-se-á argumentar contra o facto delas criarem uma imagem muito distorcida, especialmente tendo em vista o ângulo de vista do espectador. Simplesmente, esse exagero da projecção perspéctica das imagens também pode torná-las muito interessantes. Diz Henrique Tóran:


"Os factos extraordinários não exigem uma contemplação normal, mas sobretudo o ponto de vista extraordinário ao qual nunca teria acesso o cidadão ainda que estivesse no local do acontecimento, embora afastado pela polícia. Quando o repórter aproxima a sua câmara a poucos centímetros dos protagonistas do acontecimento, a distorção da objectiva grande angular actua sobre o espectador fazendo com que ele se sinta uma testemunha de excepção, como se tivesse conseguido romper o cordão policial. Miguel de la Quadra, primeiro repórter da TVE, conseguiu com esta técnica captar planos surpreendentes a poucos milímetros do resto de Arafat, Péron, Nasser."(14)


Quanto ao enquadramento, "significa harmonizar, combinar, condizer, quadrar, abrangendo a posição do sujeito da acção em relação à margem."(15) Por outras palavras, o enquadramento é entendido como um sistema de comunicação a partir do qual cada autor de algum modo impõe a sua própria subjectividade na leitura de uma situação através do olho da câmara.


encenação e composição


Tecnicamente, a reportagem é sempre encenação. O mesmo acontece, de resto, com os demais géneros do jornalismo electrónico. Escreve Cébrian Herreros: "Os objectos, os animais, o homem como expressão e, em definitivo, tudo quanto possa ser percepcionado através da vista, ao ser captado pelas câmaras como elemento expressivo do autor ou testemunho da realidade perdem a sua individualidade e o seu contexto real para se incorporarem num novo contexto (o que o autor estabelecer) e, consequentemente, adquirem novos vínculos. Cria-se, para utilizar uma expressão procedente da linguística, uma sintaxe dos objectos ou da realidade (...). Pode acrescentar-se que a partir desse momento a realidade deixa de o ser para se converter em signo."(16)


Esse signo é então realidade encenada. Pôr em cena é, pois, um conceito englobador e final de selecção, disposição e apresentação dos elementos componentes de uma realidade através da qual o repórter expressa a sua visão particular do mundo enquanto testemunha privilegiada de um determinado acontecimento. A encenação é um conceito chave: resume toda a situação signíca, posto que permite organizar a reportagem em função dos parâmetros estéticos e informativos inscritos no signo visual.


Neste contexto, procede tanto do enquadramento quanto da composição do plano, embora apareça ligada com maior frequência ao conceito de composição, cujo objectivo é evitar que o olhos do espectador se desviem dos elementos essenciais da imagem. Compor o plano é organizar esses elementos de modo a que eles cheguem com clareza até ao espectador. Perante a composição, o repórter assume uma atitude semelhante à do pintor ao organizar traços e manchas de cor sobre a tela, ou à do cenógrafo quando constrói o cenário mais adequado à valorização da representação.


profundidade de campo e iluminação


Considerada a dimensão semiótica do plano é ainda indispensável referir a iluminação e a profundidade de campo. Esta, é entendida de um duplo ponto de vista, técnico e estético. Do ponto de vista técnico tem a ver com a "quantidade" de realidade captada com nitidez pela câmara em determinadas condições, como sejam a abertura do diafragma, o nível de iluminação, a distância focal da objectiva, etc.. Do ponto de vista estético, a profundidade de campo surge relacionada com a composição visto remeter para a possibilidade de dispor diferentemente os elementos, objectos ou pessoas, constituintes da imagem.


Profundidade de campo em Citizen Kane (1941) de Orson Welles

Quanto à iluminação, ela é um recurso expressivo e conotativo da maior importância. Factor relevante da criação artística, dando vida e personalidade à imagem, a força expressiva dos jogos de luz e sombra permite potenciar a dimensão estética e emotiva do plano e configurar até valores simbólicos. Sendo, portanto, um recurso expressivo, é imprescindível ao registo, quer da imagem cinematográfica, quer da imagem electrónica.


