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   viagem pelas imagens e palavras do      quotidiano

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  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 24 de set. de 2020
  • 12 min de leitura

Atualizado: 22 de out. de 2023

"Sometimes you have to lie. One often has to distort a thing to catch its true spirit”.

Robert Flaherty  



Representação e distorção são conceitos desde sempre na primeira linha das preocupações do homem a partir do momento em que se pôs a pensar o real e a realidade e assim começou a construir os seus paradoxos magníficos. Platão via no mundo das ideias o fundamento de tudo o que existe no mundo sensível. Sendo, porém, o mundo sensível apreendido através dos sentidos, que são enganadores, então a realidade é aparência e, portanto, falsa. Para Descartes, há uma ideia das coisas e do mundo em correspondência com a realidade, mas é impossível conhecer a realidade em si. Em Kant a realidade é o “númeno” e aquilo a que temos acesso, por via de impressões sensíveis e de construções empíricas, é o "fenómeno". O acesso à realidade é, pois, de ordem fenomenal, uma manifestação sensível da coisa sem carácter de transcendência. Este percurso epistemológico de inúmeras variações serve igualmente o cinema e, em particular, o filme documentário. A forma peculiar de relação deste último com o real partilha esse mesmo labirinto como se fosse um poliedro de cristal: consoante a refracção luminosa e a valorização de uma ou outra face, assim também se dá início a um jogo de construção da realidade a partir do qual vamos descobrindo que um documentário, afinal, pode ser muitas coisas.


As obras clássicas no âmbito das teorias do cinema não dão grande destaque ao filme docmentário. Rudolf Arnheim, por exemplo, não lhe dedicou atenção especial. Tanto melhor. Vejamos o universo cinematográfico, como ele o entende, ou seja, como uma janela através da qual é possível ver o mundo – entenda-se: ver o mundo igual a compreender o mundo. Arnheim far-nos-ia virar essa janela até um ângulo em que o vidro começasse a refractar a luz, distorcendo o que está para além dele e, ao mesmo tempo revelando as suas propriedades. Repentinamente tornamo-nos conscientes da composição do vidro, da sua textura, dos tipos de luz que ele permite passar e assim por diante. A arte cinematográfica é um produto da tensão entre a representação e a distorção. O documentário também. 


Com efeito, quando se procura defini-lo ocorre estarmos em presença de um objecto do campo cultural que remete para o domínio de discursos de natureza diversa sobre o mundo real (Guynn: 2001). Esses discursos, entendidos no cinema como a materialização de significados resultantes da articulação gramatical de signos, são portadores de mimesis, mas também de diegesis, sendo que a primeira remete para a imitação e a segunda para a narrativa. É nesta duplicidade de sentido da qual o pathos, uma estrutura narrativa que requer a dramatização, é inseparável que se inscreve a ideia de filme documentário. Mas é, também, justamente aí – e, portanto, na poética, no sentido aristotélico que remete para as regras a seguir para a realização da obra de arte – que residem as maiores dificuldades de decifração de um bem simbólico supostamente representativo do real.


Documentário e evidência


Desde a  Idade Média, o documento, do latim docere (ensinar), aparece associado à nossa capacidade de aprendizagem a partir da experiência dos outros. Encarado durante muito tempo como um saber absoluto, a sua mera existência seria a razão mesma da sua verosimilhança. Nessa perspectiva, seria legítimo aceitar uma concepção da História segundo a qual o discurso dela resultante seria simplesmente verdadeiro porque as coisas não seriam senão elas mesmas. Porém, se assim fosse, encarado na perspectiva da linguística moderna, o significante seria a expressão imediata do real o que conduziria ao paradoxo de que fala Barthes a propósito da pertinência do discurso histórico em relação a outro tipo de discursos: “(...) tudo se passa como se essa existência não fosse senão a ‘cópia’ pura e simples de uma outra existência, situada num campo extra-textual, o ‘real’ (Guynn: 2001), o que, evidentemente, não faz sentido.


Com o documentário passa-se algo de semelhante. Tal como o documento deixa de constituir evidência de prova em si mesmo visto ser objecto da interpretação do historiador, cujos modelos obedecem sempre a critérios de mediação do âmbito da linguagem, também o documentário só adquire o seu estatuto monumental – e, portanto, de evidência – em função de regras discursivas que viabilizam a interpretação do real através do ponto de vista de um intérprete. A prova, portanto, é aquela que resulta em proposta do autor e apenas essa.


Como explicar então a persistência do equívoco que vê no documentário um equivalente imediato do real?


Para Brian Winston a legitimação do documentário recolhe fundamentos que vêm do realismo do século XIX, nomeadamente da pintura de um Courbet e da fotografia de um modo geral. A imagem cinematográfica, por sua vez, dado seu poder de analogia, parece ser um veículo privilegiado para produzir o discurso da verosimilhança e daí a tentação de atribuir ao documentário a propriedade de autorizar os acontecimentos a exporem-se por si mesmos, falando por si próprios.


Documentário é cinema


Essa propriedade tem expressão nas teorias realistas, cujo expoente é André Bazin. Para ele, a fotografia estabelece uma relação assíntota com o real, ou seja, aproxima-se cada vez mais dele (Bazin: 1991). Essa relação, devido ao movimento, ganha contornos de maior evidência no cinema, o qual, por isso mesmo, deveria evitar todos os artifícios da linguagem para efeito de representação. Como tal, a montagem, pedra angular das teorias formalistas, não pode deixar de lhe suscitar reservas:


“A montagem, que tantas vezes é tida como a essência do cinema, é (...) o procedimento literário e anti-cinematográfico por excelência. A especificidade cinematográfica, apreendida pelo menos uma vez em estado puro, reside, ao contrário, no mero respeito fotográfico da unidade do espaço” (Bazin:1991).


