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CULTURA

  • Foto do escritorJorge Campos

A Caixa Negra 5 - O I(ni)maginável Mundo Novo


Publicado há 30 anos, penso que este meu livrinho chamado A Caixa Negra continua a ser pertinente. Na verdade, tendo sido escrito para estudantes a iniciar o Curso de Jornalismo na área da Televisão, tem algo que me parece de elementar precaução. Alerta para as ilusões dos jovens em torno deste medium fascinante e discute questões essenciais como a manipulação e a propriedade dos meios de comunicação social numa sociedade, já nessa altura, confrontada com aquilo a que chamei uma crise das representações. Também nele se reclama ser indispensável entender o Cinema de modo a poder melhor entender a linguagem da Televisão, hoje algo totalmente negligenciado. Este texto corresponde ao capítulo IV de A Caixa Negra intitulado O I(ni)maginável Mundo Novo e antecipa algumas das coisas que por aí estão. Prepara, também, o seguinte e último capítulo chamado O Insustentável Peso do Lixo.



Fonte: Reason Magazine

O INIMAGINÁVEL

acontece. Nos Estados Unidos, estações de Televisão por cabo vocacionadas para a venda de objectos ao domicílio através de concursos ameaçam as audiências das grandes networks, por vezes, ultrapassam-nas. É a lógica do consumismo na sua irracionalidade. É a vitória do consumo pelo consumo, sem distinção dos produtos adquiridos em função da sua utilidade. Um dinossauro de plástico amarelo é especialmente disputado, um crocodilo de peluche leva os lares americanos ao rubro.


Por cá, ainda não chegou o cabo nem chegaram estas modalidades de canais especializados, o que não quer dizer que os concursos não tenham singrado. Bem pelo contrário. As tabelas de audiências atribuem já os lugares cimeiros a alguns concursos à frente, por exemplo, das telenovelas, do desporto e das notícias.


Lá, como cá, como um pouco por todo o mundo, o concurso não põe qualquer exigência de aprendizagem intelectual. É puro entretenimento construído à volta de uma ideia central, o dinheiro, e encenado por forma a resultar em termos minimamente espectaculares. É barato e rentável. Acertar no preço de um produto, por exemplo, exige apenas um mínimo de bom senso e, provavelmente, um máximo de frequência dos hipermercados, aliados à disponibilidade interiorizada de alimentar um flirt regular com os objectos. Voyeur de quase tudo, como quase toda a gente, o concorrente encontra na contemplação dos objectos satisfação para uma parte significativa das necessidades do seu imaginário e no concurso a possibilidade de objectivar o seu desejo, transformando--se em protagonista de uma aventura vivida por milhões diante de ecrãs de televisão que com ele arriscam na sorte de um lance o acesso a um efémero momento de glória.


Claro que, de um modo geral, o espectador nem sequer se apercebe que os prémios realmente gordos são puro engodo e, como tal, destinam-se a ser parcimoniosa e episodicamente distribuídos. Quanto ao mais, salvo raras excepções, ao participante incomoda interrogar, explorar ou analisar. De resto, nem para tal é solicitado mesmo quando o concurso, aparentemente, aponta para uma intervenção cultural, no sentido da participação criadora e da partilha de conhecimentos. Escrevendo a propósito dos concursos radiofónicos com objectivos supostamente culturais, Baudrillard comenta:


"O que é repartido deixa de ser 'cultura'; o corpo vivo, a presença actual do grupo (tudo o que fazia a função simbólica e metabólica da festa) já não é um saber no sentido próprio do termo; é o estranho corpo de signos e referências, de reminiscências escolares e de signos intelectuais da moda a que se dá o nome de 'cultura de massas' e que poderá igualmente chamar-se M.C.C. (Menor Cultura Comum), no sentido do menor denominador comum em aritmética — no sentido, também, do 'standard package', que define a menor panóplia comum de objectos a possuir pelo consumidor médio para aceder ao título de cidadão da sociedade de consumo. Assim, também a M.C.C. define a menor panóplia comum de 'respostas justas' que se supõe possuir o indivíduo médio para alcançar a patente de cidadania cultural".(1)


Será razoável alargar este menor denominador cultural comum em termos de uma elaboração tipificadora do espectador médio de Televisão? E haverá, de facto, um espectador médio? É uma questão controversa com repercussões tanto no plano da linguagem, na medida em que problematiza a codificação da mensagem em função de um determinado receptor (o espectador - consumidor), quanto no plano da actividade jornalística, a qual se inscreve no quadro global da interacção entre o fazer televisivo e a sociedade no seu conjunto.


