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   viagem pelas imagens e palavras do      quotidiano

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  • Foto do escritor: Jorge Campos
    Jorge Campos
  • 28 de mar. de 2021
  • 20 min de leitura

Atualizado: 22 de out. de 2023


The River (1938) de Pare Lorentz é um daqueles documentários de que já quase ninguém se lembra. É pena. Há muito a dizer sobre ele. E a aprender. Até porque sendo o tema bastante prosaico, a recuperação do vale do Mississipi no quadro do New Deal, o filme acaba por se revelar a vários títulos exemplar, designadamente, por permitir recuperar uma época em que a América progressista se confrontou com uma outra América conservadora e violentamente encarniçada contra a política do Presidente Roosevelt. A tal ponto que partidários do New Deal viriam a ser acossados anos a fio até ao culminar persecutório daquilo que foi a infame caça à bruxas do senador Joseph McCarthy. Mas, para além da questão política e social, cuja atualidade viria a ser estrondosamente confirmada, por exemplo, através das incidências resultantes da administração Trump, The River é, por si só, um objecto singularíssimo, na verdade, um desafio à teoria do documentário como adiante se verá.


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Pare Lorentz

O então jovem Pare Lorentz, escritor, jornalista e crítico de cinema, era um entusiasta do New Deal e uma daquelas pessoas com acesso directo a um Presidente cujas preocupações políticas eram indissociáveis de uma aguda sensibilidade cultural. É bom lembrar que Roosevelt não estava apenas empenhado em recuperar o país da devastação causada pela Grande Depressão de 1929. Era também confrontado com uma fortíssima corrente isolacionista, na qual se alinhava, além da maioria dos republicanos e até alguns democratas, uma extrema-direita onde tanto cabiam os surpremacistas brancos do Ku Klux Klan quanto simpatizantes de Hitler como o famoso aviador Charles Lindbergh.


Daí a importância atribuída ao combate simbólico levando, inclusivamente, o estado a intervir em áreas onde habitualmente não tinha presença como o cinema. Quando hoje somos confrontados com objetos como os filmes de Pare Lorentz, Joris Ivens ou Robert Flaherty feitos nesse contexto ou com as extraordinárias fotografias daqueles que registaram os sinais do tempo nessa América de Grapes of Wrath de John Steinbeck, percebemos a razão pela qual a uma estética corresponde sempre uma ética, um código de conduta, em suma, uma opção política.


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Pare Lorentz

Pare Lorentz e o Dust Bowl


O filme documentário americano financiado pelo Estado começou com um atraso de sete anos em relação ao Reino Unido tendo sido sempre condicionado por uma conjuntura diferente. No Reino Unido, a produção estava centralizada em Londres de onde saíam numerosos filmes destinados à exibição quer nas salas quer nos circuitos alternativos impulsionados por John Grierson. Na América, quando por volta de 1937 começaram a fazer-se filmes no âmbito das políticas do New Deal, havia três centros de produção cinematográfica cujas lógicas eram antagónicas. Em Los Angeles, a produção centrada em Hollywood nada tinha a ver com o documentário. Em Nova Iorque encontravam-se os cineastas mais radicais que faziam newsreels e fitas independentes concebidas para a luta política anti-fascista. E em Washington havia os documentários governamentais sob a tutela de Pare Lorentz.


Neste último caso, a produção fazia parte de uma campanha de relações públicas posta em marcha pelo governo com o intuito de manter o povo americano informado sobre os programas do New Deal através dos quais procurava responder à crise económica e ao desemprego resultantes da Grande Depressão. Para o efeito, o governo começou por patrocinar campanhas na rádio e apelar à colaboração de alguns dos mais importantes fotógrafos americanos, entre os quais Walker Evans, Dorothea Lange, Russel Lee, Carl Mydans e Ben Shahn, que produziram uma impressionante galeria de imagens associada à questão social. Um pouco mais tarde, inspirado pelo movimento documentarista britânico, numa tentativa de atingir um público mais vasto, o governo decidiu apoiar a produção de filmes.


A campanha foi tutelada pela Resettlement Administration à frente da qual estava o sub-secretário da Agricultura, Rexford Guy Tugwell. Criada para desenvolver projectos de índole social a favor dos pobres do campo e das cidades, a Resettlement Administrativa pretendia, designadamente, fundar novas comunidades com base na utilização racional dos recursos. Tugwell escolheu Pare Lorentz para consultor da produção cinematográfica associada a esta causa. Sendo um indefectível de Roosevelt, Lorentz entendia que o governo tinha o direito de utilizar o filme para informar e educar de um modo que, a seu ver, nem o cinema comercial nem newsreels como March of Time podiam fazer. (Nota: Ver neste blogue em Cinema Newsreels, documentário e Buster Keaton: os anos de ouro das atualidades cinematográficas)


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The Plow That Broke the Plains (1936) de Pare Lorentz

Numa altura em que entre os documentaristas britânicos se acentuavam as clivagens entre quem se repartia por abordagens mais jornalísticas ou abordagens mais poéticas, Lorentz, apesar de ser ele próprio um jornalista, inclinava-se para um tipo de trabalho próximo destas últimas tomando como referência os filmes de Flaherty e documentários como Night Mail (1935) de Harry Watt e Basil Wright.


O seu primeiro filme The Plow That Broke the Plains (1936) resultou de uma ideia que tentara vender aos estúdios de Hollywood no ano anterior. Mas Hollywood não parecia ter interesse em afastar-se da lógica do entretenimento, apesar de cultivar um género relativamente marginal como o film noir onde os problemas sociais da América serviam muitas vezes de pano de fundo. Lorentz ganhara reputação como crítico de cinema em revistas como a Vanity Fair, Fortune, Harper’s, Forum e Scribner’s mostrando-se particularmente sensível ao papel da música nos filmes.


Em 1930, em colaboração com Morris Ernst, publicara Censored: The Private Life of the Movies, livro no qual atacava Will Hays – o autor do código Hays que introduzira a censura propondo-se zelar pela moral puritana – ao divulgar uma extensa lista de cenas cortadas em películas exibidas nos Estados Unidos. O livro terá certamente contribuído para a relação de conflito que ao longo da vida iria manteve com Hollywood. Publicou depois outras obras, mas a verdade é que, apesar de um currículo respeitável, quando deu início ao seu primeiro filme The Plow That Broke the Plains não tinha qualquer experiência de realização cinematográfica.


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Willard Van Dyke, um dos directores de fotografia contratados por Pare Lorentz, que mais tarde faria o extraordinário The City (1939), um filme socialista.

Para a rodagem Lorentz contratou algumas das figuras mais importantes da esquerda cultural de Nova Iorque tais como Paul Strand, Ralph Steiner e Leo Hurwitz. Todos eles tinham tido ligações à Film and Photo League, cujo alinhamento ideológico à esquerda era sobejamente conhecido. O filme deveria tratar do problema da desertificação de uma vasta região afectada por tempestades de areia na zona central dos Estados Unidos, do Alasca ao Texas, conhecida por Dust Bowl. Os três fotógrafos, alegando falta de indicações de Lorentz, que permanecera em Washington, fizeram uma interpretação do assunto segundo a qual os problemas sociais e a devastação da terra eram devidos à exploração capitalista, um ponto de vista incompatível com o intuito de Lorentz e do governo americano.