Daí a importância que Bazin atribui à profundidade de campo, como faz Orson Welles emCitizen Kane (1941), a qual permite atenuar o efeito do corte e sublinhar aquilo que designou por realismo espacial. Para ele, uma cena realista é, por exemplo, aquela em que o esquimó de Nanook of the North (1922) de Robert Flaherty se prepara para caçar uma foca, posto que todos os elementos indispensáveis à compreensão do que está a acontecer são dados num único plano. Na verdade, o exemplo não poderia ser mais oblíquo uma vez que, por um lado, a fita de Flaherty é encenada de princípio ao fim e, por outro, no caso vertente, não só a cena tem vários planos como, lembra Hélio Godoy, “a foca estava morta” (Godoy: 2002). De qualquer modo, poder-se-ia afirmar que no limite o realismo purista de Bazin seria “o documentário total” despojado de todas as marcas de enunciação: “É a revelação neutra, impassível, não humana de um mundo objectivo” (Tudor: 1985).


Entre os realistas há, no entanto, diferenças de opinião. Kracauer é céptico em relação aos filmes de tipo documental, nos quais inclui os cine-jornais, porque, segundo ele, sofrem de limitações que contrariam a essência do próprio cinema. Limitar-se-iam a descrever acontecimentos sem ousar aquilo que o cinema permite, aquilo que talvez fosse mesmo impossível conhecer antes da sua invenção, ou seja, a descoberta do real. Para ele, o cineasta persegue dois objectivos: o registo da realidade e “a revelação dessa mesma realidade através do uso criterioso das propriedades disponibilizadas pelo médium” (Andrew, 1976). O seu realismo volta-se então para o filme de enredo, cujas histórias devem ser encontradas no seio da existência humana e no seu peculiar modo de afirmação ou negação. Para ele, sem o argumento o cinema estaria condenado a uma visão superficial da vida, o que seria contrário à sua vocação de descobrir e dar a ver a razão profunda das coisas ou, como diria Bazin, de desempenhar um papel de “redenção da realidade física”.


Percorrendo embora caminhos diferentes, Bazin partilha com Kracauer o mesmo ponto de partida de exequibilidade improvável, ou seja, estão ambos envolvidos “na tentativa de criar uma estética não social do real” (Tudor, 1985). Claro que quer num caso, quer no outro, as contingências dos respectivos percursos obrigam a notas à margem. Bazin valoriza Vertov e o seu Kino-Pravda (1922-1925). Sugere então que observados determinados limites, desde que respeitada a unidade do espaço e, portanto, o mundo ‘artificial’ do filme e o mundo ‘real’ tenham características partilhadas, a montagem poderá ser aceitável [1]. Kracauer, cujo pensamento estético resulta do convencimento da possibilidade do cinema permitir tecnicamente a revelação do real, acaba por reconhecer o direito que assiste aos realizadores de expressarem o seu próprio ponto de vista: o que estaria em causa seria um realismo humano, portanto, não um realismo de facto, mas de intenção. Ao cineasta caberia, assim, a partir da fidelidade ao mundo histórico, executar o argumento capaz de promover a aproximação ao real absoluto.


Ao invés de Bazin e de Kracauer, Arnheim rejeita o realismo e sustenta que todos os artifícios são válidos desde que legitimadores da arte do cinema. Diz Arnheim que se o cinema se sujeitasse a ser apenas uma representação do real não deixaria lugar para a intervenção do criador. Aliás, a representação tal qual desse mesmo real é impossível como o demonstra a comparação entre os elementos básicos da linguagem cinematográfica e as características correspondentes daquilo que percebemos como realidade: “Notar-se-á como são fundamentalmente diferentes os dois tipos de imagens; e que são precisamente essas diferenças que dotam o cinema dos seus recursos artísticos” (Arnheim: 1989).


Que diferenças são essas que tornam o cinema irreal? Em primeiro lugar, os objectos são dados a ver numa superfície bidimensional – o espaço do ecrã – e não a três dimensões como acontece com o olho humano. Essa circunstância reduz o sentido da profundidade e coloca o problema do tamanho da imagem. Esta, por sua vez, requer o artifício da iluminação e, numa altura em que o cinema era a preto e branco, prescindia da cor. O enquadramento, por sua vez, é determinado por um conjunto de opções da parte de quem opera a câmara de filmar e a montagem quebra a continuidade espacio-temporal do real. Finalmente, a imagem cinematográfica, antes do advento do som, solicita apenas a visão, prescindindo dos demais sentidos.  Em suma, conclui Arnheim, o cinema convoca a presença de todos estes elementos irreais que são, afinal, a sua matéria prima enquanto arte.


Se, em rigor, estas reflexões não remetem imediatamente para o domínio do filme documentário, a verdade é que elas nos permitem um jogo cruzado cujo resultado não é mais do que a possibilidade de a partir dele pôr em evidência eixos fundamentais da sua identificação: em Bazin encontramos a linha de uma tradição realista que faz parte do acervo cultural do ocidente e que se exprime em forma de arquétipos ao opor, por exemplo, a verdade e o erro, a história e a ficção, numa perspectiva segundo a qual o real filmado se aproxima do real real; em Kracauer o realismo é investido de cambiantes que se introduzem no plano do discurso através da maior ou menor fidelidade do argumento ao mundo histórico; em Arnheim a negação do realismo serve para justificar a necessidade de dominar os artifícios que o cinema requer, de modo a impor um ponto de vista autoral que abra as portas do universo da Arte. Nada disto é estranho ao filme documentário.


Parece lícito, portanto, concluir que há leituras das Teorias do Cinema que autorizam o reconhecimento de uma linha de continuidade aplicável ao filme documentário. Por alguma razão, para dar apenas um exemplo, os seus primeiros modelos discursivos podem ser vistos como um produto do filme mudo preocupado com a orquestração visual e com a expressão simbólica, uma e outra associadas às correntes formalistas e às vanguardas artísticas, com Eisenstein e Dziga Vertov à cabeça, mas recolhendo igualmente subsídios tão diversos quanto o são os de Lev Kuleshov, Jean Epstein, Paul Strand, Joris Ivens, Ralph Steiner ou Man Ray.