UMA CORRIDA PARA A FRENTE


Tecnicamente, a Televisão é o resultado da conjunção e da interpenetração de três séries de descobertas: da foto-electricidade, ou seja, da capacidade de certos corpos transformarem, por radiação de electrões, a energia eléctrica em energia luminosa; do processo de análise de fotografias decompostas e, depois, recompostas em linhas de pontos claros e escuros; e, por fim, do domínio das ondas hertzianas para efeito da transmissão de sinais eléctricos correspondentes a cada um dos pontos da imagem analisada.


John Logie Baird e o seu modelo original de televisão. Foto: TIME

Não cabe aqui fazer a história da Televisão. Retenham-se, porém, os nomes de dois pioneiros, porventura os principais protagonistas das duas principais vias de análise das imagens: a da varredura mecânica por um feixe luminoso, derivada do disco de Nipkov, e a da varredura por um feixe de electrões derivada dos trabalhos de Rosling. Um desses pioneiros foi o escocês John Logie Baird. Excêntrico, visionário, adivinhou a Televisão do futuro falhando, embora, na sua tentativa de transmissão mecânica de imagens. Foi de curta duração o programa que chegou a ter na fase experimental da BBC. O outro pioneiro teve melhor sorte ao apostar na electrónica. Foi o russo Vladimir Zworykin. Após uma longa estadia em França, acabou por se radicar nos Estados Unidos onde, em 1927, construiu o seu famoso iconoscópio, com o qual passaram a ser equipadas as máquinas fotográficas, e que permitiu o aperfeiçoamento dos tubos de raios catódicos dos receptores de televisão.


No seguimento dos trabalhos de Zworykin poder-se-iam citar muitos nomes. Para o nosso propósito é suficiente referir que os progressos foram rápidos, mas o início da II Guerra Mundial interrompeu as experiências então em curso. Importa, contudo, sublinhar o seguinte. Apesar de habituados às mutações técnicas com impacto civilizacional, a sociedade contemporânea parece ter estranhado a velocidade da mudança mediática. Fora preciso século e meio para que os jornais nascessem do invento de Gutenberg, mas vinte anos tinham bastado para que a TSF conduzisse à radiodifusão pública e, menos de dez anos após os primeiros ensaios, já a Televisão principiara a funcionar. A amplitude da expansão dos meios eléctricos levou historiadores da comunicação a afirmar que eles nunca encontraram o seu equilíbrio na estabilidade:


"Impelidos sem cessar para um maior desenvolvimento pelos progressos da técnica e pelo dinamismo dos interesses comerciais e políticos que os apoiam, cresceram e diversificaram-se numa espécie de corrida para a frente cujo objectivo é bem incerto."(2)


Vladimir Zworykin e o seu protótipo. Fonte: Russkiy Mir Foundation

No caso da Televisão, os anos 80 vieram confirmar essa incerteza. Foram os anos de desregulamentação no quadro de um mercado cada vez mais concorrencial e, porque não dizê-lo, à beira da saturação. A tal ponto que a década de 90, na Europa, principiou com nítidos sinais de recessão, enfrentando boa parte das televisões generalistas sérias dificuldades financeiras. Sob pressão da concorrência, os serviços públicos resvalaram para uma zona de alta indefinição quanto às pressões do poder político, transformando-se em gigantescos aparelhos de controle social. É uma ideia para ser desenvolvida adiante e que encontra nas notícias um dos seus aspectos mais perturbadores, posto que elas não só legitimam o discurso político dominante, como tendem a substituir-se ao acontecimento, transformando-se, elas próprias no acontecimento. Roberto Marinho, o magnate da televisão brasileira chega ao ponto de afirmar que, hoje em dia, os conceitos de História e Jornalismo mantém total afinidade.


Dir-se-á que a Televisão é apenas um dos media e argumentar-se-á com a sua complementaridade para efeito da formação da opinião pública. Ainda assim, seria insensato desvalorizar o peso específico da Televisão, muitas vezes a única fonte de informação e entretenimento para um número substancial de pessoas. Aliás, a corrida para a frente em que a Televisão continua envolvida põe questões suficientemente sérias para merecerem a atenção de diversos organismos, como o European Television Task Force e o European Institute for the Media, parecendo ganhar força a ideia de que a qualidade da democracia tem uma relação directa com o modo de operar dos seus meios de comunicação social. Ora, é justamente em torno deste problema, afinal o problema da cidadania, que se levanta o maior número de interrogações. Vejamos algumas.


PROPAGANDA E ESTEREÓTIPOS


A propaganda política visa, fundamentalmente, a conquista e a preservação do poder. É uma comunicação persuasiva, alicerçada num conjunto de técnicas de informação, destinada a influenciar as opiniões, os sentimentos e as atitudes do público num determinado sentido. É, portanto, uma acção planeada e racional.


