
Tenho o hábito de saber das notícias. Gostei de ouvir Rui Rio dizer que deixa um legado imaterial. Não me tinha apercebido. Foi há dias e fiquei a pensar no assunto. Agora, pronto, lá saltou fora outro secretário de estado. Chegou, viu e desandou. Resta saber se a ministra que o escolheu fica ou também vai. Provavelmente, fica, pensei eu. O governo tem a confiança do Presidente da República e, como se percebe, a coligação que o sustenta é de uma coesão irrevogável. Além disso, ainda há muito trabalho pela frente. Basta ver como a reforma do estado consiste em dar cabo da vida de reformados e pensionistas, dos quais, evidentemente, o CDS é um acérrimo defensor.
Depois da tempestade virá a bonança, dizem-me na televisão. Pois. Mas eu receio que não. Por duas ordens de razões. A primeira: há uma Europa cuja liderança, de um modo geral, só sabe pensar a política como subsidiária dos interesses financeiros e há um governo em Portugal com uma crença inabalável nas receitas dessa Europa dos interesses financeiros. A segunda: havendo um défice democrático nas decisões políticas da União, ele – défice democrático – só pode replicar em Portugal de forma agravada dada a falência cognitiva da maioria que governa. Isto ainda vai acabar mal, divagava eu quando o arsenal simbólico da promoção de consensos me veio tentar tranquilizar. Fica calmo, disse o arsenal, não há alternativa. Ora, não me apeteceu ficar calmo e foi aí que me voltou à cabeça o património imaterial de Rui Rio. Entrei em flashback.
Rui Rio acabara de ganhar a Câmara do Porto. Para ele a cultura era algo de insondável. De tal modo que proclamou a prioridade das medidas sociais, nomeadamente a melhoria das condições de vida nos bairros, ao mesmo tempo que desenvolvia uma tese sobre o parasitismo dos “subsídio-dependentes”, ou seja, os agentes culturais. Como se houvesse incompatibilidade entre uma coisa e a outra. De caminho, alguém por ele tratou de dar corpo a um novo conceito designado de “cultura média” – em contraponto ao “elitismo” do Porto 2001 – o que, suponho eu, corresponderia a uma espécie de democratização das práticas culturais indo ao encontro do “gosto da maioria”. As primeiras manifestações da “cultura média” não tardaram. Passei a ter um Festival das Fancesinhas ao pé da porta e a animação dos bairros sociais foi entregue a uma rádio pimba. Pude assim ouvir da boca de um ministro do PSD, um tanto encabulado, é certo, que para chegar à música erudita talvez fosse necessário passar pelo cantor Emanuel. Isto depois de uma Capital Europeia da Cultura. Achei fabuloso. Seguiram-se corridas de automóveis e acrobacias de aviões. Temeroso de que um avião me entrasse pela janela e impossibilitado de chegar a casa devido ao trânsito interdito pelo tal circuito da Boavista, passei a evitar ficar no Porto em dias de corridas e acrobacias. Pelo meio, o Rivoli, Teatro Municipal, foi entregue a Filipe La Féria.
Nada me move contra as francesinhas. Nem contra o cantor Emanuel. Nem contra o teatro comercial. Tão pouco, apesar do incómodo, contra os grandes eventos capazes de atrair a atenção sobre a cidade, desde que não sejam pagos com o dinheiro dos munícipes e as contas, porque envolvem montantes consideráveis, sejam transparentes. Eu não gosto deste tipo de manifestações. Mas outros gostarão. E, por aí tudo bem. Só que o meu problema não é esse. O meu problema é o mar de equívocos. A inexistência de uma política cultural. A trapalhada de confundir cultura e entretenimento. Um teatro municipal com uma programação errante e aleatória. Espaços culturais sem ocupação. Conflitos com jornais e jornalistas. A ausência de critério, salvo o contabilístico. Mas, que diabo, será este o património imaterial de Rui Rio? Se é, vou ter de esperar sentado para ver quem o reclama.
Bom, ainda assim, talvez, com boa vontade, se encontre um subtexto nas suas declarações. Na verdade, apesar dele, há uma vida cultural interessante no Porto. E não me refiro apenas à programação mais institucional de Serralves, da Casa da Música, do Teatro Nacional de São João ou do Museu Soares dos Reis que, contra ventos e marés, lá vão fazendo o seu percurso e atraindo visitantes. Refiro-me aos agentes e criadores culturais que se afirmaram ou prosseguiram o seu trabalho justamente num quadro de resistência ao património imaterial de Rui Rio.
Aos que sabem que a cidade é uma construção do homem. Aqueles para quem a cultura, com o seu lastro de memória, é não só um elemento de identidade e coesão, mas também um sistema operativo de ponderação, transversal a todas as decisões e, como tal, músculo da cidadania. Aqueles para quem a imaginação faz crescer a cidade que é tanto mais cidade quanto mais é imaginada. Aqueles para quem não há cultura sem património, seja ele material ou imaterial, e que todo o património – mesmo o natural – não tem sentido sem referência à escala humana. Aqueles que também estão na candidatura que apoio e fazem com as suas próprias mãos intervenções de campanha no espaço urbano que dinheiro algum poderia pagar. Aqueles que nunca verei na televisão a dizer que não há alternativa.
(Texto publicado em 2013 por ocasião da campanha do BE "E se virássemos o Porto ao contrário")
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