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  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 18 de dez. de 2020
  • 15 min de leitura

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Fonte: Anonymous ART of Revolution

Este texto tem quase 30 anos e tem por base um trabalho académico da altura. Foi publicado num livrinho chamado A Caixa Negra e é sobre a Televisão. Depois de o recuperar e reler, apesar do tempo passado, penso que ainda terá alguma utilidade até porque a memória permite pensar o presente. Reflete sobre o trabalho dos jornalistas e sobre as relações de poder. Nesse aspecto continua a fazer sentido. Abaixo do título, aparecia Discurso de um Jornalista sobre o Discurso da Televisão. É isso mesmo. O jornalista era eu.


(Continuação de A Caixa Negra 1)


PROPAGANDA, ARMAS E COMUNICAÇÃO


"O instrumental bélico é revelador da tecnologia moderna; ao mesmo tempo que utiliza os inventos disponíveis ligados ao domínio da percepção sensorial, nomeadamente os media visuais e auditivos, associa-se à sua lógica a ponto de acabar por produzir a sua própria tecnologia. Não admira, por isso, que a fotografia, o cinema, o megafone, a telefonia, o telégrafo, a televisão tenham sido logo associados desde os primeiros tempos ao campo militar. A história, senão a origem dos media, depende em grande parte da história das próprias armas." - Adriano Duarte Rodrigues

O PODER DOS MEDIA


No âmbito das Teorias da Comunicação Social há numerosos trabalhos cujos resultados se afastam das teses maximalistas, como aquelas que temos vindo a referir, apontando no sentido da relativização do poder dos mass media. Ainda nos anos 40 e durante a década de 50 o paradigma dos efeitos conheceu inúmeras abordagens. Ficaram célebres, por exemplo, as experiências de Katz e Lazarsfeld que levaram à identificação dos líderes de opinião:


"A função dos líderes de opinião é servir de intermediários entre os meios de comunicação e as pessoas do seu grupo social. Admite-se, de um modo geral, que as informações são obtidas directamente dos jornais, rádio e outros veículos. Contrariamos essa convicção. A maioria das pessoas adquiriu as suas ideias e informações através de contactos pessoais com os seus líderes de opinião, cuja exposição aos media se verificou ser, entretanto, superior à média."(1)


Uma vez estabelecido o princípio da comunicação em duas etapas, para a história ficariam igualmente experiências conclusivas quanto, por exemplo, ao fenómeno da atenção selectiva, ou seja, o receptor expõe-se preferencialmente às mensagens cujos conteúdos vão no sentido de reforçar as suas crenças e pontos de vista, tendendo a rejeitar as opiniões contrárias. Exemplos como este poder-se-iam multiplicar, todos eles convergentes no sentido de relativizar o poder dos media enfatizando, simultaneamente, as interacções de ordem sociológica e psicológica na formação da opinião pública.


De qualquer modo, importa sublinhar que a maioria destes estudos foi feita há quarenta, cinquenta anos na América e um pouco mais recentemente na Europa (Nota do autor: na verdade, seria necessário juntar agora outros trinta anos). Desde então muita coisa mudou. Hoje, a par do reconhecimento da validade dos estudos mencionados, bem como de outros respeitantes ao processo comunicativo através das abordagens mais diversificadas, é consensual o reconhecimento do papel dos mass media na construção da realidade, com destaque para a Televisão. Inúmeros factos o confirmam.


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O Presidente Kennedy fala aos americanos sobre a guerra do Vietname. Fonte: The Middlebury Blog Network

Nos anos 60, episódios como o célebre debate televisivo ente os candidatos à Casa Branca, Richard Nixon e John F. Kennedy, as transmissões em directo dos funerais do então já eleito presidente Kennedy e as reportagens sobre a guerra do Vietname levaram políticos e militares a compreender a necessidade de saber utilizar a Televisão, à semelhança, aliás, do que acontecera nas décadas anteriores com a Rádio. (Nota do autor: hoje, seria indispensável, por exemplo, acrescentar à equação o impacto das redes sociais)


O VERÃO DE 62


Nesse Verão o Departamento de Estado intercedeu junto de Senado dos Estados Unidos no sentido de recomendar uma emenda à Lei das Comunicações de 1934. O Secretário-de-Estado das Relações Exteriores, George W. Ball, sugeriu que fosse dado ao presidente o poder de "autorizar um governo estrangeiro a operar um transmissor de rádio na sede ou nas imediações da sua missão em Washington, quando este governo houvesse concedido privilégios recíprocos aos Estados Unidos para operar um sistema de rádio dentro do seu próprio país."(2)


Herbert I. Schiller, na sua obra sempre muito citada O Império Norte-Americano das Comunicações, nota que o interesse da emenda não era, obviamente, facultar aos governos estrangeiros o acesso a estações de rádio em Washington. Tratava- -se, isso sim, de facilitar as comunicações com os representantes americanos no exterior. Nas suas declarações à comissão do Senado, Ball não poderia ter sido mais claro:


"O nosso problema é o desenvolvimento das comunicações aperfeiçoadas com muitos dos postos mais recentes através do mundo, particularmente na África, Ásia e América Latina. A capacidade de comunicarmos prontamente com estas regiões é um elemento essencial do nosso procedimento nas relações internacionais. Muitas e muitas vezes, vimos a nossa capacidade de enfrentar eficazmente crises nas regiões menos desenvolvidas ser impedida por falta de instalações de comunicação modernas. Por exemplo, um telegrama enviado por telégrafo comercial ao Congo, a Vientiane, a capital do Laos, ou Argel, pode levar até vinte horas. Hoje, em todas essas áreas, um adiantamento de horas pode ter importante significado para os nossos interesses."(3)


Este episódio é apenas um. Na verdade, desde sempre as comunicações estiveram ligadas a estratégias de poder.


O CHEFE DOS CORREIOS


Se recuarmos até quinhentos anos antes da nossa era vamos encontrar como um dos pilares do poderoso império dos Persas um muito bem organizado sistema de correios, no qual o cavalo desempenhava um papel primordial. Dario III, antes de ser imperador, fora chefe desse serviço.


Alguns séculos mais tarde, as estradas romanas rasgadas em todo um vastíssimo território possibilitaram não apenas a passagem das legiões e a eficiência administrativa mas, também, o contacto rápido entre regiões distantes através do mais formidável sistema de troca de mensagens da antiguidade, o correio romano. Tal como o correio persa assentava em casas de muda. Aí se encontravam cavalos, animais de carga, tratadores, veterinários, cavaleiros, burocratas, enfim, todo um conjunto de serviços constituindo uma sólida infra-estrutura concebida no sentido de optimizar as potencialidades do sistema.