Documentário é e não é ficcional


Contudo, se é fundamental concluir pela existência de um campo a partir do qual os postulados do filme documentário são encarados como parte integrante do universo cultural e textual do cinema, é igualmente pertinente relevar áreas de diferenciação e de especificação, nomeadamente tendo em conta aspectos relacionados com a fenomenologia do espectador. Kracauer, para quem o documentário é ambíguo nas suas proposições, suscita um dilema que Andrew sintetiza do seguinte modo: “Deverá o documentário, o género mais estritamente vinculado à exploração da realidade, ficar subordinado ao capricho das intrigas inventadas pelos argumentistas?” (Andrew: 1993).  É uma boa questão a suscitar algumas considerações em torno da questão documentário/ ficção


Até à afirmação da televisão como meio de comunicação de massas no final dos anos 40, embora muitas vezes associado à rádio e à fotografia, o documentário designou, sobretudo, um determinado tipo de filme, ao qual, por razões diversas, se associavam imediatamente nomes como os de Flaherty, Vertov, Grierson ou Joris Ivens. Todos eles tinham em comum a pesquisa de um novo tipo de cinema que escapasse à lógica do estúdio e fizesse a abordagem do mundo histórico de um modo peculiar. Todos eles perceberam que os seus documentos eram resultantes de um discurso, ao qual era inerente um ponto de vista e, portanto, uma interpretação. Todos eles, de um modo ou de outro, tiveram a noção dos limites da objectividade. Enfim, todos eles participaram desse debate que, grosso modo, procurou distinguir o campo documental do campo ficcional.


Porém, a história das tentativas de distinguir ficção e documentário (ou cinema de ficção e cinema de não-ficção, que não é rigorosamente equivalente a documentário), não é mais do que o encontro com um conjunto reiterado de evidências. Em síntese, pode dizer-se que quanto mais se avança na reflexão sobre o modo como se constroem os documentários, tanto mais é forçoso reconhecer a presença de técnicas e artifícios comuns à produção ficcionada: as personagens, ainda que pertencentes ao mundo real, são tratadas de modo a ganharem espessura dramática; o argumento, mesmo tendo origem na actualidade, é construído em função de estruturas narrativas capazes de criar a emoção e de manter o interesse do espectador; os acontecimentos, ainda que captados in loco, são editados tendo em conta o ritmo proporcionado por técnicas de montagem geradoras de tensão e pontos culminantes. Diria Godard:


Jean-Luc Godard

“Todos os grandes filmes de ficção tendem ao documentário, como todos os grandes documentários tendem à ficção. (...) E quem optar a fundo por um deles encontra necessariamente o outro no fim do caminho” (Godard: 1985).


A razão que possa assistir a Godard – e muita, seguramente, assiste – deve, no entanto ser confrontada com outros parâmetros de observação. Tratando-se de “um argumento sobre o mundo histórico” (Nichols: 1993), o documentário, ao promover a representação do real, fá-lo na base de um contrato estabelecido com o destinatário que não é o mesmo que se estabelece em relação a outro tipo de filmes. Esse contrato prescreve uma norma e contém uma cláusula de negação. A norma: a presença do olhar documentário que combina a apresentação da matéria prima do mundo sócio-histórico com a imaginação criadora de um autor. A cláusula de negação: o que é dado a ver não é entendido pelo público como ficção. Guynn vai mais longe ao afirmar que “é precisamente contra a ficção e as suas tradições que se foi constituindo a teoria do documentário” (Guynn: 2001).


Para ele, só isso se pode afirmar com segurança no quadro institucional do seu percurso histórico, o qual – ainda segundo Guynn – assenta fundamentalmente sobre três pilares: em primeiro lugar, o documentário tem a sua filiação natural num cinema liberto dos constrangimentos impostos por procedimentos recorrentes de outras artes como a literatura e o teatro; em segundo lugar, o documentário situa-se a si mesmo, no plano institucional, por oposição ao cinema de ficção, propondo uma crítica da suas condições de financiamento, produção e distribuição; finalmente, o documentário proclama o ‘realismo’ do seu discurso por oposição ao mundo imaginário da ficção, assumindo uma função ‘natural’ na sua relação com o seu objecto ‘natural’. Em suma, “o documentário distingue-se não somente pelo seu ‘conteúdo’ específico, as suas formas e os seus métodos, mas também pelo lugar que assume enquanto formação social (Guynn: 2001).


Outros autores, como Ellis seguem uma linha de pensamento semelhante que poderia resumir-se do seguinte modo: o documentário distingue-se de outro tipo de filmes em função dos assuntos de que trata, do modo como articula objectivos/ ponto de vista/abordagem, da sua forma, das suas técnicas e métodos de produção e da sua relação com o público (Ellis: 1989). Os assuntos remetem para acontecimentos factuais e personagens reais perante os quais o documentarista procede a uma interpretação pessoal tendo em vista informar ou persuadir o público de modo a que ele possa tomar posição sobre aquilo que lhe é proposto. A forma como o faz respeita os factos e as personagens através de uma ordenação do material fílmico à qual estão subjacentes procedimentos – como a relação com os protagonistas, ausência de actores profissionais, rodagem in loco, cenários naturais, etc. – de ordem formal, ética e estética. Mas, essa forma é sempre uma escolha sua. 


Epílogo (em aberto)


Havendo acordo de princípio quanto aos pilares do percurso histórico do documentário resultantes do enunciado de Guynn – e ele é suficientemente consensual para dispensar outros comentários – conclui-se que o documentário é, em suma, um  vastíssimo campo de experimentação do cinema que está muito para além das suas narrativas mais previsíveis. Os seus modos de enunciação, até porque se trata de declinar o real na sua infinita variedade, inscrevem-se num espaço em relação ao qual ganha relevância a voz pessoal em registos que tanto se expressam de modo mais convencional e através de códigos mais familiares, quanto descolam em direcções imprevistas criando universos de objectos estranhos que fazem dessa estranheza uma fonte de revelação conferindo novas energias à renovação do cinema. Em qualquer dos casos, há produção portuguesa relevante. Para que conste, e para citar apenas filmes muito recentes: José e Pilar de Miguel Gonçalves Mendes, Fanatasia Lusitana de João Canijo, Hope de Pedro Sena Nunes e 48 de Susana Sousa Dias.