De qualquer modo, com o apoio do montador Leo Zochling, Lorentz começou a reunir as imagens e a redigir o que viria a ser o comentário de The Plow That Broke the Plains, entregando a composição musical a Virgil Thompson. Elogiado pela crítica o filme viria a transformar-se numa espécie de bandeira do novo documentário americano, embora tivesse sido visto por um público relativamente reduzido. Ao contrário de Grierson, que tinha o hábito de acautelar a distribuição, Lorentz supunha poder assegurá-la caso a qualidade da obra se impusesse. Do ponto de vista institucional, porém, não fazia parte da tradição americana a produção de documentários financiados pelo estado e dirigidos ao público em geral. Os ministérios, sobretudo os que lidavam com os problemas mais complexos, como eram os casos da Agricultura, Interior e Guerra, tinham produção própria, mas os seus filmes não eram destinados ao grande público e muito menos era suposto serem exibidos nas salas comerciais.


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New Deal e Cinema


De 1920 a 1935 foram produzidos por 22 agências governamentais mais de 400 filmes, na sua maioria de carácter educativo. Quando se faz o balanço dessa produção, apesar do inequívoco interesse histórico-documental, a verdade é que em termos de qualidade cinematográfica raramente é citado outro filme para além de Hands (1934), um documentário de apenas 4’00” de Ralph Steiner e Willard Van Dyke. Lorentz entendia ser necessário inverter essa tendência recomendando à tutela que fizesse filmes a pensar numa exibição alargada. Segundo ele, “os filmes governamentais deviam ter qualidade técnica e capacidade de atracção de público semelhantes aos filmes comerciais”. O lobby de Hollywood não gostou. Cerrou fileiras e encarou a recomendação como um atentado às regras da concorrência o que, associado ao episódio Hays, poderá explicar o boicote mais ou menos dissimulado à exibição nas salas The Plow That Broke the Plains.


Em contrapartida, sessões privadas convocadas por Pare Lorentz, Virgil Thomson e outros colaboradores com o apoio da imprensa progressista permitiram criar um movimento de opinião que levou o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque ( MoMA) a patrocinar uma programação de documentários no Mayflower Hotel, em Washington, da qual constavam, a par de diversos filmes europeus, The Plow That Broke the Plains. Entre os convidados encontravam-se membros do corpo diplomático e elementos do staff da Casa Branca. Uma parte significativa da crítica acabou por elogiar o filme, chamando a atenção, inclusivamente, para a importância de um tipo de cinema praticamente desconhecido do grande público.


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Hands (1934) de Ralph Steiner e Willard Van Dyke

De nada valeu. A maioria dos distribuidores reincidiu na recusa de exibição alegando tratar-se de propaganda governamental. Na antecâmara da campanha presidencial de 1936 dirimida entre Roosevelt e o governador do Kansas Alf Landom, que se antevia particularmente agreste, os republicanos, bem como a extrema-direita, argumentaram que The Plow That Broke the Plains era apenas uma peça eleitoral dos partidários do New Deal. O filme entrou, assim, na luta política desencadeando reacções tão apaixonadas quanto absurdas. Em Pare Lorentz and the Documentary Film, Robert S. Snyder cita um distribuidor: “Este filme se tivesse sido feito por uma companhia privada era um documentário. Tendo sido feito pelo governo é propaganda”.


Desiludido com o rumo dos acontecimentos, obrigado a pagar do seu bolso a maior parte do investimento feito – no desconhecimento das condições de produção pedira apenas seis mil dólares para fazer um filme que viria a custar 20 mil –, Lorentz preparava-se para se demitir das suas funções quando Tugwell lhe propôs a realização de um projecto sobre a história do rio Mississipi e o trabalho da Tennessee Valley Authority.


Roosevelt fora, entretanto, reeleito com margem esmagadora e a Resettlement Administration dera lugar à Farm Security Administration. A Casa Branca, apesar da resistência de alguns ministérios, estava convencida da importância de prosseguir a política de cinema público e reservara uma verba de 50 mil dólares para fazer The River, aconselhando a contratação de um gestor financeiro…


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The River de Pare Lorentz estreou no Strand Theatre de New Orleans a 29 de Outubro de 1937. Lorentz receava a reacção do público do sul. Uns dias depois recebeu um telegrama do director da sala, no qual se afirmava: “Reaction was wonderful. I personally contacted several hundred of those people after premiere. They congratulated me for being able to bring film of that nature to my screen. Nineteen schools of the city had a representative from their history class to see River. Also showed Rivers (sic) to some 20,000 patrons. Audience reaction great. The public needs more history shorts like The River”.

The River (1938) viria a ser um dos filmes mais influentes na história do cinema documental americano, cuja tradição, até então, se limitava a Robert Flaherty, à dupla Merian C. Cooper e Ernest Shoedsack e a incursões mais experimentais, essas, sim, em número razoável, envolvendo nomes como Ralph Steinar e Paul Strand. Em contrapartida, o documentário aparecia indevidamente associado a newsreels como March of Time, mas pertinentemente associado à fotografia, à rádio e até ao teatro, nomeadamente pela mão de Joseph Losey.


Films of Merit


Lorentz defendia um tipo de filme simultaneamente dramático, informativo e persuasivo, mas distanciara-se já das posições de Grierson, cujos pressupostos considerava demasiado escolares. Por isso, e também devido à imprecisão do valor de uso da palavra documentário no campo dos media, passou a designar por filmes de mérito - Films of Merit - os trabalhos levados a cabo no âmbito das suas funções à frente do United States Film Service criado em 1938.


The River foi realizado em circunstâncias peculiares. Com a rodagem em curso, o plano inicial foi sendo alterado devido a situações imprevistas, como as grandes cheias do Mississipi, que obrigaram os operadores de câmara Floyd Crosby, Stacey Woodard e Willard Van Dyke a desdobrarem-se em múltiplas novas iniciativas. Ao mesmo tempo, em Washington, à medida que o material ia chegando, sob a supervisão de Lorentz, eram editados blocos de sequências cotejados com arranjos da partitura musical de Virgil Thomson executados ao piano.


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Virgil Thomson, o criador das partituras musicais para The Plow That Broke The Plains e The River. Foto: Carl Van Vechten

The River foi assim ganhando expressão num registo de work in progress. Gilbert Seldes, que assistiu a uma das primeiras exibições, escreveu na Scribner’s de Janeiro de 1938 que Lorentz teria organizado as componentes do filme (imagem, voz e música) à semelhança do que Walt Dysney fazia com os seus cartoons, esclarecendo: “A narração foi gravada sem ver a fita; o mesmo aconteceu com a música; então, Lorentz juntou tudo e ajustou os níveis da música e da voz. O resultado é magnífico”. De facto, o filme – apesar da sua estrutura atípica marcada pela predominância de sintagmas em chaveta, o que faz depender a narrativa fundamentalmente do ritmo musical do texto poético associado à utilização simultaneamente descritiva e impressionista da música – é um marco na história do cinema americano. Os procedimentos, porém, foram bastante mais complexos do que Seldes deixa entender.


Virgil Thompson foi, na realidade, muito interactivo com Lorentz na superação dos sucessivos imprevistos. A singularidade de The River resulta em grande parte das soluções que ambos foram encontrando. Mas o argumento, superiormente elaborado - na verdade.o script era o poema -, acabaria por ser quase integralmente vertido em voice over o que colocou problemas complexos à montagem para escapar à lógica da mera ilustração.


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Thomas Hardie Chalmers, ex-primeiro barítono da Boston National Opera Company e da Century Opera Company, a voz de The Plow That Broke The Plains e The River

No prólogo pode ler-se: "This is the story of a river, a record of the Mississippi, where it comes from, wheee it goes, what it has meant to us and what it nas cost us”. O filme começa com imagens impressivas de nuvens, montanhas e neblinas para depois mostrar a água dos picos gelados da montanha. A presença da água vai sendo cada vez mais evidente à medida que aumenta a escala dos planos e vamos tendo a noção da imensidão do Mississipi. Essa imensidão é sublinhada pela recitação de Chalmers. Veja-se a construção do texto, a qual permite entrar na atmosfera do filme. O início:


From as far West as Idaho,

Down from the glacier peaks of the Rockies;

From as far East as Pennsylvania,

Down from the turkey ridges of the Alleghanies;

Down from Minnesota, twenty-five hundred miles,

The Mississippi River runs to the Gulf.