Aliás, este "cursus publicus”, bem como todos os outros correios da Antiguidade, foram organizações ao serviço do Estado. No tempo de Augusto, o "cursus publicus" funcionou mesmo como uma autêntica rede de espionagem. Enfim, romanos e persas tinham bem a consciência da importância da velocidade de circulação das informações. Tal como o Secretário-de-Estado George W. Ball.


MARCONI


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Guglielmo Marconi

Especialmente interessante nesta matéria é a história protagonizada por um estudante medíocre de Livorno, Guglielmo Marconi de seu nome, um rapazinho de saúde débil, cuja falta de assiduidade às aulas era compensada por uma imensa curiosidade a respeito dos fenómenos da natureza.


No ano de 1884, com apenas dez anos, Marconi improvisou a construção de um telefone. Aos dezassete construiu um curioso aparelho que fazia disparar uma campaínha quando um relâmpago cortava o céu: estava para chegar a transmissão de sinais eléctricos, o que aconteceu em Agosto de 1894. Marconi era estudante de Física na Universidade de Bolonha quando conseguiu transmitir sinais a trinta metros. No ano seguinte, melhorou a distância por diversas vezes e chegou mesmo a fazer o sinal saltar uma montanha. Em Pontecchio, onde tais prodígios se verificavam, as gentes suspeitavam no jovem Marconi a presença do maligno e acusaram-no de bruxaria. Costella diz que a sorte dele foi ter nascido no século XIX: "Se tivesse nascido na Idade Média, em vez de Telegrafia Sem Fio, talvez nos restasse apenas a notícia de um inventor churrascado".(4)


Quando Marconi procurou interessar as autoridades italianas nas suas experiências deparou com as evasivas próprias de uma incompreensão generalizada. Partiu, pois, para Londres onde requereu a patente do seu invento. Em seguida, fundou a "Wireless Signal Telegraph Company", posteriormente denominada "Marconi Wireless Telegraph Company".


Em 1899, pela primeira vez, dois países, a França e a Inglaterra foram ligados por T.S.F.. Os correios ficaram, naturalmente agradecidos. Mas o que importa salientar é o facto de mal ter chegado a Inglaterra Marconi logo ter sido solicitado a fazer uma demonstração do seu invento perante especialistas da Royal Navy. E a verdade é que, pouco depois, os navios da maior potencia imperial da época ficavam habilitados a comunicar entre si até distâncias de 100 quilómetros. Os Estados Unidos logo copiaram o exemplo britânico.


Marconi viveu o suficiente para assistir à explosão da rádio, bem como às experiências pioneiras de Televisão. Pôde igualmente constatar a precariedade dos estudos sobre a comunicação social durante as primeiras duas décadas deste século. (Nota do autor: século XX) E assistiu à concentração monopolista da imprensa americana nas mãos de alguns magnates. Hearst, por exemplo, chegou a ser proprietário de trinta jornais, duas agências noticiosas, uma das quais a International News, seis revistas e até actualidades cinematográficas, isto numa altura em que o cinema apenas começara a afirmar-se. Proprietário de um sempre recordado castelo gótico na costa californiana, Hearst iria, alguns anos mais tarde, inspirar Orson Welles na composição da figura central do mais famoso de todos os seus filmes, Citizen Kane, titulado em português


O MUNDO A SEUS PÉS


O realizador negou sempre essa inspiração e, valha a verdade, dificilmente poderia ter feito de outro modo: considerando-se desrespeitado, Hearst impedira qualquer crítica, anúncio ou simples menção ao filme nos seus jornais, fazendo saber á produtora de Welles que melhor seria interromper-lhe a carreira.


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Citizen Kane (1942) de Orson Wells

Orson Welles era um homem de múltiplos talentos. Alguns anos antes de fazer Citizen Kane espantara a América com um programa de Rádio, deixando-a em estado de choque. Foi no dia 30 de Outubro de 1938, às oito horas da noite. Ia para o ar uma adaptação da Guerra dos Mundos do escritor H.G. Welles: os marcianos estavam a invadir a Terra. Maurice Bessy recorda esse episódio, aliás, igualmente evocado por Woody Allen nos seus Dias da Rádio:


"A multidão invade as igrejas. Soltam-se os gatunos. As populações agitam-se. A polícia das grandes cidades recebe milhares de chamadas telefónicas. Suicídios, partos prematuros, fugas para as montanhas multiplicam-se. É uma verdadeira histeria colectiva, tanto mais notável por o seu autor continuar tranquilamente o seu programa quando a polícia irrompeu pelos estúdios: belo exemplo de fleuma do aprendiz de feiticeiro perante a inconsciência das multidões."(5) (Nota do autor: sabe-se há muito que não foi exatamente assim).


A Rádio podia criar o pânico. E podia vender tudo. Na década de 30 o mundo estava a seus pés. Tem carácter de massa a partir de 1927, dado o "boom" na construção de receptores. Na América, são os fabricantes de material radio-eléctrico os principais promotores das estações. Já em 1922, David Sarnoff, antigo colaborador de Marconi e, mais tarde, patrão da RCA, considerava o financiamento das estações da competência dos fabricantes, dos distribuidores e dos comerciantes dos aparelhos de rádio. No início dos anos 30, a publicidade ascendia a sessenta milhões de dólares, uma quantia suficientemente importante para levar à falência diversos jornais, já de si debilitados pela grande depressão de 1929.


A GUERRA DOS MUNDOS


Da importância da Rádio cedo se deram conta os nazis na Alemanha. Quando chegaram ao poder em 1933 o seu potencial de propaganda radiofónica não tinha sequer sido ainda testado. Mas, nesse mesmo ano, ao inaugurar a exposição sobre a Rádio, em Berlim, Göebbels já admitia que no século XX a Rádio teria um papel semelhante ao desempenhado pela imprensa no século XIX.