Sobretudo a partir dos anos 60, a Televisão substituiu a Rádio com vantagem, tanto no plano da chamada propaganda de competição, como de propaganda de integração.


Fonte: Shutterstock

A propaganda de competição é um mecanismo de mudança social e de transformação política, num quadro de consensualidade adquirida, visando a conquista, por meio do prestígio,


"de uma maioria flutuante de um corpo político, de um agrupamento ou de um mercado. O consenso traduz-se no facto de o prestígio reconhecido por uma maioria constituir lei aceite pela minoria. O prestígio temporário adquirido através da propaganda substitui o confronto físico, a pura relação de forças."(3)


A propaganda de competição inscreve-se no curto prazo e tem afinidades com a publicidade, manifestando-se, por exemplo, durante as campanhas eleitorais.


A propaganda de integração é de longo prazo. Baseia--se nos valores transmitidos de geração em geração através de factores como a família, a escola, as convicções religiosas, e apoia--se na memória colectiva, confrontando os infractores da norma com a ameaça de reprovação. Este tipo de propaganda tornou-se organizada e ideológica; assumindo um controle crescente sobre os mass media, em especial sobre os jornais televisivos.


Em qualquer dos casos, sendo de competição ou de integração, a propaganda procede de simplificações. Walter Lippmann(4) afirma que o indivíduo, incapaz de interpretar o mundo em toda a sua complexidade, cria para seu uso modelos sustentados por estereótipos. A teoria de Lippmann, que tem servido de base a muitos estudos sobre a propaganda, identifica o mundo estereotipado como substituto da realidade existente. Esta ilusão, segundo Biriukov, é configurada a partir do momento em que os estereótipos são, essencialmente,


"uma espécie de aceleradores do conhecimento, que ajudam um indivíduo a formar uma ideia de um objecto ou de um fenómeno, antes de ele entrar em contacto com eles. Desta forma, os estereótipos combinam-se para formarem imagens, que pavimentam o caminho que leva à manipulação directa da opinião pública."(5)


Entramos, assim no domínio da


INDÚSTRIA DA CONSCIÊNCIA.


Os gestores dos media, segundo Herbert Schiller,


”criam, processam, refinam e presidem à circulação de imagens e informações, que determinam as nossas crenças e atitudes e, em última instância, o nosso comportamento. Quando produzem deliberadamente mensagens que não correspondem à realidade da existência social, os gestores dos media tornam-se gestores das mentes. As mensagens que criam intencionalmente um falso sentido da realidade e produzem uma inconsciência que não permite compreender ou rejeitar livremente as actuais condições da vida pessoal e social são mensagens manipuladoras.(6)


Herbert Schiller

Em sentido lato, manipulação significa uma técnica de mudança da consciência sem que disso o manipulado se aperceba. A eficácia manipulatória obtém-se accionando determinados mecanismos psicológicos num quadro de estereótipos da realidade. Em relação aos Estados Unidos, por exemplo, Schiller identifica cinco mitos estruturantes dos media. São eles os mitos do individualismo e da escolha pessoal, da neutralidade, da natureza humana imutável, da ausência de conflito social e do pluralismo dos mass media. Por analogia, poder-se-iam determinar os mitos que noutras circunstâncias históricas correspondem a outras realidades. No caso das televisões do Estado, com forte vínculo governamental, é fácil identificar os estereótipos conducentes à construção do mito da eficácia ou do mito da estabilidade, um e outro indispensáveis à consolidação das estratégias do poder. Mas o que é, afinal, a função do mito?


O MITO


Dois parágrafos de Roland Barthes permitem dar resposta à questão. Segundo ele,


"a função do mito é transformar uma intenção histórica em natureza, uma contingência em eternidade. Ora, este processo é o próprio processo da ideologia burguesa. Se a nossa sociedade é objectivamente o campo privilegiado das significações míticas, é porque o mito é formalmente o instrumento mais apropriado para a inversão ideológica que a define: a todos os níveis da comunicação humana, o mito realiza a inversão da anti--physis em pseudo-physis."(7)


Prossegue Barthes:


"O que o mundo fornece ao mito é um real histórico, definido, por mais longe que recue no tempo (...) e o que o mito restitui é uma imagem natural deste real (...). Uma prestidigitação inverteu o real, o seu sentido humano, de modo a fazê-lo significar uma insignificância humana."(8)