Carrying every drop of water that flows down two-thirds of the continent;

Carrying every brook and rill, Rivulet and creek—

Carrying all the rivers that run down two-thirds of the continent—

The Mississippi runs to the Gulf of Mexico.

Down the Yellowstone, the Milk, the White and the Cheyenne;

The Cannonball, the Musselshell, the James and the Sioux;

Down the Judity, the Grand, the Osage and the Platte;

The Skunk, the Salt, the Black and Minnesota;

Down the Rock, the Illinois and the Kankakee,

The Allegheny, the Monongahela, Kanawha and Muskingum;

Down the Miami, the Wabash, the Licking and the Green,

The Cumberland, the Kentucky and the Tennessee;

Down the Ouchita, the Wichita, the Red and Yazoo;

Down the Missouri three thousand miles from the Rockies;

Down the Ohio a thousand miles from the the Alleghenies;

Down the Arkansas fifteen hundred miles from the Great Divide;

Down the Red, a thousand miles from Texas;

Down the great Valley, twenty-five hundred miles from Minnesota;

Carrying every rivulet and brook, creek and rill,

Carrying all the rivers that run down two-thirds of the continent,

The Mississippi runs to the Gulf.


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Fonte: Pare Lorentz, The River - Photography Books

A citação é longa mas este filme não existiria sem a palavra, ora lenta ora acelerada, numa cadência rítmica por vezes avassaladora tal como a corrente do rio em direcção ao estuário onde no final irá desaguar em forma de conclusão. quando a voz de Thomas Chalmers se espraia nos últimos versos.


Um fade out a negro abre para uma poderosa imagem em contra-picado, um lavrador em contra-luz com o seu arado recortado num céu carregado de nuvens a perder de vista. O plano é longo. Multiplicam-se as imagens de homens e animais a lavrar a terra como se de um ritual sem tempo se tratasse. O homem e a paisagem, a paisagem e o homem. Simbiose, assim deveria ser. Mas não é. Porque a história da ocupação do Mississipi é simultaneamente a epopeia do esforço do homem e a devastação de recursos a que essa mesma ocupação deu lugar. Os dados convergem sempre no sentido de deles se extrair uma ideia chave. O texto é circular, reiterativo. A intervenção humana, levada a cabo durante períodos dilatados de tempos, é recorrentemente destruidora. Os seus efeitos fazem sentir-se mesmo em áreas geográficas distantes. No Vale do Mississipi foram construídos diques ao longo de séculos mas as águas do rio amiúde transbordam muito para além do limite das margens dando origem a infindáveis lamaçais como aquele que vai do Golfo do México até à boca do Ohio.


Vemos imagens do rio, das grandes barcaças que aportam junto das plantações para carregarem o algodão com destino à Europa, a todas as partes do mundo. Nos campos há trabalhadores rurais vergados ao peso das tarefas quotidianas. Não há vestígios de uma crítica social explícita. Apenas a constatação de que, ao contrário do que seria desejável, nem o homem revertera em paisagem nem a paisagem se fizera mais humana. Pelo contrário. Pare Lorentz vai dando sinais desse divórcio cujas consequências se adivinham catastróficas. E, contudo, o rio e os seus recursos, apesar de mal explorados, são praticamente inesgotáveis.


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"Ten million bales down to the Gulf - Cotton for the spools of England and France./ Fifteen million bales down to the Gulf - Cotton for the spools of Italy and Germany." Fonte: Pare Lorentz, The River - Photography Books

Na verdade, o Mississipi é a metáfora de uma América a tentar sair da Grande Depressão, confrontada com uma tarefa gigantesca, animada do desejo patriótico de superar as dificuldades que encontrou no New Deal a melhor resposta. Da recitação do texto, cuja musicalidade amplia a ressonância poética das imagens, desprende-se um sentido de missão ao qual Pare Lorentz não seria certamente alheio. As marcas de enunciação tornam-se progressivamente mais complexas. A montagem ganha dinamismo jogando com o movimento dentro do quadro, tirando partido das linhas de perspectiva sugeridas pelas formas e engrenagens dos navios que sulcam o rio e acostam nas suas margens de modo a criar a ilusão de uma espécie de ballet mecânico.


A música de Thompson é fundamental. Épica quando glorifica e dramatiza a natureza, como um rumor, evocando o folk tradicional, quando trata da paisagem humana na sua vulnerabilidade face a forças que não controla. O pêndulo da narrativa balança entre contrários. Como foi possível tamanha riqueza ter sido tão sistematicamente delapidada? Tanto algodão cultivado até à exaustão do solo, porquê? E, para mais, houve uma guerra que deixou marcas, a Guerra da Secessão:


We fought a war.

We fought a war and kept the west bank

of the river free of slavery forever.

But we left the old South impoverished

and stricken.

Doubly stricken, because, beyond the tragedy of

war, already the frenzied cotton cultivation of a quarter of a century

had taken toll of the land.

We mined the soil for cotton until it would

yield no more, and then moved west.

We fought a war, but there was a

tragedy - the tragedy of land twice

impoverished.


Atente-se: “We fought a war, but there was a double tragedy…the tragedy of land twice impoverished”.


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Imaginário da Grande Depressão, Walker Evans

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Imaginário da Grande Depressão, Dorothea Lange

Por alguma razão o texto de Lorentz faz lembrar a poesia de Walt Whitman. Está longe da prática de newsreels como March of Time. De tal forma que o script de The River foi proposto para o Prémio Pulitzer de Poesia de 1938. Ao dele tomar conhecimento, James Joyce disse ser do melhor que lera nos últimos 10 anos. Até então, apenas as experiências de som de Alberto Cavalcanti em colaboração com W. H. Auden e Benjamin Britten no movimento documentarista britânico tinham prosseguido uma via semelhante. Lorentz, porém, criou um dispositivo diferenciado. Nos seus filmes se há a influência de Flaherty pouco resta das vanguardas artísticas da Europa. Tão pouco há o recurso à gravação de som directo nem à entrevista como em Housing Problems (1935) de Edgar Anstley e Arthur Elton.


É, de resto, significativo que Lorentz tenha mostrado a Paul Rotha, então na América, um rough cut de The River a pretexto de recolher sugestões que eventualmente pudessem ter cabimento na versão final. Embora mostrando o seu apreço por The River, Rotha terá feito notar haver falta de presença sonora para efeito da caracterização do elemento humano mas que isso poderia ser facilmente ultrapassado com uma nova gravação. Nenhum dos comentários do cineasta britânico foi tido em consideração. (Nota: ver neste blogue no segmento de Cinema os artigos sobre o movimento documentarista britânico)


Mais à frente, aparecem imagens impressionantes da exploração florestal no Mississipi, árvores gigantescas abatidas, milhares de troncos levados pelo caudal para serem recuperados junto das cidades ribeirinhas onde prospera a indústria da madeira. Diz Lorentz:


We built a hundred cities and a thousand towns:

St. Paul and Minneapolis,

Davenport and Keokuk,

Moline and Quincy,

Cincinnati and St. Louis,

Omaha and Kansas City . . .

Across to the rockies and down from Minnesota,

Twenty-five hundred miles to New Orleans,

We built a new continent.