"A verdadeira Rádio é autêntica propaganda" — diria Göebbels, um pouco mais tarde, para logo acrescentar: "A propaganda supõe lutar em todos os campos da batalha do espírito, gerando, multiplicando, destruindo, exterminando, construindo e desfazendo. A nossa propaganda é determinada por aquilo a que nós chamamos a raça, o sangue e a nação alemãs."(6)


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Göebbels mostra a Hitler o novo aparelho de "rádio para o povo" em 1933. Fonte: The Conversation

O sistema de controle desenvolvido por Göebbels teve pontos de contacto com o sistema comunista. Logo em 1930 a rádio soviética fora colocada sob estrito controle estatal e utilizada como instrumento de agitação e propaganda. Ainda assim, Julian Hale sustenta que os propósitos proclamados por nazis e comunistas, fossem eles soviéticos ou chineses, se distinguiam como a água do fogo:


"Hitler e Göebbels só estavam interessados em manter o poder a todo o custo e por qualquer preço; os soviéticos e os chineses acreditam num conjunto de verdades fundamentais e em que a história está inexoravelmente do seu lado."(7)


Hale escrevia, naturalmente, antes da derrocada do bloco da Europa de Leste.


Quanto aos Estados Unidos, só tardiamente a Casa Branca sentiu necessidade de dispor de serviços centrais de propaganda orientados de acordo com uma estratégia global. A Voz da América nasceu de uma situação de emergência, após o ataque japonês a Pearl Harbour, em 1942. O mundo estava em guerra e a América fora dela. Quando entrou teve de se armar para


A GUERRA DAS ONDAS


Nessa altura, era impensável delinear qualquer iniciativa de propaganda ou contrapropaganda, informação ou contra-informação, espionagem ou contra-espionagem sem o recurso ao envio de mensagens através das ondas hertzianas.


Durante a guerra, ficaram célebres os serviços de espionagem soviéticos — a famosa Orquestra Vermelha — os quais conseguiram organizar um notável conjunto de "pianistas", nome dado aos agentes operando em território ocupado pelo inimigo a partir do teclado de aparelhos de rádio clandestinos. As informações veiculadas, em código, foram muitas vezes determinantes na evolução dos acontecimentos. Redes de "pianistas" acabaram, de resto, por ser montadas por todos os países beligerantes.


Na Europa, assolada pelas tropas alemãs, a Rádio tinha, portanto, prioridade. Era o meio de comunicação por excelência. A tal ponto que a II Guerra Mundial ficaria conhecida como a Guerra da Rádio.


Nesta conjuntura, segundo Hale, em termos técnicos, de propaganda e de objectivos, a propaganda radiofónica norte-americana teve mais coisas em comum com o modelo comunista do que com as alternativas nazis ou da BBC:


"A Voz da América, Rádio Liberdade, a Rádio Europa Livre, a rede das Forças Norte-Americanas, e a Rádio do sector Norte-Americano (RIAS) operam com fundos oficiais veiculados através de diversos canais. A sua política é fixada por um conjunto de directivas (...) apoiado num forte compromisso ideológico: a verdade a transmitir é uma verdade conscientemente norte-americana-democrática-anticomunista."(8)


A participação da BBC na guerra das ondas foi diferente. Os ingleses evitaram abusar da retórica ideológica marcante dos discursos soviético e americano e, por maioria de razão, afastaram-se diametralmente do discurso eriçado de lanças, sangue e espadas dos nazis. A objectividade da BBC pode ou não ter sido um mito cuidadosamente cultivado. O que não é um mito é a sua reputação de dizer a verdade. Durante e depois da guerra. Sir Hugh Greene, o organizador dos programas da BBC para a Alemanha, pôs em prática o seguinte modelo básico:


"...dizer a verdade dentro dos limites da informação disponível, e dizê-la de uma forma consistente e franca. Isto supunha a decisão de não desvalorizar um fracasso. (...) Deste modo, o nosso público na Alemanha, bem como as tropas alemãs, tendo-nos ouvido falar com franqueza das nossas derrotas, acreditar-nos-ia quando falássemos das nossas vitórias; esperava-se, assim, que a capacidade de resistência deles ante uma situação desesperada haveria de diminuir eficazmente."(9)


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George Orwell trabalhou em propaganda na BBC entre 1941-43. Essa experiência foi decisiva para "1984", a sua obra mais conhecida. Ideias como a "novilíngua" e o "duplo pensar" são também tributárias desse tempo. De algum modo, Orwell põe em causa o mito criado em torno do serviço público de rádio britânico. Foto: BBC

É problemático concluir se as transmissões da BBC desmoralizaram as tropas alemãs, mas não restam dúvidas quanto ao facto dessas transmissões lhe terem granjeado uma reputação de credibilidade. Aliás, a BBC foi a única estação a evitar a utilização de locutores de nacionalidade alemã, de modo a impossibilitar a identificação do programa como a voz dos traidores...


No começo da II Guerra Mundial vinte e seis países tinham serviços internacionais de Rádio. A Alemanha emitia em trinta e seis línguas, a União Soviética em vinte e duas, a BBC batia toda a concorrência emitindo em trinta e nove línguas diferentes. Durante o conflito este esforço acentuou-se a ponto de, no início de 1945, os alemães reivindicarem emissões em cinquenta e duas línguas.


Adriano Duarte Rodrigues afirma que no período compreendido entre 1939-45 a Rádio desempenhou, pelo menos, três funções militares imprescindíveis: "a de arma de desmoralização do adversário, a de apoio moral às populações e às tropas, a de elo de ligação com os combatentes entrincheirados em território inimigo ou com os resistentes isolados."(10)


Paul Virilio diria que "abater o adversário é menos capturá-lo do que cativá-lo, é infligir-lhe, antes da morte, o espectro da morte."(11)


A Rádio também cumpriu essa função.


ORIGEM DOS MEDIA, HISTÓRIA DAS ARMAS


Não há técnica militar sem dispositivos de sideração neutralizadora do adversário. Voltando a citar Duarte Rodrigues, "sideração é o processo de estupefacção provocado pelos dispositivos sensoriais do ruído uniforme e cadenciado tanto da marcha compacta do exército como do estrondo das armas e do clarão que torna diáfana a transparência das coisas e dos corpos."(12)


Os media podem operar nesse sentido. Diáfanas são as imagens de Televisão. Durante a Guerra do Golfo foram veiculadas em catadupa. Muita vezes, apareceram repórteres fazendo o relato de acontecimentos em directo. Porém, agora e à distância, sabe-se como a lógica da guerra mediática determinada pela instância militar se sobrepôs à lógica informativa baseada nos critérios jornalísticos. Obteve-se um efeito muito semelhante ao efeito de sideração visando, neste caso, não apenas desmoralizar o inimigo, mas também ganhar a opinião pública através da mitificação da realidade, reduzindo a guerra à dimensão dos jogos de computador.