Roland Barthes

CONTROVÉRSIAS


É certo que a abordagem da manipulação, mitos e estereótipos, exige a aceitação do pressuposto da existência de um fenómeno de massificação promovido pelos mass media e assenta, até, na convicção de que a cultura de massa é um dos expoentes referenciais das sociedades modernas. Há quem, contudo, rejeite este ponto de vista, reduzindo os conceitos de massa e de cultura de massa, eles mesmos, à categoria de mitos construídos a partir de elaborações teóricas insuficientemente testadas ou resultantes de leituras essencialmente ideológicas. No fundo, trata-se da velha querela, sempre emergente da problemática dos media, que opõe optimistas a pessimistas. Orlando Miranda, por exemplo, afirma que todo o mito procura impor uma crença, ao serviço de uma ideologia. Nessa perspectiva,


"o mito da massa recusa possibilidade às acções colectivas, e propõe como substitutas fugas individuais (para as quais os media fornecem os meios). O mito da massa nega racionalidade à consciência colectiva, e a nega também ao indivíduo por ser uma consciência socialmente condicionada. Numa palavra, o mito da massa nega o próprio homem que, animalizado, deve conformar-se à sua pseudo-condição de objecto histórico."(9)


A dinâmica das sociedades modernas, na sua intensa mutabilidade, impõe um permanente questionar de dados adquiridos, relevando a sua transitoriedade. Como tal, é indispensável introduzir a controvérsia nestas matérias, já de si tão contraditórias, e que nos devolvem às interrogações abertas no início do capítulo a propósito da viabilidade de caracterização de um espectador médio de Televisão. Seja como for, é difícil negar, em maior ou menor extensão, a existência de massificação induzida pelos media. O próprio Miranda não nega esse fenómeno, afirmando, embora, que ele se explica pela multi - significação do produto e não pela padronização do consumidor.


Fonte: Sites at Penn State

Nesse sentido, talvez não seja possível fazer o retrato robot do espectador médio, mas é certamente possível expor alguns dos traços característicos dessa massificação, em relação à qual, de resto, o Estado está longe de ser um presumível inocente. Há dados que decorrem da constatação de factos. Quando se estabelece, por exemplo, uma relação directa entre o exercício do poder político e o controle das televisões estatais, mais não se faz do que admitir o óbvio. Como óbvio é o facto de qualquer poder exercido através dos media ser massificador. É este tipo de relações, aliás, que leva Maurice Duverger a afirmar:


"O poder da Televisão é tal que se não se adapta o seu regime às estruturas políticas do Estado, são as estruturas políticas do Estado que se adaptarão ao regime da Televisão."(10)


E Duverger acrescenta:


"A contradição tornar-se-á insolúvel entre uma TV governamental e um sistema democrático, de sorte que a primeira acabará por esvaziar o segundo de toda a sua substância."(11)


E é por aqui que se entra no mundo das


MÁSCARAS


Com efeito, a Televisão surge como um autêntico aparelho ideológico do Estado, em última instância um prolongamento do poder político e, enquanto tal, agente da História com a qual se confunde no seu fazer quotidiano. Sendo assim, o campo informativo recolhe a ambiguidade resultante da sobreposição do político e do jornalístico. O político necessita da máscara do jornalismo para credibilizar a informação, mas retira-lhe autonomia por forma a fazer passar sem sobressaltos a sua mensagem numa combinação mais ou menos hábil de formas de propaganda de competição e de integração. Esta, regula a direcção estratégica do discurso de acordo com os mitos e estereótipos da dominação, aquela, introduz o indispensável elemento de conflitualidade (razoável) de modo a manter sob abertura controlada os canais de circulação de ideias sem os quais as sociedades tendem ao enclausuramento, asfixia e morte, como aconteceu nos países comunistas do leste europeu. De resto, sendo coisas diferentes, a manipulação e o condicionamento, para serem eficazes, não podem manifestar-se como tal, sob pena de produzirem um efeito de boomerang por perda de credibilidade junto do receptor. Daí, uma vez mais, o recurso à máscara.


De passagem, importa acrescentar que a "propaganda informativa" é enquadrada pelo conjunto da programação televisiva, ela mesma uma "propaganda global". Como sublinhou McLuhan(12), já não faz sentido a transmissão de mensagens de conteúdo obviamente propagandístico através dos media. Importa, sim, valorizar a importância da totalidade cultural, diversa a ponto de integrar a língua, a alimentação, a publicidade, o entretenimento, etc.. Vão longe os Dias da Rádio, a Guerra das Ondas e a Teoria da "agulha hipodérmica" na sua formulação inicial.