Até agora, por razões metodológicas, temos vindo a encarar o plano como uma unidade estática. A sua manifestação mais habitual é, porém, dinâmica. O movimento é mesmo a característica dominante do sistema visual: há, por um lado, o movimento no interior de cada plano, com a sua relativa autonomia; e, por outro, o movimento resultante da articulação dos diversos planos. Em qualquer dos casos estamos perante fenómenos complexos, como veremos adiante. Para já, vamos introduzir dois novos campos de abordagem. O primeiro é


A KINÉSICA


que intenta compreender a linguagem do corpo em movimento, estuda os gestos e a mímica, tanto de um ponto de vista autónomo, quanto associados à fala. Tem a ver com aquilo a que habitualmente se chama a expressão corporal. Ray Birdwhistell(17) pretendeu ver uma analogia entre a linguagem verbal e a Kinésica. Segundo ele, do mesmo modo que o discurso pode ser dividido em sons, palavras, frases, parágrafos, etc., também a fala do corpo se pode entender em função de unidades similares. A unidade mínima de significação é o kine, uma simples contracção, um movimento quase imperceptível. Acima do kine há movimentos mais significativos denominados kinemas, cujo entendimento se processa quando vistos em contexto.


Flora Davis regista que os americanos dispõem, apenas, de cinquenta ou sessenta kinemas para o corpo todo, incluindo trinta e três para o rosto e a cabeça. Estes últimos incluem quatro posições para as sobrancelhas (levantadas, abaixadas, contraídas, ou movidas em separado) quatro posições para as pálpebras, sete para a boca, três maneiras de balançar a cabeça (assentimento simples, duplo e triplo), etc.. Sublinha Flora Davis: "É lógico que isso representa apenas uma fracção muito pequena de todos os movimentos que a cabeça e o rosto são capazes. Na verdade, excluindo-se o número verdadeiramente astronómico de movimentos humanos anatomicamente possíveis, cada cultura confere significado para uma meia dúzia apenas."(18)


Apesar destas limitações, os conhecimentos da kinésica são muito úteis para o repórter permitindo-lhe não apenas fazer a leitura da disponibilidade e atitude dos seus interlocutores, mas também adoptar ele próprio a expressão corporal e facial mais adequada a cada momento da sua intervenção, sobretudo em directo ou em "vivo".


Do mesmo modo, é indispensável ao repórter conhecer, ao menos, alguns rudimentos da


PROXÉMICA,


cujo objecto de estudo é o uso que o homem faz do espaço no qual realiza a sua função social. Afirma Moles: "A proxémica assenta sobre uma espécie de perspectivismo dos fenómenos valorizando-se o que está próximo em detrimento do que está distante, ou seja, valorizando uma espécie de centro psicológico do mundo em relação ao indivíduo tomado como ponto de referência."(19)


Estudo para As Cabeças de Dois Guerreiros (1505) de Leonardo Da Vinci ou a forma de perceber através do desenho a paisagem do rosto na kinésica

A aplicação da proxémica à Televisão é de uma importância singular ao decidir sobre as modalidades de transmissão — directo ou diferido — e sobre os géneros jornalísticos, em especial a reportagem, posto que se pretende criar a ilusão de se estar perante a realidade. Sabe-se, por exemplo, como uma transmissão em diferido, facilita o distanciamento do espectador, visto ele saber de antemão o desfecho da notícia, reduzindo-se, como tal, o seu campo de participação e aumentando, concomitantemente, as suas possibilidades de juízo crítico e analítico.


Este ponto de vista compreender-se-á melhor se considerarmos os quatro tipos de distância habitualmente tidos em conta nesta matéria:


1. A distância íntima ou distância do amor ou da agressão.

2. A distância pessoal ou distância da amizade.

3. A distância social, a mais frequente, relativa ao mundo dos negócios, à vida nas empresas, aos postos de trabalho, às relações das pessoas que apenas se conhecem, etc.

4. A distância pública, respeitante às relações institucionais.


No tocante à Televisão estes conceitos são susceptíveis de diversas aplicações. Nas entrevistas, por exemplo, as distâncias entre as câmaras e os microfones, por um lado, e entre o entrevistador e o entrevistado, por outro, podem variar da íntima à pessoal, desta à social e pública, com toda a gama de combinações possíveis, de acordo com os planos visuais e sonoros pretendidos. Trata-se, em suma, de saber organizar as distâncias segundo as quais se pretende uma maior ou menor proximidade do receptor em relação à mensagem ou aos seus elementos constituintes.