O tempo passado diante do pequeno ecrã como que se retraía entre um passado que fugia sem cessar, não podendo ser retido, e um futuro que se aproximava sem, todavia, permitir ao espectador apropriar-se dele, visto ter sido construído com o único intuito de o surpreender.


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17 de janeiro de 1991, a Tempestade do Deserto, início da primeira guerra do Iraque. O fascínio da Televisão enquanto vídeojogo. Foto: Encyclopaedia Britannica

Perturbador é o facto de ter sido impossível contrariar o turbilhão de imagens e de informações contraditórias originadas no cenário de guerra a partir de uma intervenção jornalística consequente, ou seja, afinal as armas dos jornalistas dos meios audiovisuais revelaram-se inadequadas para ultrapassar o intuito de fazer deles meros mensageiros, peças de uma engrenagem avassaladora orientada no sentido da propaganda, mitigada, embora, (e nem sempre) pela presença em estúdio de especialistas em diversas áreas. Faz sentido, por isso, dizer com Duarte Rodrigues:


"O instrumental bélico é revelador da tecnologia moderna; ao mesmo tempo que utiliza os inventos disponíveis ligados ao domínio da percepção sensorial, nomeadamente os media visuais e auditivos, associa-se à sua lógica a ponto de acabar por produzir a sua própria tecnologia. Não admira, por isso, que a fotografia, o cinema, o megafone, a telefonia, o telégrafo, a televisão tenham sido logo associados desde os primeiros tempos ao campo militar. A história, senão a origem dos media, depende em grande parte da história das próprias armas."(13)


A TEORIA "HIPODÉRMICA" REVISITADA


Os factos enunciados a propósito da explosão dos media e, em particular da Rádio, aliados à conjuntura internacional, foram responsáveis pelo aparecimento de numerosos estudos de um modo ou de outro relacionados com a comunicação. Nos anos 20 e 30 já havia estantes repletas de livros chamando a atenção para os elementos retóricos e psicológicos utilizados pelos propagandistas. São dessa época obras hoje consideradas clássicas como Public Opinion, de Lippmann, The Rape of the Masses, de Chakhotin, Psychology of Propaganda, de Doobs e Propaganda Technique in the World War, de Lasswell. Os media eram, então, olhados como meros suportes de mensagens, as quais, uma vez atingidos os destinatários, produziam efeitos persuasivos, condicionando o seu comportamento.


Não cabe aqui uma análise pormenorizada deste ponto de vista. Importa, no entanto, reter o aspecto da crença no poder dos media apoiada numa "teoria" da sociedade de massa e num modelo de comunicação operativo a partir de uma teoria psicológica da acção, o behaviourismo. Resumindo:


"Se as mensagens da propaganda conseguem alcançar os indivíduos que constituem a massa, a persuasão é facilmente 'inoculada'. Isto é, se o alvo é atingido, a propaganda obtém o êxito que antecipadamente se estabeleceu."(14)


Era a teoria "hipodérmica" ou "bullet theory" como lhe chamou Schramm, uma teoria da propaganda e sobre a propaganda.


O modo de pensar os media está, portanto, ligado às circunstâncias históricas. Nesse contexto se inscreve a teoria "hipodérmica”, bem como à evolução tecnológica, ela própria determinante de novas paisagens civilizacionais. Pois bem, as questões relacionadas com a propaganda, agora redimensionada e sensorializada pelos meios electrónicos, voltaram à primeira linha das preocupações dos especialistas. Por exemplo, no que respeita aos jornais televisivos.


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Paul Virilio: "As armas bélicas estão intimamente associadas as armadilhas dos media que simulam a realidade e prendem os beligerantes nas suas teias sensoriais. Guerra e media convertem-se numa gigantesca máquina de gestação de efeitos especiais, de desrealização, o que não impede que funcionam segundo uma lógica hiper-real.". Foto: Thought Leader

TELEJORNAL?


O telejornal é constituído por um conjunto de temas debitados a alta velocidade e organizados de determinada maneira, prosseguindo objectivos previamente determinados, tal como na propaganda. O Telejornal não exige reflexão por parte do espectador, o qual pouco retém daquilo que viu e ouviu. Simplesmente, o Telejornal vai para o ar todos os dias veiculando sempre os mesmos pontos de vista, eventualmente com novas roupagens de modo a sugerir a ideia do novo, e projectando os estereótipos que hão-de permitir ao espectador proceder ao reforço das suas crenças e à construção dos seus mitos. É, novamente, o que se passa com a propaganda.


Segundo Aor da Cunha, o telejornal não cumpre a função de noticiar ou divulgar factos respeitantes à sociedade, reflectindo-a. Pelo contrário, a função do Telejornal é a de "moldar, esticar ou comprimir imagens com textos que reproduzam a vida política, social, cultural e económica à sua maneira, conforme critérios ideológicos e particulares do momento não só dos jornalistas, mas também segundo os proprietários de emissores e dos seus patrocinadores da indústria e do comércio. Quando a Televisão mostra o excepcional, diferente, estranho, curioso, insólito rompe a estabilidade psíquica do telespectador e ameaça sua 'consciência feliz'."(15)


A ser assim, o jornalista aparece como intérprete de uma actividade meramente metafórica, ou seja, não é mais o agente em busca de notícias, o repórter, mas o intermediário entre propagandista e o propagandeado, uma pequena peça de engrenagem dos factos agendados e noticiados de acordo com estratégias no seio das quais os chamados critérios jornalísticos funcionam como álibis de uma propaganda global.


O repórter move-se, pois, no terreno de uma ambiguidade resultante da convergência de múltiplos factores, entre os quais a (in)definição do que sejam as notícias no serviço da agenda.


A imagem que a população acaba por constituir do seu próprio país e do país dos outros é fortemente influenciada pelas notícias as quais, segundo Aor da Cunha, cumprem "uma finalidade não incomodante, não provocadora de tensão", ao mesmo tempo que conseguem "fazer a industrialização da cabeça."(16)


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Fonte: Anonymous ART of Revolution

(Continua)



Notas remissivas


1. KATZ, E., LAZARSFELD, P.

Personal Influence: The Part Played by People in the Flow of Mass Comunications, Free Press, New York, 1955. Mauro Wolf, em "Teorias da Comunicação", editorial Presença, Lisboa, 1987, chama a atenção para o facto da comunicação em duas etapas, tal como foi formulada, ter sido posta em causa após a Televisão se ter transformado no medium dominante: "É provável, por isso, que a maior parte das mensagens das comunicações de massa seja recebida de uma forma directa, não necessitando, para ser difundida, do nível de comunicação interpessoal: esta apresenta-se como 'conversa' acerca do conteúdo dos mass media (opinion-sharing) mais do que como instrumento da passagem da influência da comunicação de massa para os destinatários (opinion-giving)".