Fonte: Quora

O QUE O PÚBLICO QUER


O controle do emissor sobre as mensagens veiculadas é, entretanto, justificado com alegadas preferências do público. Por outras palavras, o emissor só é responsável por aquilo que emite na medida em que o receptor o exige. É a ditadura dos índices de audiência. Comentando a violência que inunda a Televisão americana, Schiller afirma:


"A programação diária (...) com a sua média de seis homicídios por hora, é facilmente justificada pelos controladores dos media como um esforço para dar às pessoas o que elas querem. É muito mau, dizem encolhendo os ombros, mas a natureza humana exige dezoito horas diárias de mutilações e morticínios."(13)


Tal como Schiller, também Richeri contesta o critério das audiências:


"De um modo geral, não me parece que sejam os gostos do público que tenham determinado, até ao momento, a oferta televisiva, pelo contrário tem sido a oferta televisiva que tem formado o gosto do público. Com a passagem da televisão de serviço público a televisão comercial, passa-se substancialmente de uma "pedagogia institucional" a uma "pedagogia dos consumos", mas embora mudem os conteúdos da programação é sempre o emissor quem decide, entre todas as possibilidades, o que há-de transmitir. O público nunca tem a possibilidade de saber quais poderiam ter sido as alternativas e nunca pode promovê-las."(14)


O emissor aparece, assim, com um papel determinante no


CONTROLE DA EMISSÃO,


assumindo um lugar de destaque nos novos paradigmas da comunicação. Se tomarmos como ponto de partida o esquema de Lasswell, verificaremos que das cinco grandes linhas de pesquisa por ele enunciadas — control analysis, content analysis, media analysis, audience analysis e effects analysis — a primeira e a última adquirem uma relevância renovada. Após as tentativas, aliás, bem sucedidas, de provar a relatividade da influência dos media, caso das teorias dos "efeitos limitados" e da "persuasão" (às quais já fizemos referência) e da marginalização da teoria da "agulha hipodérmica", assiste-se, agora, a uma revalorização desta última, bem como do poder exercido no conjunto da sociedade pelos meios de comunicação de massa. Um dos textos que assinala esta mudança intitula-se, significativamente, "Return to the Concept of Powerful Mass Media ", da autoria de Noelle Neuman.(15)


Elisabeth Noelle Neuman

Volta, portanto, a estabelecer-se uma relação entre quem controla os mass media e quais os efeitos pretendidos. Agora, porém, em vez de se estudarem casos singulares, optou-se pela cobertura global de todo o sistema mediático, substituindo-se o recurso às técnicas tradicionais, como as entrevistas, por metodologias integradas. Já não estão tanto em causa as mudanças de atitude e de opinião, mas sim a reconstrução do processo através do qual o indivíduo modifica a sua própria representação da realidade social. Investigam-se, assim, "os sistemas de conhecimento que o indivíduo assume e estrutura de uma forma estável devido ao consumo que faz das comunicações de massa"(16), mudando, concomitantemente, o quadro temporal da pesquisa. Ou seja, os efeitos pontuais ligados à exposição à mensagem dão lugar aos efeitos cumulativos, sedimentados no tempo.


É o que afirmam Lang e Lang a propósito da competição eleitoral:


"Os mass media (...) exercem a influência que têm na medida em que são algo mais do que um simples canal através do qual a política dos partidos é apresentada ao eleitorado. Ao filtrar, estruturar e realçar determinadas actividades públicas, o conteúdo dos mass media não se limita a transmitir aquilo que os porta-vozes proclamam e aquilo que os candidatos afirmam (...) Não só durante a campanha mas também nos períodos intermédios, os mass media fornecem perspectivas, modelam as imagens dos candidatos e dos partidos, ajudam a promover os temas sobre os quais versará a campanha e definem a atmosfera específica e a área de relevância e de reactividade que assinala cada competição eleitoral."(17)


Evidentemente, a passagem dos "efeitos limitados" para os "efeitos cumulativos" implica a substituição do modelo transmissivo da comunicação por um modelo centrado no processo de significação. Este é já o domínio da

AGENDA-SETTING,


a qual sustenta que


"em consequência da acção dos jornais, da televisão e dos outros meios de informação, o público sabe ou ignora, presta atenção ou descura, realça ou negligencia elementos específicos dos cenários públicos. As pessoas têm tendência para incluir ou excluir dos seus próprios conhecimentos aquilo que os mass media incluem ou excluem do seu próprio conteúdo. Além disso, o público tende a atribuir àquilo que esse conteúdo inclui uma importância que reflecte de perto a ênfase atribuída pelos mass media aos acontecimentos, aos problemas, às pessoas."(18)



Por outras palavras, os mass media, ao descreverem e precisarem a realidade exterior, apresentam ao público uma lista em torno da qual é possível formar uma opinião ou ter uma discussão. Afirma Grossi:


"Nas sociedades industriais de capitalismo desenvolvido, em virtude da diferenciação e da complexidade sociais e, também, em virtude do papel central dos mass media, foi aumentando a existência de fatias e de 'pacotes' de realidade que os indivíduos não vivem directamente nem definem interactivamente a nível da vida quotidiana, mas que 'vivem', exclusivamente, em função de ou através da mediação simbólica dos meios de comunicação de massa."(19)


Eis-nos, pois, chegados onde queríamos chegar: a construção da realidade.