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Fonte: Pare Lorentz, The River - Photography Books

A vertente conotativa do texto estimula imagens mentais que complementam a imagem no ecrã. Em determinadas situações o dispositivo funciona até ser atingido um clima emocional a partir do qual é operado um ponto de viragem na narrativa. Quando, depois de falar das árvores abatidas, Lorentz conclui “We built a hundred cities and a thousand towns.../But at what a cost!” a imagem no ecrã da destruição levada a cabo contrasta com sequências anteriores das grandes cidades construídas ao longo do Mississipi, o que permite amplificar e dramatizar o conteúdo da mensagem: “We built a new continent”. É certo. Mas a que custo. Porque o desastre ambiental traz consigo as terríveis cheias que ano após ano ceifam centenas de vidas e deixam milhares de pessoas na miséria:

The water comes downhill, spring and fall

Down from the cut-over mountains,

Down from the ploughed-off slopes

Down every brook and rill, rivulet and creek,

Carrying every drop of water that flows down two-thirds the continent”,


e seguem-se as datas de inundações cujos efeitos catastróficos são plasmados no ecrã. Thomas Chalmers recita o texto pausadamente, valorizando cada palavra. A câmara faz panorâmicas lentas sobre terras calcinadas, lamaçais, raízes expostas e despojos de tudo o que outrora permitira o equilíbrio ambiental. As gotas de água vão dando lugar ao dilúvio enquanto o rio sobe em toda a imensa vastidão do seu leito. Ouvem-se sirenes de alerta. Apelos de urgência. A música anuncia já a catástrofe. A voz de Chalmers sobe de tom:


River rising.

Helena: river rising.

Memphis: river rising.

Cairo: River rising…


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The River (1938) de Pare Lorentz

The River e a “expressão documentário”


Mobilizam-se os meios de apoio e socorro às vítimas. Se, por um lado, se deplora a falta de planeamento que conduziu a tal emergência, por outro, convoca-se a capacidade de realização dos concidadãos, o seu patriotismo, para efeito de encontrar não apenas as soluções para o momento, mas, também, as soluções para o futuro. O apelo patriótico exige a emoção. Em Documentary Expression and Thierties America, a obra clássica de William Stott, faz-se referência à “expressão documentário”. Diz Stott: “Há duas espécies de documentos, ou duas tendências no documentário. A primeira, a mais comum, fornece informação ao intelecto. A segunda apela às emoções”. Ora, a emoção, neste caso, permite ver melhor: é inteligência. Daí que um dos artifícios literários do texto seja a utilização sistemática da repetição, a qual, no entanto, acrescenta sempre algo de novo:


Last time we held the levees,

But the old river claimed her valley…

She left stock drowned, houses torn loose,

Farms ruined”.


A “expressão documentário” de Stott tem ainda um outro elemento distintivo, a consciência social. Nos anos 30, conheceu diversas declinações. Por exemplo, Grapes of Wrath de John Steinbeck, no entender do escritor e crítico marxista Granville Hicks, sendo uma obra literária, poderia ser considerado um documentário em razão da importância que teve na consciencialização dos problemas dos trabalhadores atirados para a miséria pelo colapso bolsista. Por seu turno, o fotojornalista do New York Times Arthur Siegel disse que Lewis Hine definiu com clareza a atitude perante o documentário quando disse “querer mostrar as coisas que tinham de ser corrigidas”.


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The River (1938) de Pare Lorentz

A iconografia de The Plow That Broke the Plains ou The River não será a mesma de Power and the Land (1940) de Joris Ivens ou Our Daily Bread (1934) de King Vidor. Tão pouco se aproxima das fotografias dos deserdados de Walker Evans, das figuras, paisagens e terras a perder de vista de Dorothea Lange, dos tipos humanos de Margaret Bourke-White ou Arthur Rothstein. Mas persegue igualmente o propósito de ajudar a resolver problemas. Na verdade, sente-se nos filmes de Lorentz a presença de um imaginário feito de múltiplos ecos que tanto atravessa obra de outros cineastas e fotógrafos quanto se alarga a Steinbeck, Erskine Caldwell ou John dos Passos, passando por vozes como a de Thomas Chalmers capazes de funcionar enquanto elemento de regulação dramática. Tudo isto faz de The River um filme tipicamente americano


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Power and the Land (1940) de Joris Ivens
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Our Daily Bread (1934) de King Visor

Aliás, a própria história do script é reveladora. O script resultou de um artigo escrito para a McCall’s, onde, na altura, Lorentz fazia crítica de cinema. Tendo acompanhado parte das filmagens das cheias do Mississipi, Lorentz foi solicitado pelo editor da revista no sentido de escrever um artigo sobre aquilo a que assistira. Redigiu uma reportagem jornalística de cinco mil palavras, na qual, segundo ele próprio, havia informação e números a mais. Ocorreu-lhe então dar menos informação e mais dramatização, construindo um novo texto, lírico. Otis L. Wise, o editor da McCall’s, optou por publicar este segundo texto, escrito durante um fim de semana. O artigo deu origem a um pedido adicional de 150 mil cópias da revista por parte dos leitores. Lorentz ficou assim convencido a utilizá-lo, com algumas pequenas alterações, no seu filme.


Voltando ao texto. A parte final dos primeiros 25 minutos de The River resume todas as contradições da ocupação do vale:


For fifty years we dug for cotton and moved West when the land gave out.

For fifty years we plowed for corn, and moved on when the land gave out…

…we planted and plowed with no thought for the future…


A conclusão:

And poor land makes poor people.

Poor people make poor land”.


Em suma, como foi possível criar uma situação de pobreza tão gritante no maior e mais rico vale do mundo?


The End? Não.


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The River (1938) de Pare Lorentz

The River tem 31’ 00” e os seis minutos finais parecem pertencer a outro filme. A má qualidade das imagens, muitas das quais recuperadas de arquivos, bem como a longa exposição de gráficos, contrastam com os primeiros vinte e cinco minutos. O texto perde a dimensão poética e mais parece um relatório oficial sobre as acções desenvolvidas pelo governo para recuperar o vale do Mississipi, realojar as populações em localidades modelo e restabelecer o equilíbrio ambiental. Um exemplo:


(…) Next came the Wheeler, first in a series of great barriers that will

transform the old Tennessee into a link of fresh water pools locked and

dammed, regulated and controlled, down six hundred fifty miles to Paducah. (…)

The CCC, working with the forest service and agricultural experts, have

started to put the worn fields and hillsides back together; black walnut and

pine for the worn out fields, and the gullied hillsides; black walnut and pine

for new forest preserves, roots for the cut-over and burned-out hillsides;

roots to hold water in the ground. (…) Today a million acres of land in the Tennessee Valley are being tilled

scientifically.


Reportando às funções da linguagem de Roman Jakobson dir-se-ia que a função expressiva da linguagem é substituída pela função referencial. A voz abandona a leitura encantatória do verso livre para assumir o tom protocolar da leitura de um boletim oficial. Há motivos para que tal tenha acontecido.


Um filme sem ficção do real, contudo, um documentário


Ao contrário do que sucedera com o seu filme anterior, desta vez Lorentz tomou medidas tendo em vista a distribuição. Não só beneficiou do apoio pessoal do Presidente Roosevelt, mas também de uma crítica favorável que ultrapassou qualquer reacção anterior a um documentário. The River tornou-se assim num foco de atenção, atraindo um público tão vasto quanto o dos filmes bem sucedidos de Hollywood. Para mais, premiado no Festival de Veneza em Agosto de 1938, onde esteve em competição com Olimpíada, de Leni Riefenstahl, viria a tornar-se num símbolo democrático no contexto de um mundo confrontado com o fascismo que se encaminhava inexoravelmente para a guerra. Este sucesso fez com que o filme fosse exibido com regularidade durante anos – ainda hoje faz parte dos programas de diversas escolas americanas sendo recorrentemente exibido e comentado. Mas, devido à circunstância que lhe deu origem, enquanto o programa da Tennessee Valley Authority foi sendo implementado, a parte final foi sendo regularmente alterada de modo a reflectir os progressos da reabilitação do vale do Mississipi.