2. SCHILLER, Herbert I.

O Império Norte-Americano das Comunicações, Editora Vozes, Petrópolis, 1976

3. Ibidem

4. COSTELLA, António

Comunicação - Do Grito ao Satélite, Editora Mantiqueira, São Paulo, 1984

5. BESSY, Maurice

Orson Welles, Editorial Presença, Lisboa, 1965

6. HALE, Julian

Radio Power - Propaganda and International Broadcasting, Eleks Books Limited, London, 1975

7. Ibidem

8. Ibidem

9. Ibidem

10. RODRIGUES, Adriano Duarte

Estratégias da Comunicação - Questão Comunicacional e Formas de Sociabilidade, Editorial Presença, Lisboa, 1990

11. Ibidem

Duarte Rodrigues cita Virilio, Guerre et Cinéma 1. Logistique de la Disparition, Paris, Galilée, 1984. Para Virilio, "a primeira vítima de uma guerra é o conceito de realidade". Acrescenta Rodrigues: "As armas bélicas estão intimamente associadas as armadilhas dos media que simulam a realidade e prendem os beligerantes nas suas teias sensoriais. Guerra e media convertem-se numa gigantesca máquina de gestação de efeitos especiais, de desrealização, o que não impede que funcionam segundo uma lógica hiper-real."

13. Ibidem

14. SCHRAMM. Wilbur

The Process of Effects of Mass Comunication, University of Illinois Press, Chicago, 1972

15. AOR DA CUNHA, Albertino

Tele-Jornalismo, Editora Atlas S.A., São Paulo, 1990

16. Ibidem



 
 
 
  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 16 de dez. de 2020
  • 6 min de leitura

Atualizado: 18 de dez. de 2020

Este texto tem quase 30 anos e tem por base um trabalho académico da altura. Foi publicado num livrinho chamado A Caixa Negra e é sobre a Televisão. Depois de o recuperar e reler, apesar do tempo passado, penso que ainda terá alguma utilidade até porque a memória permite pensar o presente. Reflete sobre o trabalho dos jornalistas e sobre as relações de poder. Nesse aspecto continua a fazer sentido. Abaixo do título, aparecia Discurso de um Jornalista sobre o Discurso da Televisão. É isso mesmo. O jornalista era eu.


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Fonte: Pjotr, Anonymous Art of Revolution


INTRODUÇÃO


A caixa negra é coisa de aviões. Pouco sei a seu respeito. Pelo que leio nos jornais trata-se de um instrumento no qual ficam registados os dados de um voo e, em caso de acidente, permite identificar as suas causas. Interessante seria descobrir os mecanismos do registo independentemente da contingência trágica do desastre. Para mim, a caixa negra tem uma vaga ressonância da caixa de Pandora. Ou seja, encerra em si mesma um sentido metafórico cujo alcance se mede a partir de uma outra contingência, esta radicando no facto do autor destas linhas ser jornalista de Televisão, a qual, como se sabe, suscita todas as curiosidades e todas as cobiças, voando muitas vezes sem respeitar as normas de segurança, logo, incorrendo no risco de se despenhar com tripulação e passageiros a bordo. O que seria desagradável, acrescente-se, mas não de todo improvável se atentarmos nos desenvolvimentos da corrida à conquista de audiências legitimada por agendas de poder e pela sacralização do capital.


Um pouco como quem viaja de avião há sempre um momento em que as pessoas se interrogam: e se isto caísse? Normalmente, não cai, nem essas coisas nos acontecem a nós, acontecem quase sempre aos outros. Mas essa pergunta, por sinal insidiosa, persiste ao nível do subconsciente e é, em razoável medida, uma consequência, por um lado, da consciência da falibilidade da técnica e, por outro, do desconhecimento das regras do voo.


Ora é justamente sobre as regras que me interrogo. O resto é aleatório, não depende de mim.


Portanto, a Caixa Negra. Admito que este adjectivo, negra, possa sugerir a presença de um território transcendente da mera problemática das linguagens, induzindo um juízo crítico pessimista. Na verdade, não é bem assim, embora, como se verá, se tenha evitado pactuar com a indulgência perante factos só por si suficientes para transformarem a Televisão num caixote de lixo. Procurei, no entanto, não perder de vista as espantosas possibilidades em aberto tendo em conta que, afinal, o saber exige a consciência de erro e a dimensão de sentido ético.


Sendo trabalho de um jornalista, a Caixa Negra acaba obviamente por reflectir uma experiência profissional de um número de anos não negligenciável, sobretudo na Televisão, mas também na Imprensa e na Rádio. E sendo o jornalista essencialmente um repórter é igualmente perceptível, no plano formal, a presença de algumas técnicas jornalísticas, designadamente da reportagem. É o caso do recurso ao chamado "elemento humano", o qual facilita a leitura de assuntos, por vezes áridos, através da identificação de personagens indissociavelmente ligadas ao mundo da comunição.


Também por via da minha formação profissional adoptei para o texto uma estrutura mosaico, na qual, espero, da interacção das partes possa resultar uma unidade global. O texto comporta um preâmbulo, cinco capítulos e um epílogo, articulando-se em torno de um núcleo central respeitante à linguagem. Esta, porém, é encarada através de uma abordagem tanto quanto possível diacrónica, por forma a integrar a complexidade dos problemas que hoje se põem ao exercício de uma profissão cada vez mais exigente. Daí a relevância atribuída a fenómenos como a propaganda, às relações entre o Poder e a Informação, bem como a algumas teorias da comunicação social, cujos paradigmas permitem ilustrar os contornos dos episódios mediáticos enunciados.


Por razões de legibilidade e de lisibilidade do texto optei por traduzir para Português diversas citações. As traduções são, portanto, da minha responsabilidade. Na bibliografia e notas dou conta, apenas, de publicações efectivamente consultadas.