Bibliografia


Andrew, J. Dudley – The Major Film Theories - An Introduction, Oxford University Press, London, Oxford, New York, 1976.

Arnheim, Rudolf – A Arte do Cinema, Edições 70, 1989.

Bazin, André – O Cinema - Ensaios, ed, Brasiliense, São Paulo, 1991.

Godard, Jean-Luc – Jean Luc-Godard par Jean-Luc Godard, Edition de L’Étoile, Paris, 1985.

Godoy, Hélio – Documentário, Realidade e Semiose: os sistemas audiovisuais como fontes de conhecimento, ANNABLUME, São Paulo, 2002.

Guynn, William – Un cinéma de Non-Fiction - Le documentaire classique à l’épreuve de la théorie, Publications de l’Université de Provence, Aix-en-Provence., 2001.

Nichols, Bill – La representación de la realidad - Cuestiones y conceptos sobre el documental, Ediciones Paidós Ibérica, Barcelona, 1997.

Tudor, Andrew – Teorias do Cinema, Edições 70, Lisboa, 1985.


[1]. Bazin considera essencialmente dois tipos de montagem : a montagem narrativa, a qual, no fundo permite estruturar a história que se pretende contar, e a montagem psicológica que atende a parâmetros de espaço-tempo, de modo a acentuar a verosimilhança do relato. - Nota do Autor.


  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 24 de set. de 2020
  • 8 min de leitura

Atualizado: 22 de out. de 2023

"Para mim, todos os filmes são até certo ponto propaganda, mesmo que pretendam negá-lo."


Cineasta novaiorquina galardoada com um óscar de Hollywood, Nina Rosenblum tem procurado revelar nos seus documentários aspectos menos conhecidos da história e cultura da sociedade americana. No seu percurso de relações pessoais e profissionais cruzam-se a maioria dos nomes da primeira linha do documentário americano contemporâneo, de Albert Maysles a Barbara Kopple, de Michael Moore a Richard Leacock, de Frederick Wiseman a Robert Greenwald. Presença habitual nos principais festivais de todo o mundo, Nina Rosenblum é filha de Walter Rosenblum, um dos grandes fotógrafos da Grande Depressão e da II Guerra Mundial, a quem dedicou um dos seus filmes. 


"Não devemos recear utilizar a mais popular das linguagens do cinema de ficção e aplicá-la na interpretação do que acontece à nossa volta”.

Nesta entrevista dá conta do modo como encara o documentário, a sua história e as suas contradições. As suas palavras complementam de algum modo, numa perspectiva de experiência vivida, algumas das questões discutidas ao longo dos capítulos da minha tese de doutoramento A Lógica das Imagens - Viagem pelo(s) Documentário(s). A sua experiência permite-lhe um olhar crítico sobre a produção, realização, distribuição e exibição de documentários nos Estados Unidos, do qual ressalta o sublinhado dos constrangimentos financeiros e institucionais que transformam, ainda hoje, o cinema independente numa aventura. Esta entrevista foi gravada para a RTP2, no Porto, em Outubro de 2001, aquando da sua participação na Odisseia nas Imagens.


JC. Flaherty: significa alguma coisa para si?

NR. O meu primeiro professor de cinema documental foi George Stoney que nos mostrou Man of Aran, um filme todo ele recriado de modo a parecer um documentário. Isso ensinou-me uma coisa muito importante. Enquanto realizadora tenho o hábito de repetir cenas para me aproximar do que sei ser o mais próximo da verdade. Aprendi isso com Flaherty, cujo método nos permite perceber melhor o funcionamento da sociedade. Não há que ter medo de voltar atrás ou de usar os artifícios necessários para que o que é mostrado no ecrã seja tão honesto e rigoroso quanto possível. De certa maneira, ele estabeleceu as regras do que todos nós fazemos.


JC. E quanto a Dziga Vertov e O Homem da Câmara de Filmar?

NR. Isso é qualquer coisa com a qual nasci a ponto de ter dificuldade em entrar em considerações de ordem intelectual. Tenho dificuldade em analisar o filme, dividi-lo em partes ou relevar este ou aquele aspecto porque ele faz parte do meu sangue. O mesmo acontece com Eisenstein. O meu pai estava sempre a mostrar-nos os seus filmes e isso foi como aprender o abecedário desta profissão. Foi com ele que aprendi a construir estruturas narrativas, a elevar a tensão dramática através da montagem, ao fim e ao cabo foi com ele que percebi que não há grandes diferenças entre um documentário e um filme de ficção: o ponto de partida é que é diferente, porque tudo o resto é igual.


JC. Houve um tempo em que o filme documentário esteve muito vinculado há propaganda. Que pensa de uma série como, por exemplo, Why we Fight, de Frank Capra?

NR. Estudei essa série para tentar perceber um pouco melhor o que é um filme de tese ou um filme de causas. Para mim, todos os filmes são até certo ponto propaganda, mesmo que pretendam negá-lo. Tudo tem um ponto de vista. A objectividade não existe. Fazer um filme com o intuito de mobilizar e instigar, como fez Frank Capra, é qualquer coisa que todos nós fazemos e que Hollywood faz embora jamais o possa admitir. Enfim, ele é um grande realizador e soube entender no momento certo aquilo que era preciso ser feito pela América e para que a América passasse à acção.


JC. E sobre Leni Rienfensthal?

NR. Ponho a questão da mesma maneira. Criou imagens extraordinárias, embora por razões sinistras.


JC. Pessoas como Robert Drew, os irmãos Maysles ou Richard Leacock até que ponto foram determinantes para o documentário da actualidade?

NR. Conheço-os a todos bastante bem, sou amiga de Al Maysles e falei muitas vezes com Ricky Leacock. As câmaras de 16mm que eles utilizaram permitiram fazer um cinema muito mais livre. De súbito desapareceram os constrangimentos dos equipamentos pesados, das enormes equipas de rodagem e o resultado foi uma muito maior proximidade dos cineastas face aos seus temas e protagonistas. Ainda hoje a sua influência se faz sentir no documentário, mesmo com a televisão...