Obviamente, é esta possibilidade de fabricar a realidade que torna a Televisão tão apetecível ao poder político. Havendo uma relação directa entre o regime de propriedade e as estratégias discursivas, é fácil perceber que a Televisão pode transformar-se num instrumento de propaganda caso pertença ao Estado e não disponha de um estatuto de serviço público, claramente definido, que a autonomize da esfera governamental.


Nos países comunistas do leste europeu a situação não se prestava a equívocos:


"A sociedade socialista atribui abertamente aos seus meios de informação e de propaganda de massas a tarefa de defenderem ideologicamente o socialismo e de orientarem a opinião pública na direcção justa. A informação e propaganda são as principais componentes das actividades ideológicas da sociedade socialista."(20)


Esta perspectiva burocrática, que atribuía aos media uma função meramente instrumental ao serviço da ideologia, teve os resultados que teve. Aliás, muito tempo antes da derrocada dos regimes herdeiros do estalinismo, era já evidente a falta de credibilidade do seu universo mediático junto dos cidadãos. No ocidente, a chamada democracia liberal teve o mérito de criar um sistema no qual são autorizadas expressões alternativas no campo dos media. Não quer isso dizer, no entanto, que o modelo funcione na perfeição. Na verdade, até alberga no seu seio muitas ambiguidades. A título de exemplo, vejamos


O TELEJORNAL SEGUNDO UMBERTO ECO,


Redigido numa altura em que o escritor manteve uma divertida polémica com a Televisão italiana. Insurgindo-se contra o carácter tendencioso dos noticiários, Eco elaborou um decálogo humorístico contendo as regras da manipulação da informação política. Esse decálogo tem sido publicado por diversas vezes e pode resumir-se do seguinte modo:


Fonte: Quartz

A primeira regra da manipulação é não comentar senão o que se pode ou deve comentar, porque — e esta é já a segunda regra — a informação verdadeiramente orientada não tem necessidade de comentários, baseando-se na escolha de adjectivos e num jogo de contraposição. A terceira regra aconselha, em caso de dúvida, a optar pelo silêncio, eliminando as informações incómodas. Há, depois, outras regras, como sejam: colocar a notícia importuna onde já ninguém a espera, de preferência num tempo de exposição rápido e sem imagens significativas; utilizar linguagem técnica, incompreensível para a maioria do público, mas reveladora da superioridade dos conhecimentos de quem a utiliza, dissuadindo a crítica; só fornecer informação completa quando a imprensa diária a tiver já difundido. A sétima regra é a da submissão ao poder e de prescrever o compromisso só se o governo se tiver já comprometido, sendo indispensável a intervenção de um ministro. Vêm, finalmente, as regras de valorização dos assuntos, que fecham o decálogo: apresentar oralmente as notícias importantes; considerar como uma obrigação a filmagem do que não tem qualquer interesse; e, só mostrar as coisas importantes se elas ocorrerem no estrangeiro.


Esta paródia, sendo o que é, nem por isso deixa de colocar o dedo na ferida de muita da informação televisiva. Uma vez mais, parece legítimo inferir que da convergência do político e do jornalismo resulta um produto ambíguo, ressoando a propaganda camuflada. Na prática, situações decorrentes do decálogo de Eco levantam não poucos problemas aos jornalistas. Às vezes, são pequenos detalhes, aparentemente insignificantes, que fazem as grandes coisas e as grandes causas. Eric Nepomuceno, da Rede Globo de Televisão, relata um episódio curioso a propósito de


"SOMOZISTAS" E "REBELDES":


"Fui contratado quando ainda morava no México e a ideia era participar do projecto de desenvolver mais o noticiário relacionado à América Latina. (...) Na quarta ou quinta semana de trabalho, fui chamado pelos responsáveis pelos noticiários e ouvi um pedido um tanto constrangedor: 'Não use mais a palavra somozista quando se referir ao pessoal da Guardia Nacional que luta contra os sandinistas'. O pedido veio acompanhado por uma explicação: 'É que somozista é um termo pejorativo, seria editorializar a notícia. O correcto é usar rebeldes.' Fiz então um extenso relatório explicando quem era quem nos grupos armados instalados em Honduras, na Costa Rica e na Flórida. Expliquei que a maioria se autoclassificava de somozista, da mesma maneira que décadas antes havia quem se definisse como nazista, fascista, franquista, salazarista, etc., sem achar que isso fosse pejorativo. Depois de muita discussão, autorizaram que a palavra maldita fosse usada — Mas só no Jornal da Globo, que era exibido por volta da meia-noite, uma audiência considerada 'qualificada'. No Jornal nacional, não: a palavra tinha mesmo de ser rebeldes nicaraguenses."(21)