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Segundo Umberto Eco existem várias hipóteses de empenhamento psicológico do espectador. “...vão do distanciamento crítico mais completo (a pessoa que se levanta e se vai embora aborrecida), ao juízo crítico que acompanha a fruição, ao abandono inadvertido a uma evasão responsável, até à participação, à fascinação ou (em casos patológicos) à hipnose propriamente dita”. Fonte: Criática


PREÂMBULO:

“Freud dificilmente poderia curar um esquimó. Mas, perante um adolescente dos nossos dias, estaria totalmente desarmado. Como invocar a história individual de alguém que apenas viu o efémero?" - Tony Schwartz

IMAGENS, SONS: IDEIAS

Em Televisão contam as imagens, os sons, a espectacularidade. Pelo menos, por agora, é assim. No nosso estádio civilizacional exige-se o espectáculo encenado a partir da articulação de signos audio-scripto-visuais, na expressão de Jean Cloutier (1), os quais jogam essencialmente nos grandes planos, num ritmo de edição de imagens acelerado, em textos curtos, quase telegráficos, e em sons de diferentes intensidade, consoante a intenção expressiva que lhes for atribuída. Mensagens assim codificadas, ainda que alegadamente se possam justificar invocando as características do medium, deixam pouco tempo para pensar. Por isso, a classe política, por exemplo, prefere a metáfora, a qual permite a fácil transposição do discurso para o plano da recriação imagética, ou seja, a visualização da palavra. Um aparte acutilante e uma performance adequada vencem qualquer óptima ideia formulada em termos desajustados à natureza do meio.


O espectador do futuro poderá, porventura, vir a estabelecer um relacionamento diferente com a Televisão dando preferência ao espectáculo do pensamento, à força dos argumentos no quadro da sabedoria de uma humanidade tolerante, a qual, à semelhança dos antigos gregos, encontraria prazer na arte de pensar. Não é certo, porém, que isso venha a acontecer, pelo menos, não nestes termos. Na verdade, uma civilização não pode definir-se independentemente do seu sistema de difusão e, como tal, não é previsível a possibilidade de existência de uma cultura em si, a priori, ideal. Existem, sim, culturas moldadas pelos meios de comunicação, adaptadas a eles, e das quais os media são o elemento determinante. Logo, o futuro será sempre condicionado por esta lógica sistémica, intrínseca.


Umberto Eco adverte que "a civilização democrática salvar-se-á unicamente se da linguagem da imagem se fizer um estímulo à reflexão crítica e não um convite à hipnose."(2) E Jean Baudrillard sustenta que a "comunicação de massa não nos fornece a realidade, mas a vertigem de realidade."(3) Segundo ele, as relações dos indivíduos com os media configuram uma situação de recusa do real, baseada na apreensão ávida e na multiplicidade dos seus signos. Este ponto de vista está relacionado com aquilo a que alguns autores chamam


A DITADURA DOS INSTANTES


Baudrillard afirma que ao indivíduo seria necessária a violência e inumanidade do mundo exterior para que a segurança não só se experimente como tal, com maior profundidade, mas também para que se sinta justificada em si mesma: uma espécie de economia moral de salvação. Diz ele, aludindo à violência na televisão:


"A quotidianidade como enclausuramento, como Verborgenheit, seria insuportável sem o simulacro do mundo, sem o álibi de uma participação no mundo. Tem necessidade de alimentar-se das imagens e dos signos multiplicados da vertigem da realidade e da história. A sua tranquilidade precisa, para se exaltar, de uma perpétua violência consumida. Tal é a sua obscenidade. É gulosa de acontecimentos e de violência, contanto que lhe seja servida em casa.(4)


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Jean Baudrillard: “A quotidianidade como enclausuramento seria insuportável sem o simulacro do mundo, sem o álibi de uma participação no mundo (...) precisa, para se exaltar, de uma perpétua violência consumida. Tal é a sua obscenidade. É gulosa de acontecimentos e de violência, contanto que lhe seja servida em casa.” Fonte: The Irish Times

Outro autor, Tony Schwartz — guru dos comerciais da Televisão americana — defende uma lógica mediática, decorrente do modo de operar dos meios de comunicação, no interior e a partir da qual se perspectivariam as questões sociais. A propósito da Televisão, Schwartz formula uma ideia curiosa:


"Freud dificilmente poderia curar um esquimó. Mas, perante um adolescente dos nossos dias estaria totalmente desarmado. Como invocar a história individual de alguém que apenas viu o efémero?"(5)


Jacques Piveteau, por seu turno, num dos ensaios mais contundentes alguma vez publicados sobre a Televisão, afirma que ela se instala em nossas casas como um parente longínquo recebido por favor que gradualmente se transforma em pai de família autoritário, gerador de efeitos hemiplégicos no seio da família. Inibidora da vontade de agir sobre o mundo, a Televisão deveria a sua espectacularidade — em especial, a violência espectacular — à síntese da sua natureza tecnológica com os gostos por ela própria suscitados junto dos espectadores. Segundo Piveteau, "o espectacular transformou-se numa droga cujos efeitos não podem acalmar-se senão através do consumo sempre acrescido de doses cada vez maiores."(6)


(Continua)


Notas remissivas


1. CLOUTIER, Jean

A Era de EMEREC ou A Comunicação audio-scripto-visual na hora dos self-media, Instituto de Tecnologia Educativa, Lisboa, s/data

2. ECO, Humberto

Apocalípticos e Integrados, Difel, Lisboa (1991). Citando Cohen Séat, Eco mostra que existem várias hipóteses de empenhamento psicológico do espectador, "que vão do distanciamento crítico mais completo (a pessoa que se levanta e se vai embora aborrecida), ao juízo crítico que acompanha a fruição, ao abandono inadvertido a uma evasão responsável, até à participação, à fascinação ou (em casos patológicos) à hipnose propriamente dita". Prossegue Eco: "Ora parece que, ao contrário do que se pensa, as possibilidades de vigilância crítica são escassísimas, até nos profissionais que vão ao cinema na sua função de críticos (os quais geralmente só alcançam esse distanciamento, ao segundo visionamento do filme”; de facto, o espectador culturalmente dotado encontra--se a oscilar habitualmente entre uma vigilância muito branda e a participação, ao passo que as massas se deslocam de repente do fortuitismo inicial para um estado de participação--fascinação."

3. BAUDRILLARD, Jean

A Sociedade de Consumo, Edições 70, Lisboa , 1981

4. Ibidem

5. SCHWART, Tony

The Responsive Chord, Anchor Press/Doubleday, New York, 1973

6. PIVETEAU, Jacques

L'Extase de la Télévision, insep editions, Paris, 1984


 
 
 
  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 7 de nov. de 2020
  • 7 min de leitura

Cimeira Ibero-Americana, 1998. Procura, oferta e entropia na comunicação.