JC. Que quer dizer com isso?

NR. Na América o documentário conhece crises periódicas que são de certo modo devidas ao poder imagético da televisão. Cada vez é mais difícil angariar fundos que nos permitam fazer os filmes que queremos fazer. Por necessidade, muitos realizadores acabam por trabalhar para o cabo com orçamentos que raramente ultrapassam os 80 mil dólares. Para se perceber o que quero dizer basta recordar que Liberators, o filme que fiz sobre a participação de negros americanos na libertação de prisioneiros dos campos de concentração nazis, custou um milhão e duzentos mil dólares. A televisão faz filmes superficiais de acordo com formatos previsíveis. Recuso-me a chamar-lhes documentários. Tratam de temas da actualidade, mas o estilo é o da lavagem ao cérebro. Os grandes documentários mudam as pessoas! Não se lhes pode ficar indiferente. Pelo contrário, aquilo que é a produção standard da televisão é como música de elevador: adormece, entorpece, acalma, faz-nos pensar que estamos em contacto com a realidade quando, de facto, não estamos. É a antítese do cinema documental.


JC. O que acaba de me dizer lembra-me um livro de Rosselini escrito há muitos anos sobre a utopia da televisão e quão longe essa utopia parece estar. Pensa que a televisão pode ter outro valor de uso?

NR. Absolutamente. É um medium fantástico. Tão poderoso que todos querem controlá-lo. Foi por isso que reduziram a PBS, o serviço público de televisão americano, a um canal tão parecido com as televisões comerciais, embora de quando em quando ainda guardem uma franja do horário para o documentário. Quando passaram os grandes documentários, como Harlan County, Roger and Me ou os grandes filmes de Fred Wiseman, assustaram-se. Foi demasiado forte!


JC. Porque é que os filmes de Wiseman assustaram?

NR. Frederick Wiseman é um dos documentaristas mais profundos e abrangentes do nosso tempo. Foi o filme que ele fez sobre os tribunais de menores, juntamente com Hearts and Minds, de Peter Davis, que me levaram a escolher esta profissão. O pathos e a devastadora veracidade com que ele penetrou no coração de sistemas e instituições horrorosos e no impacto aterrador que esses sistemas têm na vida das pessoas estão nos antípodas dos programas que a televisão faz, por exemplo, sobre polícias. Na televisão vemos os agentes a perseguirem traficantes, prendê-los, deitá-los ao chão, dar-lhes pontapés e todos ficamos a pensar: que bom! Wiseman não tem nada a ver com isso.


JC. Todos os seus filmes têm a América por cenário e os problemas sociais em primeiro plano. O que é que a faz correr nessa direcção?

NR. Acho que nos Estados Unidos criamos uma fachada para dar a ver ao mundo, mas há depois a realidade de uma opressão e pobreza realmente trágica mascarada pela cultura que exportamos através da publicidade e das relações públicas. Nesse sentido, todos nós vivemos uma vida esquizofrénica porque, por muito que tenhamos feito, fizemo-lo à custa de muitas pessoas que estão afundadas em nada. Há mais pessoas presas nos Estados Unidos per capita do que em qualquer outro país do mundo. A nossa maior indústria é a indústria das prisões. Há verdadeiramente duas Américas. Quando eu fiz o filme para a HBO, Lock up: The Prisioners of Rickers Island, chamamos-lhe Uma História de Duas Cidades: por um lado, temos Nova Iorque onde tudo parece perfeito, mas isso não seria possível sem os seus subterrâneos, ou seja, a Ilha de Rickers. Vivemos uma mentira, porque só vemos a superfície sem termos qualquer percepção das suas raízes. Pela minha parte, sinto-me muito próxima das pessoas que foram e são oprimidas. Porquê? Porque produziram uma cultura espantosa, cheia de vigor, que criou o Jazz, e outras formas de música e tantas outras coisas. O facto de haver uma História Americana que os americanos se recusam a ver gera uma cultura demencial.


JC. Nessa perspectiva, que devem fazer os documentaristas?

NR. Acho que não devemos recear utilizar a mais popular das linguagens do cinema de ficção e aplicá-la na interpretação do que acontece à nossa volta. Quando estava na escola era muito frequente mostrarem-nos os chamados documentários educativos e eu simplesmente odiava-os porque eram pesados e desinteressantes. Por isso, há que encontrar um estilo que chegue às pessoas e as faça querer ver, que lhes torne acessível uma realidade que todos devemos conhecer para nos conhecermos melhor a nós próprios, que nos permita sermos menos esquizofrénicos e cruéis, e mais humanos. Porque eu não tenho dúvidas sobre o que acontece quando alguém nega a humanidade de outra pessoa: enlouquece. E nos Estados Unidos temos muitas pessoas perturbadas. Mas isto não quer dizer que por razões de eficácia se possa aceitar o estilo televisivo dominante. Pelo contrário. Os grandes documentários americanos da actualidade – estou a falar de filmes de pessoas como Michael Moore, Barbara Kopple ou Deborah Shaffer – são filmes que todo o americano médio quer ver, mas nada têm a ver com esse estilo televisivo. Esse é o grande desafio que se põe ao cinema documental independente na América, que existe e está vivo.


JC. Pelo que acaba de me dizer, não deve ser fácil fazer passar esses filmes na televisão...

NR. É cada vez mais difícil produzi-los e exibi-los.


JC. Dê-me o exemplo do seu caso pessoal...