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Fonte: Pare Lorentz, The River - Photography Books

Na perspetiva da cadeia sintagmática, tal como foi pensada por Christian Metz, a estrutura de The River afasta-se em tudo da narrativa clássica. Nessa medida, afasta-se radicalmente de qualquer intuito de ficção do real. Metz distingue diversos tipos de elementos no filme enquanto tecido textual, um conjunto de unidades de significação - ou elementos linguísticos - aos quais chama sintagmas. Estes comportam diferentes graus de complexidade e como que encaixam uns nos outros de forma organizada até chegar à forma-filme, ou seja, o filme concluído. Assim sendo, o sintagma máximo que a linguagem cinematográfica permite será, afinal, o próprio filme. Pelo contrário, o sintagma em chaveta - acronológico, não-narrativo e desprovido de estrutura específica - é o de menor complexidade sendo muitas vezes utilizado como sutura ou mero recurso para resolver um problema narrativo. Raramente é utilizado no cinema clássico de ficção.


Dito isto, e sem entrar em detalhes, The River tem cinco sequências simples, três sintagmas descritivos, seis inserts, um sintagma alternado e treze sintagmas em chaveta, o que corresponde, neste último caso, a mais de metade do encadeamento fílmico. Não tem nem planos autónomos, nem sintagmas paralelos, nem cenas e sequências por episódios. Ora, obviamente, quando escasseiam os sintagmas narrativos - cruciais para o encadeamento lógico no cinema de ficção - tende a aumentar o número de sintagmas em chaveta. Como tal, ao nível da banda imagem, seria de esperar encontrar em The River ou os signos de uma desagregação textual ou os signos visíveis de uma outra ordem que suplanta a sequencialidade narrativa. Autor de The Cinema of Nonfiction, William Guynn sugere:


“Quando nos referimos a um filme como sendo ‘narrativo’, estamos a pensar antes de mais, na preponderância da narração aos níveis mais elevados do texto, ou seja, nas suas grandes unidades sintagmáticas. Os flmes documentários ‘narrativos’ assemelham-se aos filmes de ficção na medida em que os seus argumentos tomam a forma do desenrolar de uma história. Os filmes que identificamos como não-narrativos não são filmes sem narratividade; são antes filmes cujos elementos narrativos estão confinados às unidades sintagmáticas mais pequenas. Em tais filmes, uma outra voz, muitas vezes didáctica, afirma o seu poder sobre a organização do texto”.


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É o que até certo ponto sucede em The River. Ainda que sendo difícil distinguir os sintagmas narrativos dos sintagmas em chaveta, a ideia prevalecente da análise dos diversos segmentos do filme torna evidente que a organização das imagens não obedece a uma lógica interna, só ganhando sentido em função do texto e da partitura musical. Contudo, é justamente esse dispositivo que torna The River um filme conceptual. Rompe com o que habitualmente se espera da linguagem cinematográfica, rejeita os termos de construção da narrativa clássica e propõe um modelo que teria continuidade, por exemplo, nos grandes documentários de propaganda feitos pelos cineastas de Hollywood durante a II Guerra Mundial, bem como em parte do documentário americano contemporâneo.


Conclusão


O êxito de The Plow That Broke de The Plains e The River convenceu Roosevelt a criar, em 1938, o United States Film Service, sob a tutela de Pare Lorentz. A vida deste organismo, em grande parte devido à oposição da maioria do Congresso, entretanto, conquistada pelo Partido Republicano, foi efémera. Extinto em 1940, ainda assim, durante o curto período da sua existência, produziu alguns dos melhores documentários alguma vez feitos na América. São os casos de Power and the Land de Joris Ivens, sobre a electrificação do mundo rural e The Land (1942) de Robert Flaherty, sobre o problema da terra, que nunca viria a ser objecto de distribuição comercial visto a sua conclusão ter coincidido com o fim do Film Service. Ironicamente, a sua extinção, pouco tempo antes do ataque japonês a Pearl Harbour e, portanto, na antecâmara da entrada dos Estados Unidos na II Guerra Mundial, aconteceu na altura em que mais se justificaria a sua existência.


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The Plow That Broke de The Plains (1936) de Pare Lorentz


P.S.

Para os mais interessados, seguem algumas sugestões bibliográficas:


FIELDING, Raymond – The American Newsreel 1911-1967, University of

Oklahoma Press, 1980.

- The March of Time 1935-1951, Oxford University Press, New York, 1978

GUYNN, William – Un cinéma de Non-Fiction, Publications de l’Université de

Provence, Aix-en-Provence, 2001.

LORENTZ, Pare – FRDR’S Moviemaker - Memoirs and Scripts, University of

Nevada Press, Reno, Nevada, 1992

METZ, Christian – Linguagem e Cinema, Editora Perspectiva, São Paulo, 1980.

- Essais Sur La Signification Au Cinéma, Klincksieck, Paris, 2003

SNYDER, Robert L. - Pare Lorentz and the Documentary Film, University of

Oklahoma Press, 1968












 
 
 

Atualizado: 6 de fev. de 2024


Quando Paul Thomas Anderson fez Magnolia não tinha ainda completado 30 anos. Eu tinha chegado aos 50, preparava-me para uma nova aventura profissional e estava farto de trabalhar em jornalismo de televisão. Adiante ver-se-á a razão pela qual falo de mim a propósito deste filme cuja percepção, na altura, foi declinada de múltiplas maneiras, ficando até a ideia de ninguém o ter entendido muito bem. Salvo, talvez, João Benard da Costa.


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Estou bem lembrado da celeuma levantada pela chuva de sapos que desaba perto do final, bem como da dificuldade em encontrar um fio condutor naquela narrativa onde tudo acontece em simultâneo ao longo de 24 horas de um dia como os outros, feito de coincidências e acasos sem, todavia, nada acontecer por coincidência ou acaso. O filme começa, aliás, com citações sobre a coincidência e o acaso. Mas vejam a imagem abaixo.


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Fonte: Diabolique Magazine

Ao fundo, do lado esquerdo, estão três homens. O do meio é “Quiz Kid” Donnie Smith (William H. Macy) que disputa ao homem mais velho, à direita, o jovem barman, à esquerda, de um bar frequentado por gays. “Quiz Kid” é carente de amor e só pensa em arranjar o dinheiro necessário para o dentista que lhe há-de colocar uma dentadura irresistível. Herdou a alcunha por ter ganho em miúdo um concurso de televisão campeão de audiências. É essa a sua glória. Ameaçado de despedimento, passa o tempo a lembrá-la ao patrão.


O polícia (John C. Reilly) intervém nos pequenos casos do dia a dia em San Fernando Valley procurando cumprir a sua missão o melhor possível. Tem uma vida solitária, foi abandonado pela mulher, frequenta sites que prometem relações sérias e apaixona-se à primeira vista por Claudia (Melora Walters), à direita, quando é chamado pelos vizinhos da jovem, queixosos da estridência da música em casa dela. Claudia, viciada em drogas duras, há muito perdeu o controle da vida. É filha de Jimmy Gator (Philip Baker Hall), um astro da televisão há 30 anos a fazer o quiz show que opõe crianças a adultos chamado What the Kids Know. O médico acabou de lhe comunicar ter apenas dois meses de vida. Cancro. Claudia não fala com o pai por quem foi abusada.