OS MOVIMENTOS DA CÂMARA


Ao movimento no interior do plano devem acrescentar-se os movimentos da câmara: ou em torno do seu eixo, para baixo ou para cima e vice-versa, ou da esquerda para a direita e vice-versa; ou sobre um suporte, seja ele o ombro do operador ou qualquer outro. No primeiro caso temos as panorâmicas, no segundo os travelling.


A panorâmica é essencialmente descritiva. Serve para identificar o espectador com o local da acção. Em Televisão deve utilizar-se de modo muito comedido, pois não só não há nenhuma semelhança entre a imagem filmada e a imagem realmente vista pelo olho humano — os olhos não fazem panorâmicas — como pode distrair a atenção do espectador obrigado a dispersar-se por uma grande variedade de elementos icónicos sucessivamente mostrados. A panorâmica tanto pode introduzir a monotonia do olhar, quando utilizada com muita frequência, como produzir ruído na comunicação, se utilizada ora num sentido ora no outro, posto obrigar o espectador a mudar constantemente o sentido da leitura.


Quando ao travelling, permite acompanhar de perto o desenvolvimento de uma acção ou aproximar ou afastar o espectador do centro psicológico dessa mesma acção. É um efeito igualmente possível de obter através da utilização da lente zoom.


Montagem: O Efeito Kuleshov

De posse dos elementos enunciados podemos agora começar a pensar em termos da constituição de uma narrativa visual. Foi o que de algum modo fizeram os pioneiros do cinema, muito embora não possuissem ainda equipamentos capazes da sofisticação dos equipamentos actuais. Esses primeiros cineastas cedo perceberam que uma narrativa só pode ser veiculada através de uma linguagem e que a linguagem cinematográfica começa com a possibilidade de articulação de planos em movimento. Eles perceberam, também, que a justaposição de dois planos põe em jogo uma relação espacial e temporal uma vez que, na verdade, a mudança de plano rompe a continuidade de pelo menos um desses parâmetros: permite mudar de local para local ou de posição dentro de um mesmo local, bem como retomar continuadamente o tempo (diegético), ou dar um salto em frente (elipse), ou um salto atrás (flash-back). Cria-se, assim, o espaço e o tempo do ecrã, os quais têm um enorme potencial informativo e criativo pois permitem seleccionar o essencial, prescindindo do atípico e redundante. É deste modo que a história da evolução narrativa acaba por se identificar com a descoberta gradual das diversas possibilidades aí contidas surgindo, portanto, inevitavelmente, ligada à ideia de montagem.


(Continua)


Notas remissivas


CAPÍTULO III


1. LOTMAN, Yuri

Estética e Semiótica do Cinema, Editorial Estampa, Lisboa, 1978

2. Ibidem

3. Ibidem

4. HERREROS, M. Cébrian

Introducción al Lenguage de la Televisión - Una Perspectiva Semiótica, Ediciones Pirámide, S.A., Madrid, 1978

5. WENDERS, Wim

A Lógica das Imagens, Edições 70, Lisboa, 1990

6. JEANNE, R. e FORD, C.

História Ilustrada do Cinema, Enciclopédia de Bolso Bertrand, Lisboa, 1977

7. GRANJA, Vasco

Dziga Vertov, Livros Horizonte, Lisboa, 1981

8. VERTOV, Dziga

El Cine-Ojo, Textos e Manifiestos, Editorial Fundamentos, Madrid, 1973

9. Ibidem

10. BORETSKY, R. e KUZNETSOV, G.

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11. LOTMAN, Yuri

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12. MASSON, Phillipe

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13. GARCÍA, Jaime Barroso

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14. TORÁN, L. Henrique

La Informacion en TV, Editorial Mitre, Barcelona, 1982

15. Ibidem

16. HERREROS, M. Cebrián

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17. BIRDWHISTELL, Ray L.

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18. DAVIS, Flora

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19. MOLES, Abraham

La Comunicacion et les Mass Media, Marabout, Paris, 1973













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