NR. No início da minha carreira, em 1980, angariei fundos junto da National Endowment for the Humanities que me atribuiu 350 mil dólares para fazer America & Lewis Hine. Recorri também a diversas fundações e à televisão pública. Após quatro anos de produção e angariação de fundos o filme abriu o Festival de Cinema de Berlim, ganhou o prémio IDA, foi vencedor em Sundance e passou nos principais festivais de todo o mundo. Seguiu-se Through the Wire, para o qual voltei a angariar fundos. Uma pessoa a título individual deu-me 70 mil dólares, consegui outras pequenas contribuições, fizemos uma co-produção com o Channel Four e com a SPS australiana e o filme foi emitido. A partir daí os dinheiros públicos começaram a diminuir. Voltei-me, então, para a HBO para fazer Lock Up: The Prisioners of Rikers Island. Com os dois filmes anteriores tive 99,9% de controle, mas com a HBO fui obrigada a travar uma batalha tremenda porque eles queriam inverter o sentido do filme...


JC. Como?!...

NR. Queriam omitir a brutalidade da polícia e dos guardas, bem como os problemas sociais e os motivos tantas vezes ligados à pobreza que levam as pessoas à prisão. Por outro lado, entendiam que era necessário dar ênfase à violência dos prisioneiros, ao tipo de armas que utilizavam, no fundo justificando o que acontecia dentro da cadeia. As divergências foram tão grandes que provavelmente nunca mais voltarei a trabalhar com a HBO.


JC. Foi a seguir que fez Sly and the Family Stone?

NR. Sim, mas antes de Sly fomos trabalhar com a Turner onde até certo ponto tudo correu muito bem. Tínhamos 600 mil dólares, boas condições de trabalho e acho que fizemos um filme maravilhoso, The Black West. Mas, quando estávamos a terminá-lo os advogados da Turner ligaram-nos a dizer que teríamos de mudar toda a parte central que era aquela que nos parecia mais interessante. Andamos a jogar o jogo do gato e do rato, mantivemos essa parte, o filme foi exibido em toda a Europa e ganhou um Emmy nos Estados Unidos. Sly veio a seguir, escrito e co-produzido por Dennis Watlington para o Showtime/NYTimes. Visitamos a família de Sly, fomos até à igreja onde Freddy tocava, a mãe de Sly estava presente, enrevistámos Rose e Billy Preston, enfim foi uma das grandes experiências da minha vida. Era um filme sobre a importância daquele tipo de música, sobre o que tinha acontecido nos anos 60 com as mudanças suscitadas pela guerra no Vietname, Woodstock, o fim de Woodstock e depois o início da era Reagan que pôs fim a todas as ilusões de acabar com o sexismo, o racismo e de substituir a competição pela solidariedade. Infelizmente, o Showtime/NYTimes não estavam interessados nessa mensagem. Queriam que Sly Stone fosse retratado como um palerma drogado, recusaram qualquer espécie de contexto social e acabaram por remontar o filme retirando-lhe grande parte da sua autenticidade.


JC. Como reage a todas essas dificuldades?

NR. Procuro sempre manter o controlo sobre a produção, por muito pouco que ganhe, ou muitas dívidas que tenha, porque de facto me endividei muito e o meu pai que já teve um ataque cardíaco e não quer voltar a ter outro (risos). Ele é um pai que viveu a Grande Depressão e por isso está sempre preocupado com a nossa sobrevivência. Ver-me investir tanto dinheiro pessoal aborrece-o muito, mas não há outra maneira. As forças dominantes da televisão dos dias de hoje são tão limitadas e tão institucionais – falo de propaganda institucional – que, para eu poder dizer as coisas que quero dizer, tenho de proceder deste modo. É assim para mim, para William Klein e para muitos outros. Quando nos envolvemos com as televisões comerciais, os filmes são deles, o controlo é deles, somos forçados a lutar, mas nunca se consegue vencer...

  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 24 de set. de 2020
  • 9 min de leitura

Atualizado: 22 de out. de 2023


Vale Abraão de Manoel de Oliveira

Aconteceu pouco antes da sua morte. Sabendo-se o seu estado de saúde e dado o interesse em perpetuar a sua memória junto de um público mais vasto, coube-me fazer um documentário para a televisão sobre Miguel Torga, aliás, sempre avesso a mostrar-se a não ser através da sua obra, a qual li então integralmente e, verdade se diga, quanto mais a lia mais a queria ler, mesmo apreciando desigualmente os diferentes modos da sua diversificada expressão. O filme foi feito em condições peculiares dada a urgência da tarefa e de Torga apenas me foi permitida uma única imagem final, a última que dele há ainda em vida, feita à distância de modo a evitar mostrar as irreversíveis marcas da doença que o haveria de levar. Dele ficou também um último registo de um fio de voz lendo um poema por ele escolhido, Súplica, se a memória não me atraiçoa. Contei, nomeadamente, com a colaboração de David Mourão Ferreira e de Manuel Alegre. O filme, de magro orçamento, fez-se correndo contra o tempo, editando ao ritmo do que se ia sendo filmado, sem a clara noção daquilo que viria a ser uma vez terminado. Mas, uma vez terminado, bem ou mal, além de Torga havia o Douro. Não sei se haveria Torga sem o Douro nem o Douro sem Torga. Nem Torga sem Trás-os Montes. Estou em crer que não. O filme chama-se Torga.


Claro que sobre a região duriense o mesmo poderia aplicar-se numa outra escala e de maneira diversa a numerosas páginas de Guerra Junqueiro, Aquilino Ribeiro, Trindade Coelho, João de Araújo Correia, Pina de Morais e Domingos Monteiro, de resto, todos eles, posteriormente, ligados a um outro projecto de documentários para televisão em torno do Douro e da Literatura e, por isso, pela sua circunstancial relação com as imagens, aqui referenciados. Outros, ainda, poderiam ser lembrados, em todos se encontrando momentos de perfeita sinestesia entre a ordem deslumbrante da paisagem natural e a imensa dignidade da paisagem humana num labor no limiar do desfalecimento temperado por festividades pagãs ligadas à água, ao canto, ao mosto e ao vinho. Os socalcos do Douro são, portanto, um palco extraordinário para a encenação da condição humana e o rio, no lento fluir das suas águas, remete para tempos ancestrais, para uma sabedoria antiga da qual não está ausente a transcendência, como sucede nestes versos do autor da Criação do Mundo:


“À proa de um navio de penedos,/ A navegar num doce mar de mosto,/ Capitão no seu posto/ De comando,/ S. Leonardo vai sulcando/ As ondas/ Da eternidade,/ Sem pressa de chegar ao seu destino./ Ancorado e feliz no cais humano, / É num antecipado desengano/ Que ruma em direcção ao cais divino.”