Também abusado pelo pai, mas de outra maneira, é Stanley Spector (Jeremy Blackman) o miúdo prodígio que não falha uma pergunta no What the Kids Know e passa os dias enfiado numa biblioteca a meter informação na cabeça para o desempenho televisivo. É essa a vida que o pai lhe proporciona. Horas a fio isolado e corridas para o estúdio. O miúdo é infalível. Até ao dia em que se nega a responder às perguntas por não o terem deixado ir à casa de banho antes do início do programa.


Em primeiro plano está Linda Partridge (Jullianne Moore), uma mulher com os nervos destroçados, permanentemente assistida por um psiquiatra, dependente de medicação sem a qual não consegue viver. Linda é casada com um homem muito mais velho, “Big Earl” Partridge (Jason Robards), que abandonou a primeira mulher para casar com ela. “Big Earl” é o homem deitado na cama, entubado. Está em fase terminal. Cancro. É o produtor de What the Kids Know. Sabe que Linda casou com ele por interesse e vai morrer atormentado pelos remorsos, inesperadamente, com o filho Frank Mackey (Tom Cruise) a seu lado.


Frank é um guru sexual de homens incapazes de seduzir mulheres, uma espécie de pregador religioso. Aconselha a brutalidade. A sua máxima é “Respect the Cock and Tame the Cunt”. Há anos não vê o pai nem o pai sabe dele, posto que mudou de nome. Mas, após uma entrevista catastrófica em que é levado a expor-se na televisão, cede ao pedido de Phil (Philip Seymour Hoffman), que o encontra por acaso, e vai a casa do progenitor para se reconciliar e despedir. Phil, o dedicado enfermeiro à cabeceira do moribundo trata dele o melhor que pode num quarto enorme onde ao fundo há um aparelho de televisão onde passa o programa de “Big Earl” apresentado por Jimmy Gator.


Voltem agora à imagem. Atentem no discreto lugar da televisão. E como tudo parece girar à sua volta.


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Stanley, o miúdo prodígio da televisão

Gostei do filme quando há 20 anos o vi pela primeira vez. Senti, é verdade, uma estranha incomodidade perante aquela fantasmagoria de seres à deriva, perdidos de si mesmos, capitulando perante a sua própria circunstância, ou, quando muito, ensaiando a busca de uma hipotética tábua de salvação nem que fosse através da aquisição de uns dentes postiços. Também não me apropriei por inteiro da narrativa que subverte o cânone - coisa que habitualmente não me põe problemas, bem pelo contrário - e espantosamente dá coerência ao emaranhado das histórias dos protagonistas. Fosse como fosse, na altura, não me apeteceu pensar muito no assunto. Passei à frente.


Magnolia é do mesmo ano de American Beauty de Sam Mendes que conta com uma notável interpretação de Kevin Spacey no papel de Lester Burnham, um homem na crise da meia idade apaixonado pela melhor amiga da filha adolescente. Gostei de American Beauty - estaria eu a passar por uma crise da meia idade? - e disse-o ao João Benard da Costa numa daquelas com ele sempre inevitáveis conversas sobre cinema. Foi entre cafés e cigarros no bar do Hotel New York, em Roterdão, um espaço magnífico criado a partir da recuperação do edifício de onde, noutros tempos, embarcaram os emigrantes holandeses com destino à América.


Sempre um cavalheiro, sempre candidamente um pouco perverso, sempre divertido, o Benard tinha algumas reservas a meu respeito. Nunca fiz questão de saber porquê, mas tinha. Levava muito a sério o exercício de tutela de um certo gosto cinéfilo, não gostava do documentário, detestava os filmes de Joris Ivens e no primeiro encontro na Cinemateca para tratar da Programação da Odisseia nas Imagens do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura, ao tomar conhecimento do papel atribuído ao cinema documental, perguntou: então, e o grande cinema? Além disso, apesar de ter chegado a fazer parte do Júri de um festival internacional de documentários para televisão, o MAT, deixou logo claro que com ele “televisão nem pensar”. Talvez esse fosse outro ponto a meu desfavor, não sei. Quanto ao mais, era um conversador e um contador de histórias fantástico, escrevia muitíssimo bem e tinha verdadeira paixão pelo Cinema. Eu adorava ouvi-lo. Por isso, quando ele torceu um pouco o nariz a American Beauty e contrapôs Magnolia como um dos grandes filmes do final do século XX, muito complexo, decidi voltar a vê-lo. Pois só aconteceu agora. Andava eu ocupado na recuperação de arquivos e cadernos e eis que num deles encontro as notas dessa viagem a Roterdão, designadamente da conversa no bar do Hotel New York. Tratei de rever o filme. Fiquei agarrado ao ecrã.


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Claudia e o polícia, o amor desesperado

Ao contrário da maioria da produção americana da época não há uma ou duas personagens centrais. Há sim vários protagonistas, com exposição episódica no ecrã, que Paul Thomas Anderson transformou em personagens. Todas elas são essenciais à coerência do mosaico. Criar personagens no cinema é sempre um exercício difícil. Obedece a opções num quadro relacional que convergem no sentido de urdir a espessura dramática sem a qual não é possível operar a metamorfose que transforma meros protagonistas em verdadeiras personagens. Em Magnolia, essa metamorfose passa pela montagem de momentos vividos em paralelo pelos diversos protagonistas, momentos esses cuja intensidade dramática se expressa em crescendo e tem como horizonte ora a busca cega de algo que ainda valha a pena, nem que seja uma quimera, ora a morte como fim inexorável de todas as ilusões.


Numa versão livre, o clímax do filme é mais ou menos como segue. “Quiz Kid", em desespero de causa, rouba o dinheiro escondido pelo patrão para poder comprar uns dentes novos, Linda, talvez à procura da redenção, descobre que afinal ama o homem com quem casou por conveniência enquanto ele, “Big Earl”, morre atormentado pelo remorso tendo a seu lado o filho Frank banhado em lágrimas, o tal que ensina a maltratar mulheres como Claudia, a junkie abusada pelo pai, Jimmy Gator, a estrela moribunda do show televisivo What the Kids Know onde o miúdo prodígio Stanley, farto do papel que representa, acaba de urinar nas calças deixando o pai que o explora à beira de um ataque de nervos. E quando o Polícia salva “Quiz Kid” levando-o a devolver o dinheiro roubado, e quando os percursos de todos se cruzam desaba uma chuva de sapos. Bíblica. Exodus 8:2 “And if thou refuse to let them go, behold, I will smite your whole territory with frogs.”


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Quando “Quiz Kid” rouba o dinheiro do patrão

Há ainda um miúdo, um rapper. No contexto da narrativa, ele, sim, parece surgir por acaso. Mas não é assim. O miúdo interpela o polícia depois de uma detenção em casa de uma negra e diz-lhe que escute bem, porque é ele quem tem a chave de tudo:


"Try to listen and learn. Check that ego. Come off it, I’m the prophet, the professor, I’m-a teach you about the Worm, who eventually turned to catch wreck with the neck of a long-time oppre’’ssor. And he’s running from the devil, but the debt is always gaining, and if he’s worth being hurt, he’s worth bringing pain in. When the sunshine don’t work, the good Lord bring the rain in.”


Um grandíssimo filme, digo eu, agora, quando passaram 20 anos sobre a estreia de Magnolia e também da minha saída desse estranho mundo da televisão. Estranho porque tendo andado por aquele aquário um quarto de século, a par das horas boas que por lá vivi, fiquei a perceber demasiado bem os seus meandros, o jogo de figuras de palha que põe em marcha as suas engrenagens. Digo isto porque Magnolia, não sendo um filme sobre a televisão é um filme que tudo tem a ver com ela e com a sociedade esquizofrénica que ajudou a criar. Todas as personagens, direta ou indiretamente, lhe estão ligadas. Ou porque são os donos, ou celebridades, ou porque a ela são chamados, ou dela fazem parte desde miúdos como “Quiz Kid” e Stanley, ou porque, simplesmente, vendo-a, a tomaram sempre demasiado à letra.