Os desafios para uma informação livre, plural e verdadeira.

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É inevitável que num encontro como este se venha falar, uma vez mais, da Aldeia Global. Também eu irei fazê-lo, ainda que a contra gosto e, desde já me penitencio do facto.


Não gosto especialmente da expressão, apesar de lhe reconhecer valor instrumental. Serve ela para dar conta de uma particular realidade resultante da explosão das tecnologias da comunicação, em função das quais o mundo se tornou mais pequeno, posto que, agora, pelo menos no campo das hipóteses, os povos da Terra recuperam ou estão em vias de recuperar a tradição da tribo primitiva. Essa oralidade imediata, bem com a visão em permanência a ela associada do que vai pelos quatro cantos do mundo, facultadas, uma e outra, pela electrónica, pelo digital e pelas plataformas geo-estacionários, parece exprimir, em si mesma, um universo de comunicação global capaz de promover consensos à escala planetária.


Sabemos que não é assim. Tinha razão MacLuhan ao sugerir a capacidade das novas tecnologias da comunicação de promoverem mutações civilizacionais, em profundidade, e não se enganou ao proclamar novas modalidades de percepção induzidas pelos media electrónicos. Mas não lhe ocorreu, porque não pôde ou porque não quis, que os media são portadores de discursos e que todo o discurso é construído em função de estratégias de persuasão. Por isso, a lógica da comunicação é, em si mesma, uma lógica de domínio. Por isso, também, as comunicações e os sectores a elas associadas são áreas de intervenção estratégica por parte dos governos dos diferentes países.


Em 1979, no relatório McBride elaborado para a Unesco, afirmava-se:


“No campo da comunicação, o problema de hoje e do futuro imediato, é utilizar as possibilidades realmente existentes, mas que, todavia, são negadas à maioria da população do mundo. Os sectores produtivos da sociedade dependerão cada vez mais de uma organização do trabalho inteligentemente programada, da compreensão, da experiência e da utilização da informação, onde e quando for necessária. Se a penúria dos recursos alimentares, da energia e das numerosas matérias primas é um tema que suscita inquietação, já os recursos da informação aumentam constantemente; à escassez que caracterizou a história precedente, sucede a abundância. O mundo dos anos 80 em diante será o da oportunidade de apreendê-los”.


É sabida a controvérsia aberta pelo relatório McBride e a oposição que suscitou junto das nações mais poderosas, e em particular dos Estados Unidos. Contudo, o relatório contribuiu para agitar as consciências, deixando claro que forjar um futuro melhor para os homens e mulheres do planeta não depende essencialmente do progresso técnico, mas sim das respostas que cada sociedade for capaz de dar sobre o que, política e conceptualmente, fundamenta o desenvolvimento. Hoje, sabemos mais. Sabemos que saber utilizar a informação a partir do universo de entropia entretanto generalizado é fundamental para o desenvolvimento


Na Europa, entendemos hoje o desenvolvimento como um percurso para formas avançadas de democracia. Esse percurso, porém, é sinuoso e contraditório. Acreditamos que os desafios de uma informação que se pretende livre, plural e verdadeira vão no sentido de contribuir para o debate e o esclarecimento das questões fundamentais do nosso tempo. Sustentamos a vigilância crítica dos nossos meios de comunicação enquanto elementos correctores de abusos e disfuncionalidades. Mas sabemos dos abismos por vezes existentes entre a realidade e os propósitos enunciados. Não desconhecemos a lógica dos lobbies. Nem sempre conseguimos evitar cair na armadilha dos pseudo eventos . Voluntária ou involuntariamente cedemos perante grupos de pressão. Eventualmente, contribuímos para vedetizar a vida política, banalizando as ideias e promovendo o espectáculo. Em nome da eficácia administrativa, do número de vendas ou das tabelas de audiências conferimos notoriedade ao fait-divers e aos seus actores. Nem sempre resistimos à revelação das dimensões de um pénis presidencial…


Ao dizer isto, digo-o naturalmente a pensar naqueles que estão preocupados com o bom jornalismo e que no complexo mundo mediático dos nossos dias procuram encontrar soluções para problemas com os quais nos defrontamos todos os dias. No meu caso, é natural que preste alguma atenção à televisão.


Se os anos 80, na Europa, foram, de um modo geral, anos de desregulamentação e da abertura da televisão aos operadores privados, a verdade é que, por essa altura, se começaram, também a fazer sentir os efeitos de uma nova revolução no âmbito do audiovisual. Os sinais dessa revolução chegavam dos Estados Unidos embora, de início, não se lhes prestasse grande atenção.


Em 1979, por sinal o ano da divulgação do relatório McBride, as três majors americanas – CBS, ABC e NBC – concentravam, em conjunto, 91% da audiência televisiva. Dois anos mais tarde, esse indicador caía para 85% e em 1983 para 81%. Em 1990, CBS, ABC e NBC, em conjunto, já estavam abaixo da fasquia dos 60% de audiência. Ou seja, em pouco mais de dez anos, verificava-se uma profunda mudança de hábitos do público americano, impensável para quem tinha concepções imobilistas associadas às performances das televisões generalistas. As razões para esta quebra, que, de resto, continua a verificar-se um pouco por todo o lado, prendem-se, naturalmente, com a evolução das tecnologias da informação, da comunicação e das telecomunicações.


Se a tendência para a retracção das televisões generalistas parece universal, não quero com isto dizer, no entanto, que elas estejam em vias de extinção. Não estão. Contudo, é evidente que a disseminação do cabo, frequentemente interagindo com os satélites geoestacionários e com as plataformas digitais, está a fazer crescer exponencialmente uma oferta televisiva segmentada, temática, especializada e interactiva. Estamos, portanto, num mundo em mutação acelerada, no qual os diversos actores são obrigados a promover parcerias estratégicas conducentes às indispensáveis actualizações e ajustamentos. A começar pelo serviço público.