Olhando o Douro, fácil é o entendimento de tamanha grandeza ter atraído a atenção de tantos escritores de cuja arte resultaram páginas inesquecíveis. Contudo, essa dimensão simbólica e imagética não encontra no cinema algo de equivalente. Aí, a presença do Douro é relativamente episódica e se é verdade que Vale Abraão de Manoel de Oliveira e O Rio do Ouro de Paulo Rocha são dois momentos incomparáveis onde o imaginário beneficia da ressonância da paisagem e da sua grandeza e contrastes, é igualmente certo que a maioria das imagens conhecidas são de cunho institucional. Ao leitor mais atento, evidentemente, não terão escapado duas omissões de peso: Douro, Faina Fluvial, também de Manoel de Oliveira, o qual, dada a sua relevância, justifica uma atenção mais alargada, como adiante se perceberá, e Trás-os-Montes de António Reis e Margarida Cordeiro, filme singularíssimo, mas no qual o Douro é relativamente marginal.


Dito isto, uma questão se coloca: haverá alguma razão para tão parca presença do Douro no cinema português? Certamente. Mas a resposta não reside tanto na falta de interesse dos nossos cineastas quanto nas características da nossa produção, ou seja, a questão de fundo é a exiguidade do mercado e o reduzido número de filmes de longa metragem produzido anualmente. É um problema antigo para o qual nunca se encontrou solução satisfatória e o que se passa com o Douro sucede com a generalidade das regiões de Portugal, excepção feita à capital e, mais recentemente, à cidade do Porto, neste caso por via de uma produção escolar no âmbito da qual a curta metragem de ficção e o documentário têm vindo a conhecer um novo impulso.


Todavia, deve ficar claro, se escasseiam os filmes vinculados a uma linha autoral abunda outro tipo de imagens. Quando fiz o filme sobre Torga uma pesquisa sumária revelou a existência de um acervo importante na Cinemateca Portuguesa, hoje no Arquivo Nacional das Imagens em Movimento e, também, no serviço público de televisão. Diligências posteriores confirmaram essa impressão.


Apesar de estar por fazer a identificação exaustiva desse património, não será arriscado afirmar haver imagens da região duriense e do seu rio praticamente desde o início da aventura das imagens em movimento. Algumas delas terão até não só valor documental mas também interesse para a história do cinema português como serão os casos de Porto: ses quais et ses débardeuses (1923) de Roger Lion e As margens do Rio Douro do Porto a Entre-os-Rios, este, segundo José Manuel Costa um filme mudo tintado, do período nitrato, ainda não datado nem identificado, mas muito interessante. É ainda provável muitos dos registos da fase anterior à introdução do som terem origem na Invicta Filme da primeira fase, ou seja, no período em que a empresa de Nunes de Matos se dedicou fundamentalmente ao filme documental, antes de enveredar pelo filme de enredo nos estúdios da Prelada, no Porto, sob a orientação de realizadores e técnicos estrangeiros.


Por outro lado, como seria de esperar, a temática do Douro é recorrente nos jornais de actualidades cinematográficas ao longo de décadas e o mesmo sucede quanto ao filme de tipo documental pelo qual passaram, de resto, ao longo dos anos, muitos cineastas conhecidos como Artur Duarte, Leitão de Barros, Perdigão Queiroga, Fernando Garcia, Manuel Guimarães, João Mendes e alguns outros. De momento, não é ainda possível ter uma ideia de conjunto destes filmes e da sua relevância para o filme documentário, o qual se distingue do filme documental pela narrativa associada ao real imaginado. A ideia prevalecente vai, contudo, no sentido de admitir quer no caso das actualidades quer do documental, um pendor didáctico, eventualmente resvalando para um certo folclorismo que a partir de determinada altura contaminou o cinema português. Haverá certamente excepções antes e depois da reconquista da democracia cuja avaliação – por exemplo, o nome de Manuel Guimarães só por si sugere essa possibilidade –, na inexistência de uma história crítica do documentário português, continua, no entanto, por fazer. Para já, certo é, no período do cinema mudo, sobrar apenas uma única obra decisiva, naturalmente, Douro, Faina Fluvial.


Para melhor se compreender a génese deste filme impõe-se uma deriva de natureza contextual. Durante os anos 20, mesmo após a instauração da ditadura em 1926, quase toda a melhor produção internacional continuou a passar por Portugal. Inicialmente, portanto, e durante algum tempo, a ditadura não adoptou uma política cultural monolítica. Para essa abertura terá contribuído não só a postura de António Ferro, mas também o grupo de jovens a partir do qual se faria a renovação do cinema português, nomeadamente Leitão de Barros e António Lopes Ribeiro. Um e outro tinham estado na Alemanha e na União Soviética, cujas cinematografias eram consideradas por Fernando Pessoa como as únicas cujos filmes se aproximavam da ideia de arte. Sucede, por outro lado, que havia revistas cinematográficas e que no Porto e em Lisboa tinham aberto salas de grandes dimensões, nomeadamente o Teatro de S. João e o Tivoli. Em suma, existia uma atmosfera favorável e o próprio estado não se coibiu de fazer uma lei proteccionista, a famosa lei dos Cem Metros Nacionais publicada no Diário do Governo de 6 de Maio de 1927. Basicamente determinava-se que todo o espectáculo cinematográfico deveria incluir como complemento um filme português com o mínimo de 100 metros. Os resultados revelar-se-iam desastrosos devido aos maus orçamentos e piores argumentos, mas é provável que o Douro tenha sido objecto de algumas dessas produções.