O fim do século passado terá sido também o fim do ciclo existencial de algum modo induzido pela televisão. Talvez isso esteja em Magnolia, naquela praga de sapos, na densa espessura dramática daqueles seres à deriva, todavia profundamente humanos, não sei. Sei que a centralidade da televisão passou ao lado de dezenas de críticas feitas à época, embora me pareça absurdo admitir que Paul Thomas Anderson não tenha pensado na carga simbólica nela contida. Muito pelo contrário. Na verdade, pelas conexões narrativas, rompendo no plano formal com as convenções da indústria de Hollywood, Magnolia já não é um filme do tempo da televisão. É já um filme de outro tempo, um filme de hipertexto.


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O leito de morte de “Big Earl”

Quando vemos uma obra cinematográfica não podemos evitar vê-la na companhia de tudo quanto em nós habita. Por isso, todos a vemos de maneira diferente. Quando nessa longínqua noite no Hotel New York em Roterdão nos despedimos, Benard da Costa disse-me: olhe, pense no Magnolia. Tinha razão. E eu estive demasiado tempo no interior do aquário.


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Exodus 8:2 “And if thou refuse to let them go, behold, I will smite your whole territory with frogs

 
 
 

Atualizado: 22 de out. de 2023


Durante a II Guerra Mundial, enquanto os Estados Unidos enveredaram por uma via agressiva, dando preferência aos chamados filmes de combate e de ação psicológica, os britânicos, sem descurarem essas modalidades, diversificaram a produção dando continuidade à tradição do movimento documentarista iniciada nos anos 30. Mais do que reportar a guerra mostraram como as pessoas viviam quotidianamente com ela. A Crown Film Unit à frente da qual esteve, de início, Alberto Cavalcanti, teve um papel importante nessa matéria, embora outras unidades estivessem igualmente envolvidas em ações de propaganda. Entre todos os participantes dessa aventura destacou-se o também poeta e pintor Humphrey Jennings. Este texto aborda sumariamente alguns dos seus filmes.


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Humphrey Jennings na rodagem de The Silent Village (1943). Fonte: BFI

Os temas abordados pelos cineastas do movimento documentarista britânico durante a Guerra eram tão diversos quanto a defesa dos ataques aéreos, o treino de civis e militares, as condições de vida, a agricultura e a jardinagem, a alimentação, a saúde, a indústria da guerra, as forças navais, o trabalho, as mulheres e a juventude, a contrapropaganda e, naturalmente, os filmes de combate entre os quais se destacam Target for Tonight e Desert Victory. Foi tamanha a diversidade das obras que até muito recentemente foi difícil determinar com rigor os números dessa produção. Atendendo aos temas abordados tamanha diversidade poderá até parecer enigmática. Contudo, ela corresponde a uma lógica decorrente da necessidade de apoiar e programar o quotidiano em função do esforço comum. A jardinagem, por exemplo, é uma actividade de lazer tradicional na Grã Bretanha. Pois, os jardins dariam lugar a pequenas hortas de modo a melhorar o abastecimento de produtos alimentares. Por razões semelhantes, mas ainda por uma razão suplementar, se destacava a atenção prestada à agricultura: as crianças de Londres foram evacuadas para o campo quando sobre a cidade começaram a ser despejadas bombas alemãs. Em suma, tudo tinha uma justificação.

Muitos desses filmes ou caíram no esquecimento ou são encarados numa perspectiva meramente académica, mas fazendo parte, de qualquer modo, de um extraordinário acervo que permite conhecer melhor a época em causa. São parte dessa tradição documentarista que um dia Paul Rotha definiu como sendo uma “criativa e contínua produção de filmes que fazem a inveja de muitos países”. Entre os que melhor resistiram à erosão do tempo estão os de Humphrey Jennings, pintor, escritor e cineasta educado em Cambridge, simpatizante da avant-garde europeia e responsável por algumas das exposições surrealistas em Londres. Convertido ao realismo que sempre marcou a produção cinematográfica britânica - André Bazin, teórico realista, não só não lhe foi indiferente como elogiou em múltiplas ocasiões o trabalho dos documentaristas do Reino Unido - Jennings enveredou por um caminho de forte ressonância poética. Talvez por isso, quando no princípio deste século o debate documental versus ficcional foi suscitado como sendo grande novidade, a sua obra voltou a ser objeto de estudo e de ampla divulgação. Porque, na verdade, serviu para a demonstração de nada haver de novo e de há muito ser uma questão recorrente na história e teoria do cinema documental.


“Era assim que nós éramos, os melhores de nós”


Os filmes de Jennings estão nos antípodas dos documentários de guerra americanos. Estes situam-se na antecâmara do documentário jornalístico de televisão tal como iria surgir no mundo anglo-saxónico. Mas Jennings, tal como Flaherty, eleva o patamar do documentário ao nível do cinema de autor, embora com óbvias diferenças. Diria Alberto Seixas Santos: “Onde Flaherty pinta com traço forte algumas personagens, representativas, é verdade, de uma colectividade, mas que são em primeiro lugar indivíduos, Jennings pinta uma colectividade donde emergem, brevemente, mas de modo inesquecível, alguns indivíduos ”.


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Spare Time (1939) de Humphrey Jennings

É nessa capacidade, de através da observação dos sinais e gestos do quotidiano, revelar o sentir e a alma colectiva do povo que Jennings constrói a sua visão singular do mundo. Diria, em 1954, Lindsay Anderson:


“(...) os filmes feitos (por Jennings) durante a guerra não têm paralelo e constituem uma proeza. Eles irão perdurar porque são fiéis ao seu tempo e porque a profundidade dos sentimentos que encerram nunca deixará de ser comunicada. Falarão por nós à posteridade, dizendo: foi assim que as coisas se passaram. Era assim que nós éramos – os melhores de nós ”.


Ao longo da vida Jennings manteve algumas polémicas com os seus companheiros e não apenas com aqueles que a partir de 1935 enveredaram pela via mais próxima do jornalismo. (Nota: ver os três artigos anteriores sobre o movimento documentarista britânico). Rotha, por exemplo, ridicularizou a sua curta metragem This is England (1941) acusando-o de se estar a “tornar religioso” e Egar Anstey, um dos autores de Housing Problems (1935), fez no The Spectator uma crítica devastadora de Listen to Britain (1942) augurando que seria um desastre caso viesse a ser exibido na América. Ambos se enganaram. Listen to Britain foi um sucesso do outro lado do Atlântico e a This is England foram apontadas como soluções extraordinárias justamente as cenas mais atacadas por Rotha. Após a morte de Jennings, em 1950, provocada por um acidente quando filmava na Grécia, John Grierson, que nunca nutrira por ele uma afeição especial, supostamente por ser demasiado individualista e não se enquadrar no espírito de equipa, prestou-lhe homenagem reconhecendo-lhe talento e qualidades excepcionais.


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London Can Take It (1940) de Humphrey Jennings

Se Diary for Timothy (1943) tem um narrador, os seus filmes mais importantes, ou seja, os filmes correspondentes ao período da guerra, à excepção de London Can Take It (1940), prescindem do comentário em off. O texto off, que no documentário ficou para a posteridade como Voice of God dado o seu caráter omnisciente, foi algo que pelas piores razões se tornou uma marca distintiva da escola de Grierson após a introdução do som. Mas isso é outra história. Spare Time (1939), anterior à guerra, relata a ocupação dos tempos livres dos trabalhadores das indústrias do algodão, do aço e das minas de carvão. É ainda tributário da participação do cineasta, durante a sua permanência em Cambridge, no movimento Mass Observation que avaliava as preocupações e problemas do homem comum.