Este episódio, e outros semelhantes — todos os dias as redacções têm histórias a contar — ocorre no contexto da criação de um universo audiovisual, sobre o qual há pontos de vista muito diversificados. Está-se, na verdade, perante um


MUNDO NOVO,


nem sempre admirável, mas de perspectivas tão aliciantes quanto contraditórias.

Os optimistas valorizam a capacidade do homem para superar os constrangimentos induzidos pela massificação através da inteligência e criatividade, uma e outra estimuladas tanto por uma incessante inovação tecnológica dos meios electrónicos quanto pela revolução micro-informática. Prospectivamente, definem o perfil de uma sociedade de sujeição das máquinas à vontade do homem, uma sociedade desmassificada por via da utilização generalizada dos self--media.



Menos especulativos, os pessimistas partem de uma avaliação de dados cujos efeitos levam a temer um fenómeno de massificação sem precedentes, não apenas nos países onde a Televisão é o principal e, por vezes, único, meio de informação e entretenimento, mas também nos países mais avançados, como os Estados Unidos. Daí vêm, de resto, os principais sinais de alerta e as críticas mais contundentes.


Project Censored é uma organização americana vocacionada para o estudo e crítica dos media, especialmente preocupada com as diversas formas de censura. Todos os anos Project Censored elege os dez assuntos mais censurados pelos meios de comunicação. Os resultados respeitantes a 1989 projectaram para os lugares cimeiros da tabela as notícias respeitantes ao controle crescente dos media por um número cada vez menor de corporações gigantescas.


Ben H. Bagdikian, ex-chefe de redacção do Washington Post e ex-director da Escola de Jornalismo da Universidade de Berkeley, num estudo largamente fundamentado, chega à conclusão de que "os senhores da aldeia global têm a sua própria agenda política e resistem a quaisquer mudanças económico-sociais que não se ajustem aos seus interesses financeiros."(22) Escreve Bagdikian:


"Juntos, eles exercem um poder homogeneizante sobre as ideias, a cultura e o comércio que afecta as maiores populações de que se tem conhecimento desde sempre. Nem César, nem Hitler, nem Franklin Roosevelt e nem qualquer papa tiveram tanto poder como eles para moldar a informação da qual tantas pessoas dependem para tomar decisões sobre as mais variadas matérias — desde em quem votar, até ao que comer."(23)


Quando saiu a primeira edição do livro de Bagdikian, eram apontados os nomes de cinquenta empresas detentoras do controle da maioria da produção mediática mundial. Pouco tempo depois, ao sair a segunda edição, o autor foi obrigado a anotar no prefácio que esse número se tinha reduzido para vinte e nove. E, hoje, são ainda menos.


Fonte: Interwebz

Outra obra de grande impacto nos Estados Unidos é "Manufacturing consent: The political economy of the mass media" da autoria de dois professores universitários, Edward S. Herman e Noam Chomsky. Os autores não se coibem de chamar ao modelo da Televisão americana "um modelo de propaganda".(24) Segundo eles são os poderosos que estabelecem as premissas do discurso, estabelecendo o que é permitido ao público ver, ouvir e pensar.


A leitura das duas obras mencionadas levou o escritor Gore Vidal, com a irreverência habitual, a escrever:


"Os dois estudos demonstraram exactamente como uns poucos manipulam a opinião pública; para início de conversa, a casa do americano médio mantém o televisor ligado sete horas por dia. Isso significa que o americano médio já viu 350 mil comerciais ao chegar aos dezassete anos. Como a opinião da maioria é controlada agora por vinte e nove corporações, conclui-se que os vinte e nove chefes executivos são uma espécie de politburo ou colégio de cardeais, encarregados daquilo que o povo deve ou não pensar. Além disso, eles escolhem os presidentes e o Congresso — ou, para ser preciso, determinam até sobre o que os políticos podem falar em período de campanha eleitoral."(25)


É caso para dizer: Big Brother is watching you!