Seja como for, quando Oliveira, então com 23 anos, fez Douro, Faina Fluvial, tinha conhecimento do melhor cinema internacional, nomeadamente, dos trabalhos mais experimentais associados às vanguardas artísticas dos anos 20. Manifestamente influenciado por Berlim, Sinfonia de uma Cidade de Walter Ruttmann e O Homem da Câmara de Filmar de Dziga Vertov, bem como pela montagem dos filmes de Eisenstein,Douro, Faina Fluvial foi o único filme português à altura dos melhores sinais da modernidade, mas com uma diferença. Ao contrário do que sucede com a maioria das sinfonias urbanas, centradas no ritmo, movimento e nas formas, presta uma atenção especial à paisagem humana. Sobre ele José Régio escreveu:


“A moderna poesia do ferro e do aço, o encanto da natureza através dos seus vários aspectos e ‘nuances’, a tonalidade das horas, a alegria e a miséria do homem sócio do animal na luta pelo pão de cada dia – tudo, ao longo de um dia de actividade na margem do Douro, nos é dado com verdadeira grandeza.”


Contudo, quando da sua primeira exibição, em 1931, no Salão Foz, em Lisboa, no decorrer do Congresso Internacional da Crítica, perante a surpresa dos congressistas vindos de fora, a maioria dos portugueses, como lembra Henrique Alves Costa, acompanhou a projecção “com constantes assobios e terminou com uma estrondosa pateada”. Valeram os elogios da crítica estrangeira e de alguns dos mais destacados intelectuais portugueses, entre os quais o citado Régio e Adolfo Casais Monteiro. O documentário só viria a ser reposto em sala em 1934, no Teatro de São João do Porto, como complemento do filme Gado Bravo, de António Lopes Ribeiro, onde foi, então, prolongadamente aplaudido. Mas a pateada do Salão Foz, onde marcou presença uma maioria de indefectíveis da ditadura, não deixa de ser sintomática de um progressivo enclausuramento cultural. Basta lembrar que a selecta assistência considerou insultuoso dar a ver, para mais a estrangeiros, aquilo a que chamou um retrato da pobreza do país...


Pensando no Douro e em filmes marcados pela presença do rio, Oliveira destaca-se de todos os outros cineastas, mesmo de Paulo Rocha. Numa primeira fase, na verdade, uma fase com mais de 20 anos, fez Douro, Faina Fluvial, Aniki-Bóbó e O Pintor e a Cidade. Muito mais tarde, nos anos 90, no culminar da sua digressão por Camilo, – Amor de Perdição, Francisca e O Dia do Desespero – assinou uma das suas obras de maior fôlego,Vale Abraão, para a qual contou com a cumplicidade de Agustina Bessa Luís. Rodado na região duriense o filme mergulha em paixões recalcadas e num erotismo que ganham, no pano de fundo da paisagem e no contexto de um microcosmos social marcado pelo conservadorismo, uma ambiguidade perturbadora na linha de Esse Obscuro Objecto de Desejo de Buñuel. Ema, a protagonista, é uma espécie de Bovary enigmática, como enigmáticas são, de resto, as restantes personagens desse mundo onde tudo parece certo, quando, na verdade, tudo está a descompasso. Suprema ironia, numa terra cuja beleza natural suplanta a imaginação dos homens estes movem-se como que aturdidos da sua própria condição num registo de convenções e cortesias, afinal, artifícios dando corpo a subtextos que autorizam a desconstrução dos mitos conservadores sem, todavia, jamais se focalizarem na crítica retórica e opinativa.


De modo mais deliberadamente assumido, a paisagem representa igualmente um elemento preponderante na epopeia trágica de O Rio do Ouro de Paulo Rocha, cujas personagens habitam um espaço natural no qual a relação do homem com a natureza adquire uma dimensão mítica e um destino trágico. História de paixão e ciúme o filme tem como protagonista principal Zé do Ouro, cigano familiar dos segredos do rio e das histórias perdidas na bruma da memória das suas margens. É nesse domínio, ao som de velhas melodias tradicionais entoadas por cantadores cegos, que ganha corpo o vale de uma loucura progressiva no qual as paixões das personagens hão-de levar ao crime passional por entre o dourado do rio e o vermelho dos corpos. E na ficção não haverá muito mais para contar, embora Jaime, de António Pedro de Vasconcelos, mereça referência.


Há, finalmente, mais dois exemplos felizes tendo, de novo, Oliveira como protagonista. Um, é um curioso filme em co-autoria com Jean Rouch, de 1996, chamado En une poignée de mains amies, no qual os dois cineastas filmam as pontes do Porto. Outro, na viragem do século, é O Porto da Minha Infância, um legado do Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura 2001. Este filme, 70 anos depois de Douro, Faina Fluvial, retoma os caminhos do melhor documentarismo e é hoje uma obra de referência do imaginário cinematográfico da cidade e do seu património monumental. Também por aqui o Douro faz sentir a sua presença.


A terminar cumpre-me agradecer ao meu amigo José Manuel Costa, Vice-Presidente da Cinemateca Portuguesa e ao Rui Machado, Director do Arquivo Nacional de Imagens em Movimento, a disponibilidade e os esclarecimentos prestados para efeito da concretização deste texto. Dessa disponibilidade e desses esclarecimentos uma certeza me fica: sobre O Douro e o Cinema há ainda muito a fazer. E, já agora, um pouco à margem, permita-se-me acrescentar: é tempo de começar a pensar numa História Critica do Documentário Português


Porto, Novembro de 2009

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Imagens do Real Imaginado (IRI) do Instituto Politécnico do Porto foi o ponto de partida para o primeiro Mestrado em Fotografia e Cinema Documental criado em Portugal. Teve início em 2006. A temática foi O Mundo. Inspirado no exemplo da Odisseia nas Imagens do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura estabeleceu numerosas parcerias, designadamente com os departamentos culturais das embaixadas francesa e alemã, festivais e diversas universidades estrangeiras. Fiz o IRI durante 10 anos contando sempre com a colaboração de excelentes colegas. Neste segmento da Programação cabe outro tipo de iniciativas, referências aos meus filmes, conferências e outras participações. Sem preocupações cronológicas. A Odisseia na Imagens, pela sua dimensão, tem uma caixa autónoma.

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