Em London Can Take It, realizado de parceria com Harry Watt e com voz do famoso jornalista americano Quentin Reynolds, é feito o elogio bem humorado da resiliência da população de Londres durante os bombardeamentos nazis. São 24 horas na vida de uma cidade que é destruída de noite mas que se reinventa durante o dia. Exibido na América ainda antes do ataque japonês a Pearl Harbour pela mão de John Grierson teve no presidente Roosevelt um entusiasta e parece ter contribuído para o processo de consciencialização da opinião pública americana para o perigo do nazismo.


Em Listen to Britain não há bombardeamentos nem destruiçção, quando muito a trilha sonora permite distinguir a passagem de aviões ao longe, certamente transportando ameaças, enquanto soldados desfrutam de tempos livres. Tudo o mais são sinais de um quotidiano onde apenas de modo furtivo se insinua a tremenda dificuldade do dia a dia. É nessa espécie de suspensão do tempo, na rigorosa observação de curtos episódios onde aparentemente nada se passa, na aparente banalidade de um recital de piano que, afinal, tudo acontece. Como diz Jacques Rancière esses momentos “a-significantes” têm uma função muito precisa:


“Aquilo que é possível apreender na suspensão da ficção é, simplesmente ‘a vida’ de que as personagens da acção finalizada recebem ao mesmo tempo os benefícios. A estranheza do ‘documentário histórico’ de Jennings decorre do facto de este ser feito de uma justaposição destas estases da ficção, de ser um atestado da realidade construída com o real da ficção, aquele real que ela atesta e que a atesta em retorno. A fórmula segundo a qual ‘a realidade ultrapassa a ficção’ assume aqui todo o seu sentido ”.


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Fires Were Started (1943) de Humphrey Jennings

Fires Were Started (1943) é outra ficção do real. É um documentário totalmente encenado e resulta da observação obstinada do trabalho dos bombeiros durante a fase mais aguda dos bombardeamentos sobre Londres. Refinando procedimentos anteriores , ma vez mais, Jennings prestou uma atenção particular a acções e gestos do quotidiano aparentemente sem significado especial. O filme, uma longa-metragem, retrata 24 horas da vida de um quartel em East London, justamente a parte habitada pela população mais pobre da cidade. Aí estaria o verdadeiro povo. Na primeira parte, mostra aspectos tão triviais quanto o são descascar batatas para uma refeição, limpar uma viatura ou ouvir alguém que toca guitarra. Não custa adivinhar que os diálogos correspondem à maneira de ser dos protagonistas. Na segunda parte, assiste-se àquilo que se sabe inevitável: a preparação e saída dos bombeiros para apagar os fogos resultantes dos ataques aéreos.


Vistos em conjunto os filmes de guerra de Jennings constituem um puzzle. Em London Can Take It há uma imagem do anoitecer a que se segue uma outra com homens nos seus postos de observação. Quando começa a ouvir-se o som lúgubre das sirenes a voz profunda de Quentin Reynolds anuncia: “Here they come”. São os bombardeiros alemães que estão a chegar. Em Fires Were Started há uma sala onde um bombeiro toca piano – uma espécie de tocar a reunir – à medida que os companheiros já equipados se vão aí concentrando. É também um sinal de que a destruição está iminente. Se as sequências durante o dia, no quartel, são filmadas em estúdio, as sequências nocturnas passam-se junto das docas onde Jennings mandou deitar propositadamente fogo a um enorme armazém. Qualquer que seja a situação o heroísmo é sempre mostrado sem grandiloquência. Os bombeiros que apagam os fogos são simplesmente homens cumprindo o seu dever, tal como as telefonistas que recebem os alertas são apenas mulheres empenhadas nas suas tarefas. É isso que lhes confere humanidade.


O filme termina com um sintagma alternado: imagens do funeral do bombeiro morto em serviço alternam com as imagens de um navio carregado de munições que parte, justamente o navio ameaçado pelo incêndio que o bombeiro ajudara a apagar. Sendo de absoluto rigor documental, Fires Were Started resulta porque recorre aos códigos da narrativa ficcional. São eles que permitem a suspensão da imagem/tempo proporcionando de modo a suscitar um duplo olhar no sentido em que aquilo que imediatamente se vê aponta a um real mais profundo, portanto, genuinamente documental.


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Autoretrato atribuído a Humphrey Jennings

Diary for Thimothy (1945) é, porventura, de todos os filmes de Jennings aquele cuja estrutura é mais complexa e onde há uma clara opção simbolista. Uma vez mais, trata-se de uma encenação. Resumidamente, a história é esta. Timothy nasceu no dia do quinto aniversário do início da guerra. Representa o futuro. Um agricultor, um maquinista de comboios, um mineiro e um piloto ferido representam o povo, bem como as tarefas fundamentais que é necessário assegurar dando continuidade a uma tradição e cultura que são património comum. Há poemas de Shakespeare recitados por John Gielgud. Michael Redgrave diz o texto de E. M. Forster escrito para o filme. A música de Beethoven evoca a existência de uma Alemanha generosa, que não Alemanha que não a nazi prestes a ser derrotada. Mês após mês vozes da rádio informam sobre os acontecimentos. Um dia virá a paz. Haverá novas batalhas para travar, mas essas serão pelo bem estar de todos. Enquanto Timothy está ocupado a comer placidamente, a rádio anuncia a maior ofensiva dos aliados desde o Dia D, imagens de explosões enchem o ecrã. O narrador pergunta: “Are you...going to make the world a different place”?


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Diary for Thimothy (1945) de Humphrey Jennings
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Humphrey Jennings. London in the Seventeenth Century, 1936

Filmografia de Humphrey Jennings


Post Haste (1934)

Locomotives (1934)

The Story of the Wheel (1934)

Farewell Topsails (1937)

Penny Journey (1938)

Speaking from America (1938)

The Farm (1938)

English Harvest (1938)

Making Fashion (1938)

Spare Time (1939)

SS Ionian (1939, a.k.a. Cargoes)

The First Days (1939)

Spring Offensive (1940)

Welfare of the Workers (1940)

London Can Take It! (1940, a.k.a. Britain Can Take It!)

The Heart of Britain (1941, a.k.a. This Is England)

Words for Battle (1941)

Listen to Britain (co-director 1942)

Fires Were Started (1943, a.k.a. I Was A Fireman)

The Silent Village (1943)

The True Story of Lili Marlene (1944)

The Eighty Days (1944, a.k.a. V. 1)

Myra Hess (1945)

A Diary for Timothy (1945)

A Defeated People (1946)

The Cumberland Story (1947)

The Dim Little Island (1949)

Family Portrait (1950)

The Good Life (terminado por Graham Wallace 1951)


(Continua)

 
 
 
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Imagens do Real Imaginado (IRI) do Instituto Politécnico do Porto foi o ponto de partida para o primeiro Mestrado em Fotografia e Cinema Documental criado em Portugal. Teve início em 2006. A temática foi O Mundo. Inspirado no exemplo da Odisseia nas Imagens do Porto 2001-Capital Europeia da Cultura estabeleceu numerosas parcerias, designadamente com os departamentos culturais das embaixadas francesa e alemã, festivais e diversas universidades estrangeiras. Fiz o IRI durante 10 anos contando sempre com a colaboração de excelentes colegas. Neste segmento da Programação cabe outro tipo de iniciativas, referências aos meus filmes, conferências e outras participações. Sem preocupações cronológicas. A Odisseia na Imagens, pela sua dimensão, tem uma caixa autónoma.

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