(Continua)


Notas remissivas


1. BAUDRILLARD, Jean

A Sociedade de Consumo, Edições 70, Lisboa, 1981

2. ALBERT, P. e TUDESQ, A.J.

História da Rádio e Televisão, Editorial Notícias, Lisboa, sem data

3. NAMER, Gérard in Guia Alfabético das Comunicações de Massa, Propaganda, Edições 70, Lisboa, sem data

4. LIPPMANN, Walter

Public Opinion, MacMillan, New York, 1921

5. BIRIUKOV, N. S.

A Televisão no Ocidente e as suas Doutrinas, edições Avante!, Lisboa, 1987

6. SCHILLER, H. I.

The Mind Managers, Beacon Press, Boston, 1972

7. BARTHES, Roland

Mitologias, Edições 70, Lisboa, 1984

8. Ibidem

9. MIRANDA, Orlando

Tio Patinhas e os Mitos da Comunicação, Summus Editorial, São Paulo, 1976

10. Duverger é aqui citado a partir de um ensaio de Francisco Rui N. Cádima, "Notícia do Mundo e de lado nenhum Ou a ilusão naturalista da informação televisiva", publicado na Revista de Comunicação e Linguagens nº8 de Dezembro de 1988

11. Ibidem

12. McLuhan é citado por Julian Hale — La radio como arma política — a partir de A. Briggs, A History of Broadcasting in the United Kingdom, Oxford University Press, Londres, 1970

13. SCHILLER, H. I.

The Mind Managers, Beacon Press, Boston, 1972

14. SOLER, Llorenç

La Televisión — una metodologia para su aprendizage, Editorial Gustavo Gilli, S.A., Barcelona, 1988. Nesta obra, o professor Giuseppe Richeri, entrevistado pelo autor, avança uma ideia interessante sobre o que, em seu entender, deveria ser a Televisão do futuro. Diz ele: "É inevitável, (...), que sejam os profissionais a fazer a televisão, mas creio que os protagonistas dessa televisão não deveriam ser exclusivamente personagens 'excelentes' (peritos, artistas, líderes políticos e sindicais, etc.); o novo sentido de acesso do público deveria ser o de colocar no centro da informação televisiva os protagonistas da vida real que se desenvolve nos lugares de trabalho, de investigação, de estudo e de tempos livres."

15. WOLF, Mauro

Teorias da Comunicação, Editorial Presença, Lisboa, 1987

16. Ibidem.

A citação é de Lang e Lang, reproduzida por Wolf que afirma que no centro da problemática dos efeitos se coloca, hoje, a relação entre a acção constante dos mass media e o conjunto de conhecimentos acerca da realidade social, que dá forma a uma determinada cultura e que sobre ela age, dinâmicamente. Nessa relação devem destacar-se três características dos meios de comunicação social: a acumulação, a consonância e a omnipresença, todas elas definidas por Noelle Neuman. A primeira está ligada à capacidade dos mass media criarem e manterem a relevância de um tema, através de repetições contínuas, como acontece em especial no campo da informação televisiva. A segunda associa-se ao facto das semelhanças existentes nos processos produtivos da informação serem mais significativos que as diferenças, "o que conduz a mensagens substancialmente mais semelhante do que dissemelhantes". A terceira respeita não apenas à difusão quantitativa dos mass media, mas também ao facto de o saber público ter um carácter particular: "é do conhecimento público que esse saber é publicamente conhecido." Conclui Wolf: "Isso reforça a disponibilidade para a expressão e para a evidência dos pontos de vista difundidos pelos mass media, e daí o poder que essa evidência tem sobre aqueles que não formaram ainda uma opinião própria. O resultado final é que, muitas vezes, a repartição efectiva da opinião pública se regula pela opinião reproduzida pelos mass media e se adapta a ela, segundo um esquema de conjecturas que se autoverificaram."

17. Ibidem

18. Ibidem

19. Ibidem

20. BIRIUKOV, N. S.

A Televisão no Ocidente e as suas Doutrinas, edições Avante!, Lisboa, 1987

21. NEPOMUCENO, Eric in Rede Imaginária, Secretaria Municipal de Cultura, Companhia das Letras, São Paulo, 1991

22. FERREIRA, Argemiro in Rede Imaginária, Secretaria Municipal de Cultura, Companhia das Letras, São Paulo, 1991

23. Ibidem.

Citado por Ferreira, Bagdikian adverte: "Aquilo que chega ao conhecimento do público é largamente influenciado pelo que serve aos interesses económicos e políticos das corporações proprietárias dos media. Como os seus donos estão agora tão ampla e profundamente envolvidos nos mais altos escalões da economia, as notícias e demais informações públicas ficam grandemente desiquilibradas em favor dos valores das corporações."

24. Ibidem

25. Ibidem


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