Sabemos da crise que atravessa a maioria dos serviços públicos de televisão europeus. Todos eles procederam e procedem a revisões em termos de objectivos de modo a procurar acompanhar os novos tempos. Uns mais, outros menos. Mas todos eles, em maior ou menor grau, convocam a sensação estranha de estarem a olhar o mundo pelo retrovisor. A expressão, uma vez mais é de MacLhuan. Utilizou-a ele para evidenciar a incompatibilidade da aplicação dos critérios da Galáxia de Guttemberg à Galáxia de Marconi. A metáfora, naturalmente, é tão controversa quanto o é o MacLuhanismo no seu conjunto. Mas nem por isso deixa de fazer sentido quando, confrontados com uma nova revolução tecnológica, os serviços públicos reagem conservadoramente, amarrados, em maior ou menor grau, à tradição dos primeiros 40 anos da televisão, durante os quais se foram transformando numa espécie de aparelhos ideológicos do estado, aparentemente incapazes de encarar o futuro.


Ora, a verdade é que os dias do monopólio acabaram. Como se sabe, numa primeira fase a luta pelas audiências promoveu situações de mimetismo entre estações públicas e privadas. Os géneros esgotaram-se em meia dúzia de receitas. Aqui e ali, a Informação não desdenhou nem a dramatização gratuita, nem o espectáculo pelo espectáculo. O nivelamento fez-se por baixo. Mas, numa segunda fase, que é aquela que agora estamos a encetar, persistir nas rotinas do passado, ou seja ver o mundo pelo retrovisor, é pouco menos do que um suícidio anunciado.


Porque afinal, a aldeia global, que parecia ter tornado o mundo mais pequeno, promoveu dentro de si própria uma inversão de rumo e, agora, o mundo está cada vez maior, nunca foi tão grande porque há cada vez mais para dizer e cada vez mais gente a reclamar fazer-se ouvir. A multiplicação da oferta televisiva, a sua diversidade e crescente especialização, indiciam, por outro lado, um novo tipo de espectador, um espectador selectivo, distante do heavy-viewer da televisão generalista. Esse novo espectador tenderá a ser, também, cada vez mais interactivo. E a segmentação vai promover, inevitavelmente, uma revolução nas linguagens.


Por outro lado, a televisão segmentada permite alargar os caminhos da democracia no sentido em que pode e vai, inevitavelmente, promover a visibilidade do local e do regional. Mas o local e o regional que se cuidem com as fórmulas folcloristas exibidas com demasiada frequência quando tuteladss por poderes centralizadores. Durante anos, é bom lembrá-lo, a televisão integrou de forma corporativa as culturas regionais espartilhando-as nos seus módulos estabelecidos e reconvertendo-as à exigências discursivas supostamente exigidas pelo medium. Os prejuízos culturais, estéticos, sociais ou de tudo aquilo que era genuinamente autêntico, foram incalculáveis. Portanto, será de elementar prudência procurar evitar transferir procedimentos obsoletos e figurinos caducados das televisões de broadcast, para as novas modalidades televisivas. Importa, sim, explorar fórmulas, porventura experimentais, ajustadas à revelação de realidades cuja autenticidade permite reconhcer o universal naquilo que é local e regional. A meu ver, aliás, se a superação da crise de identidade que um pouco por todo o lado, atinge o serviço público passa pela substituição de uma pedagogia dos consumos por uma pedagogia da cidadania, passa, igualmente, pela revalorização da sua componente regional. De resto, no âmbito das tendências europeias para o audiovisual privilegia-se, hoje, uma diversidade que valoriza o regional, exige a excelência do discurso e prossegue a via da internacionalização


Eu creio que este é um dos grandes desafios que se põem, hoje, aos jornalistas, ou seja, serem capazes de reflectir sobre um mundo em mudança vertigionosa, de modo a adequarem os seus procedimentos aos novos tempos. Para tanto, parece-me indispensável dar prioriodade à Educação, de modo a preparar quadros altamente qualificados, bem como reforçar a ligação das empresas de Comunicação Social às Universidades. A aprendizagem de um jornalista é, aliás, um processo permanente e bom seria, por outro lado, que nas escolas, desde muito cedo, as crianças começassem a aprender a relacionar-se com toda a panóplia de media e multimedia. Importa, por outro lado, desenvolver a pesquisa sobre os mass-media, de forma a que os dados apurados possam beneficiar quer as empresas, quer todos aqueles a quem compete a definição de políticas de comunicação social. Importa finalmente, incentivar junto dos jornalistas ou candidatos a jornalistas, uma cultura dos media exigente no domínio das respectivas linguagens e inflexível no que ao código de conduta diz respeito.


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Termino regressando à televisão. Todos os países desenvolvidos reconhecem o papel da televisão nas suas relações com a indústria electrónica, bem como o papel decisivo desta última no progresso das novas tecnologias. Por isso, a maioria dos países desenvolve projectos de televisão em correspondência com planos de expansão das suas indústrias electrónica e das comunicações. Neste contexto, o serviço público prescinde de muitas das prerrogativas do passado, mas assume outras, nomeadamente aquelas que, no âmbito das políticas definidas lhe confere um papel estruturador do sector do audiovisual. Como vimos, o relatório McBride ao interrogar-se, política e conceptualmente, sobre o significado do desenvolvimento, adiantava que a partir dos anos 80 o mundo teria oportunidade de se apropriar das novas Tecnologias da comunicação para as usar em benefício próprio. MacLuhan, apesar das suas intuições notáveis e dos seus aforismos argutos, enganou-se muitas vezes nas suas profecias a respeito da Aldeia Global. O meio não é a mensagem. Pode ser que McBride tenha sorte diferente e a humanidade cumpra com a sua obrigação de utilizar os meios disponíveis de modo a ser ela mesma a determinar o seu próprio destino. Se assim não for, e pode não ser, apesar das possibilidades em aberto, não é impossível que venha a constituir-se um imenso proletariado cultural, como lhe chamou Eco, consequente da divisão dos homens em duas categorias: com ou sem acesso à informação.


Porto, 14 de Outubro de 1998


 
 
 
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Imagens do Real Imaginado (IRI) do Instituto Politécnico do Porto foi o ponto de partida para o primeiro Mestrado em Fotografia e Cinema Documental criado em Portugal. Teve início em 2006. A temática foi O Mundo. Inspirado no exemplo da Odisseia nas Imagens do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura estabeleceu numerosas parcerias, designadamente com os departamentos culturais das embaixadas francesa e alemã, festivais e diversas universidades estrangeiras. Fiz o IRI durante 10 anos contando sempre com a colaboração de excelentes colegas. Neste segmento da Programação cabe outro tipo de iniciativas, referências aos meus filmes, conferências e outras participações. Sem preocupações cronológicas. A Odisseia na Imagens, pela sua dimensão, tem uma caixa autónoma.

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